“Não gosto das falsas esperanças embaladas por uma ecologia fácil e voltadas para o público em geral”. Entrevista com Guillaume Néry

Fonte: PxHere

25 Julho 2022


Neste verão, os franceses mais uma vez cederam ao chamado do oceano para aproveitar as praias, nadar ou ir para o mar. Oportunidade para se maravilhar com o que o mundo subaquático reserva em termos de recursos... E perceber a urgência de preservá-los.

 

A entrevista é de Véronique Durand, publicada por La Vie, 20-07-2022. A tradução é do Cepat.

 

Guillaume Néry conhece as profundezas dos oceanos desde os 14 anos. Mergulhador francês bicampeão mundial em peso constante sem aparelho, com sua disciplina (descida e subida com nadadeiras) é testemunha das riquezas submersas, que vão de recifes de corais a animais marinhos com os quais nada livremente, cachalotes, tubarões-martelo, lulas…

 

Graças aos filmes artísticos dirigidos por Julie Gautier, sua ex-companheira e mãe de sua filha, levou milhares de pessoas a descobrir alguns dos tesouros escondidos dos oceanos mostrando paisagens nunca antes vistas, proporcionando sonhos e emoções. Esses filmes também examinam a relação do homem com esse meio ambiente do ponto de vista da poluição com plástico que está se espalhando pelas costas e o fundo do mar e a aceleração da exploração dos recursos pelo ser humano. Entre o fascínio pela vida no fundo do mar (da qual apenas 15% está mapeada) e os receios de perturbar o equilíbrio da microbiologia marinha já muito exposta à poluição e à acidificação, onde se situar? Já fomos longe demais?

 

Em 3 de abril de 2019, ele postou nas redes sociais um som criado pela Sea Shepherd, ONG dedicada à proteção dos ecossistemas marinhos, a partir dos gritos de cerca de trinta animais marinhos, com vistas a alertar sobre os danos provocados pela pesca predatória. Assim, fez um apelo para “repensar a forma como consumimos o oceano e deixar de considerá-lo como uma despensa inesgotável”. Em fevereiro de 2022, lançou um novo apelo na cúpula de Brest para incentivar os grandes grupos industriais e nossos países a acalmar seu apetite de crescimento.

 

Em 10 de julho de 2022, um dia antes de completar 40 anos, viajou (de avião) para Kalamata, na Grécia, para iniciar um périplo de um mês pela Europa que o levará a Nice, seu porto de origem, de bicicleta. No regresso, irá com a filha para a Polinésia, onde passará vários meses, como faz todos os anos, o mais próximo possível do oceano.

 

“Posso trabalhar em projetos artísticos e continuar a escrever, longe da agitação da casa. É um momento de retiro”. Através de seus livros, este amante do ar livre quer aumentar a conscientização sobre a proteção dos nossos oceanos. Não há nada como colocar a cabeça debaixo d’água em sua companhia, para saborear sua beleza e perceber sua fragilidade.

 

Eis a entrevista.

 

Você explora o fundo do mar desde os 14 anos. O fascínio persiste até hoje?

 

O fascínio começa assim que você coloca a cabeça debaixo d’água, sem ter que ir muito longe nas grandes profundezas ou em terras distantes. Está em todos os lugares! O mar é uma vida borbulhante com seu plâncton e seus micro-organismos. Penetrar no mundo subaquático cria uma alteração dos sentidos, sobretudo visual: experimentamos um encontro com outro mundo vivo, acedemos a outros horizontes, sem nenhum limite.

 

Sob a costa mediterrânea (ele mergulha na baía de Villefranche, perto de Nice, nota do editor), encontro rochas, plantas e todos os peixes vertebrados e invertebrados que existem debaixo d’água. Esta abundância de vida é ainda mais fascinante porque está escondida! E este maravilhoso lado oculto do mar é acessível a todos.

 

Observei durante o segundo confinamento em outubro de 2020, quando voltamos a ter o direito de nadar, o quanto o mar se tornou uma zona de refúgio para a população de Nice. Foi uma revelação para muitos. Com o mar, não há direito de entrada, todos podem usufruir deste espaço de infinita liberdade, acessível 24 horas por dia, e que quase não requer equipamento, a não ser uma máscara, um traje de banho e eventualmente nadadeiras.

 

Na sua opinião, estar em “comunhão com o elemento” é uma experiência mística?

 

Sim, completamente! Banhar-se é não ter peso. Quando você coloca sua cabeça debaixo d'água, você encontra um mundo maravilhoso. No início há resistência. Aprendemos a deixar se levar mentalmente, e o corpo pode então se abandonar. Essa experiência pode tocar o sagrado, com o sentimento de pertencer a um todo maior. As paredes da nossa pele se dissolvem e as fronteiras desaparecem. Tornamo-nos um com a água, este elemento que envolve tudo.

 

Essa sensação também é muito mais forte do que no ar, onde você precisa do vento para sentir o elemento. Descer às profundezas na apneia é também descer às profundezas interiores. O ambiente é hostil, frio, você tem que resistir à pressão da água, você se encontra cara a cara consigo mesmo.

 

Você tem que desacelerar, buscar um estado de calma, às vezes enfrentar seus próprios demônios. Expor-me a essas profundezas me obriga a ser honesto comigo mesmo e me leva a entender melhor minha vulnerabilidade, minha finitude e minha humanidade. Nós perdemos o hábito dessas coisas na vida cotidiana marcada por um acúmulo de tarefas sucessivas, uma aceleração contínua do tempo. Esta experiência é uma forma de meditação.

 

Durante seu acidente no Chipre em 10 de setembro de 2015, quando você estava perto da morte, você teve a sensação de “tocar o além”. Como se vive depois de uma experiência dessas?

 

Nós sempre queremos ser os primeiros a ir onde ninguém foi antes. Eu tenho sido impulsionado durante muito tempo por uma certa busca para mergulhar cada vez mais fundo e continuar a quebrar o recorde mundial. Durante este acidente, tive a sensação de ter atingido uma espécie de limite.

 

Dei um fim ao mergulho que então julguei ser definitivo. Mas eu precisava encontrar as profundezas, sendo animado por outras motivações e outras intenções. Permaneço numa busca infinita, análoga à da psicoterapia.

 

Este fascínio é também o das sociedades que compreenderam o interesse em explorar os recursos pouco conhecidos dos nossos oceanos. Esse movimento deve ser evitado?

 

A humanidade entrou numa corrida louca que não é absolutamente sustentável e na qual o homem ocidental se encontra totalmente prisioneiro de um sistema. Toda sociedade é construída com base em uma história; a nossa é baseada em uma dicotomia entre cultura, por um lado, e natureza, por outro. Desenvolvemos uma relação sujeito-objeto e não uma relação sujeito-sujeito.

 

No entanto, existem outras leituras do mundo, com outras crenças e outra relação com o meio ambiente. Como as tribos indígenas da Amazônia estudadas pelos antropólogos. Em sua espiritualidade animista, toda forma de vida é considerada igual à nossa. Ao passo que a nossa narrativa ocidental coloca o homem como uma espécie diferente e superior à natureza e aos vivos.

 

Essa separação entre homem e natureza é, a meu ver, a base dos excessos que existem hoje. O antropólogo Alessandro Pignocchi propõe outra forma de ler o mundo em sua história em quadrinhos Petit traité d’écologie sauvage (Pequeno Tratado de Ecologia Selvagem); seu pensamento é perturbador.

 

Devemos renunciar a explorar recursos escondidos quando eles constituem soluções para o futuro tanto no campo da saúde quanto para as necessidades de nutrição e energia sustentável?

 

Não acredito em desenvolvimento sustentável. A longo prazo, não será possível encontrar um equilíbrio real se não ocorrer uma reviravolta na forma como nosso mundo ocidental moderno construiu sua relação com o meio ambiente. O sistema capitalista precisa ser repensado, temos que devolver um valor às coisas, e à natureza seu valor intrínseco.

 

Mesmo quando a protegemos criando reservas e parques nacionais, continuamos em uma relação de exploração e escravização. Esse lado ultrautilitário nos levará à nossa própria perda e à dos seres vivos. E está se acelerando, com o desaparecimento de insetos, pássaros, minhocas, em proporções alucinantes... Há motivos para estarmos extremamente preocupados.

 

A mineração em alto mar foi um dos temas da cúpula sobre a saúde dos oceanos que ocorreu em Lisboa de 27 de junho a 01 de julho de 2022. É hora de estabelecer limites?

 

Pergunto-me sobre as motivações para buscar metais raros para satisfazer os usos dos quais nos tornamos dependentes e fornecer tecnologias que se tornaram essenciais. Estou pensando especialmente no carro autônomo, no 5G, etc. São essas necessidades essenciais para ser mais feliz? Qual é o significado disso tudo? A questão do significado está extremamente ausente.

 

Por que consideramos positiva essa ideia de continuar explorando cada vez mais um espaço que tem seus próprios limites? Para alimentar o quê? Qual tecnologia? O que mais vamos ganhar? Uma vez que podemos fazê-lo, não nos fazemos perguntas. Eu entendo que os engenheiros têm essa excitação, eu a tinha no meu nível, exceto que os desafios não eram os mesmos.

 

Seu acidente fez com que desistisse de ultrapassar seus limites. Devemos esperar por um desastre para parar essa busca?

 

Muitas pessoas têm consciência individual dos riscos que corremos. Mas há uma lacuna real com a realidade compartilhada ao nível do público em geral e do espaço midiático. A onda de calor e o aquecimento global são destacados, mas não a questão profunda da nossa relação com o mundo. O que fará, em algum momento, com que a lógica atual seja profundamente perturbada para que tudo pare? Como podemos mudar nossas formas de funcionamento, nossos modos de nos alimentar e nossas crenças?

 

A tomada de consciência é real, mas a confusão transmitida pelos grandes grupos industriais e multinacionais permanece. Mesmo entre aqueles que estão embarcando no desenvolvimento sustentável, porque têm todo o interesse em que funcione. Assim, a lógica da exploração da natureza e do tempo persiste. Veja, nós suspendemos os combustíveis fósseis, mas continuamos a produzir muita energia verde. Mas o que há de verde nisso, uma vez que requer metais raros e baterias elétricas?

 

Eu não condeno; uso iPod, iPhone, envio e-mails, pego o avião para ir à Polinésia. Estou neste sistema e sou seu prisioneiro. Nossa sociedade é prisioneira do século XX. Tentamos produzir de forma diferente, mas o sistema continua o mesmo. Mas quero acreditar que uma revolução profunda é possível, devemos continuar a esperar por ela.

 

Ainda temos que alimentar bilhões de pessoas e suprir as suas necessidades básicas! Então, como?

 

Sim, e a tarefa é colossal, o problema muito complexo. É fascinante observar como esse longo processo de desconexão da natureza ocorreu ao longo de milhares de anos. Houve uma grande aceleração após os Trinta Gloriosos e a Revolução Industrial. Sempre na mesma direção e segundo a mesma lógica, a mesma vontade de ir ainda mais longe, de alargar ou reforçar a fronteira com o resto dos seres vivos tidos como hostis.

 

Nós fomos longe demais. Até onde devemos ir hoje na desconstrução? Eu pesquiso, leio muitos documentos e me interesso pelas diferentes correntes de pensamento dos ecologistas, das mais radicais às mais moderadas.

 

Se você fosse um embaixador do oceano, qual seria sua mensagem de alerta?

 

Eu continuo muito humilde sobre a contribuição que posso dar. Procuro levar as pessoas para a água (ele criou, em 2011, a Escola Bluenery Académie, onde supervisiona estágios, nota do editor), para que tenham essa proximidade intensa com a natureza. Planto sementes: transmito as palavras dos cientistas e seus relatórios sobre a evolução das espécies, para fazer ressoar com descobertas que ainda encontram muito pouco eco. E assim ajudar a tomar consciência da realidade.

 

Não gosto das falsas esperanças embaladas por uma ecologia fácil e voltada para o público em geral. Não estou dizendo que devemos cruzar os braços, mas olhar a realidade com lucidez. Não devemos ter medo de sermos chamados de ansiogênicos. Se não estamos ansiosos é porque não estamos lúcidos! Não vamos fazer a política do avestruz: hoje está muito mais quente do que ontem! Alegar que não há com o que se preocupar porque vamos ser 100% elétricos, construir turbinas eólicas, reverter a curva de carbono até 2050, e que assim estaremos fora de perigo. Não! O que está acontecendo é muito mais profundo e grave e devemos reagir de acordo.

 

Você defende a sobriedade. Pessoalmente, como consegue resistir à pressão consumista?

 

Devemos minimizar nossas necessidades, nosso consumo, o supérfluo e o superficial. E resistir a um sistema que depende do crescimento para funcionar. A questão não é só continuar consumindo melhor, mas também muito menos! Se eu mesmo quero ser coerente, tenho que combinar as convicções profundas com as realidades financeiras.

 

Quando eu tinha 15-20 anos, quando comecei a evoluir no mundo dos atletas de alto nível, estar associado a marcas de luxo era sinônimo de sucesso, e financeiramente era confortável. Então, com o passar dos anos, percebi que tinha sido moldado por um paradigma. Mudar de lógica é complicado. Até 2021, estive associado a uma marca de relógios de luxo. Mas não posso ter um discurso e ao mesmo tempo agir como se nada tivesse acontecido! Há uma forma de dissonância.

 

Hoje, escolho as marcas e empresas que me permitem fazer ouvir mensagens fortes e me engajar, e ao mesmo tempo mantenho o tempo e a liberdade para poder escrever e transmitir minhas reflexões sobre a evolução do nosso mundo. Eu recuso muitos contratos.

 

É verdade, não é simples: onde colocar o cursor? Eu penso nisso todos os dias. Se eu parar tudo para ir ao fim das coisas, paro toda colaboração com o mundo industrial e as empresas, mas como continuar a viver? Você tem que encontrar os compromissos certos e cumprir seu caminho de vida, mantendo um vínculo com sua paixão.

 

No campo da saúde, o biomimetismo oferece grandes perspectivas. O que o oceano pode nos ensinar para viver melhor no futuro?

 

A ideia de se inspirar na natureza, como sempre fizemos, e no que existe é interessante. A natureza é uma fonte colossal de inspiração, mas deve permanecer inspiradora. Se é para explorar melhor a natureza e dominá-la, é a cobra que morde o próprio rabo!

 

No que diz respeito à exploração do fundo do mar e dos hidrocarbonetos, assinamos moratórias para prevenir e regular a prospecção que atrai grandes grupos, prontos a ir cada vez mais longe e mais fundo. As profundezas dos oceanos ainda são um ambiente inviolável. Se não houver medidas de proteção emblemáticas, romperemos uma nova fronteira e não haverá mais um único espaço virgem onde os seres vivos possam estar tranquilos.

 

Poder deixar isso de lado e considerá-lo secundário porque está longe, quando é mais um limite que é ultrapassado, tudo isso para continuar a desenvolver tecnologias cada vez mais destrutivas no final.

 

Voltamos ao por que: por que precisamos de recursos autônomos ou que toda a Terra esteja conectada, com satélites espalhados por todo o céu? Isso me deixa com raiva. É uma loucura. Se há alguma esperança de parar esta loucura, através de uma cúpula como Lisboa, com ONG mobilizadas no local, então temos de ir lá.

 

Eu apoio a ONG Sea Shepherd. Dedicada à proteção dos ecossistemas marinhos, é muito ativa na regulação da pesca industrial. As ONGs existem para fazer ouvir as vozes de determinados países e para garantir que as declarações não sejam apenas marketing. Elas vão ver in loco o que é decidido, e arrumam tudo.

 

De todos os abusos, qual é o mais temido?

 

Ao participar da cúpula de Brest em fevereiro de 2022, pude fazer minha voz ser ouvida. O plástico, a acidificação e a pesca industrial são catastróficos. Na minha opinião, a prioridade das prioridades é lutar contra o desaparecimento da vida.

 

Dizer então que vamos nos inspirar no pouco que resta no campo da saúde, por exemplo, me faz pensar: explorar os extraordinários recursos subaquáticos para se curar melhor, isso beneficia os humanos que não têm o suficiente para ganhar 30 anos em sua expectativa de vida em 100 anos! Se destruir esta vida é o preço, então não vale a pena.

 

É claro que, se meu filho estiver ferido ou se meu pai trabalhar em uma petroleira e decidirmos que devemos parar, eu reagiria de maneira diferente, ele deve poder trabalhar. Faremos de tudo para permanecer vivos e buscar ser imortais... até entrar no transumanismo, desenvolver clones, criar órgãos para fazer transplantes, é isso que queremos?

 

Pessoalmente, claro, quero que tudo seja feito para me manter vivo, para ser diagnosticado se estou doente graças a scanners e ressonâncias magnéticas, e operado graças às melhores tecnologias. Mas não podemos raciocinar assim, não é possível, não é sustentável. Temos que pensar de maneira mais global. E se perguntar sobre o progresso do nosso conforto doméstico com nossos secadores, ventiladores, nossos sistemas de ar condicionado responsáveis por 10 a 15% das emissões de gases de efeito estufa...

 

Desenvolvemos medicamentos para curar muitas doenças relacionadas à comida-lixo ou provocadas pelo estresse. Não podemos ficar satisfeitos com tudo isso. Somos prisioneiros desse modus operandi.

 

Os recursos submersos

 

Apenas 15% do fundo do oceano foi mapeado em alta resolução e 2% foi explorado por dispositivos subaquáticos. Abaixo de 2000 m, não há mais luz e, portanto, não há vegetação. Quanto mais fundo você vai, mais escassa é a alimentação, a temperatura é congelante e a pressão é esmagadora. Mesmo nas planícies abissais (entre 3.000 e 6.000 m de profundidade) a vida está presente: peixes, bactérias, águas-vivas...

 

Os corais fornecem habitat para muitas espécies. Viver em tal ambiente requer adaptação. Encontramos peixes, moluscos e outros invertebrados com bocas enormes, olhos salientes, dentes afiados, um pouco assustadores!

 

Esta biodiversidade, bem como a presença de recursos minerais e terras raras fascinam as nossas empresas que veem nelas os tratamentos ou as energias do futuro... Se quisermos explorá-los, o desafio é fazê-lo de maneira razoável, sem esgotá-los e sem perturbar seu ecossistema já fragilizado pela atividade humana. Um saco plástico foi encontrado na Fossa das Marianas, nas Filipinas, a 11.000 m de profundidade...

 

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