Servidores anunciam greve contra presidente da Funai

Marcelo Xavier, presidente da Funai (Fonte: Valter Campanato/Agência Brasil)

14 Junho 2022

 


A Fundação Nacional do Índio (Funai) foi desmantelada e militarizada sob o governo Bolsonaro. Quem denuncia é a entidade Indigenistas Associados (INA), que representa os servidores da Funai e decidiu vir a público para relatar a gravidade da situação. O desmantelo se dá de diversas formas, mas a gota d’água surgiu, segundo os servidores, quando o próprio presidente do órgão, Marcelo Augusto Xavier da Silva, iniciou uma campanha contra o indigenista Bruno Araújo Pereira, desaparecido desde o dia 5 de junho junto do jornalista britânico Dom Phillips na região do Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas. Insatisfeitos, os servidores prometem entrar em greve nesta terça-feira (14) para exigir que Marcelo Xavier se retrate de “difamações” e “inverdades” publicadas em nota oficial da Funai, em 10 de junho.

 

A reportagem é de Cristina Ávila, publicada por Amazônia Real, 13-06-2022.



Em assembleia nesta segunda-feira, quando se completou mais de uma semana da ausência de ações da Funai na busca pelos desaparecidos, servidores e servidoras deliberaram pela greve por 24 horas a partir das 9 horas, com ato em frente ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, em Brasília. A nota oficial da Funai de 10 de junho, publicada na página da instituição, acusa a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) por mentir sobre as autorizações de ingresso de Bruno Pereira e Dom Phillips na Terra Indígena Vale do Javari. Também é exigido o envio de Forças de Segurança Pública para garantir a vida dos servidores em todas as bases de proteção etnoambientais (Bapes) e das coordenações regionais na região.


A anunciada greve é precedida pela divulgação, nesta segunda-feira, de um dossiê do INA e do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O documento de 172 páginas deixa claro o processo de militarização da Funai e das políticas que intimidam o trabalho profissional dos servidores. Fala-se em clima de terror. Segundo o dossiê, das 39 coordenações regionais da Funai no País, apenas duas são chefiadas por servidores públicos. São 19 coordenadas por oficiais das Forças Armadas, três por policiais militares, duas por policiais federais e o restante por servidores substitutos ou sem vínculo com a Administração Pública. No alto escalão, dois dos três diretores, além do presidente são policiais, um deles militar. Marcelo Xavier é delegado da Polícia Federal.



Práticas do governo de Jair Bolsonaro (PL) contra os povos indígenas já foram denunciadas como genocidas em instituições como o Congresso e o Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia (Holanda). Mas o dossiê dos servidores mostra que o desmanche e a militarização do comando da Funai têm o propósito de favorecer a ação de garimpeiros, madeireiros, ruralistas, caçadores, pescadores e até mesmo narcotraficantes, denunciam as entidades.



O ponto de partida do dossiê é a declaração do então candidato Bolsonaro como promessa, ainda em campanha à Presidência da República, de “dar uma foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço”. A frase demonstra o nítido objetivo de destruir o órgão que deveria proteger os povos indígenas. Para isso, eleito presidente, Bolsonaro tentou transferir as atribuições da Fundação ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Não conseguindo, por intervenção do Supremo Tribunal Federal (STF), optou por entregar o órgão nas mãos do delegado Marcelo Xavier, homem de confiança de Nabhan Garcia, atual secretário Especial de Assuntos Fundiários do Mapa. Notório político ruralista, e de passado ligado à organização de milícias rurais”, inimigo declarado da reforma agrária e da demarcação de terras indígenas, aponta o dossiê.


Sob o título “Funai anti-indígena: um retrato da Funai sob o Governo Bolsonaro”, o dossiê descreve como “a erosão por dentro da política indigenista se soma a políticas como ambiental, cultural e de relações raciais”, o que os pesquisadores que produziram o documento conceituam como “assédio institucional” e “modus operandi” do governo federal. Escrito nos dois últimos meses, depois de um monitoramento conjunto da INA e Inesc de três anos, o dossiê da Funai resulta em análise detalhada de documentos oficiais colhidos desde o início de 2019, reforçada por depoimentos de servidores, materiais de imprensa e publicações de organizações da sociedade civil.



O dossiê da Funai é oportuno e imprescindível, mas já chega defasado. Inevitável, pois nas últimas semanas o Brasil se tornou o foco das atenções mundiais com o desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips. Conforme as notícias indicavam se tratar de uma emboscada contra os dois, mais foi se tornando evidente que o Vale do Javari se tornou um “barril de pólvora” em que imperam atividades ilegais e consorciadas, quase impossíveis de serem combatidas por uma estrutura fragilizada como a da atual Funai.



Invasões e violências são graves faz tempo na região do Vale do Javari que é habitada por cerca de 6 mil indígenas de povos isolados como os Korubo, Matis, Kanamary, Kulina, Marubo, Tsohom Dyapá e Mayoruna, e outros de contato recente ou isolados. Em 2017, durante o período em que o Ministério Público Federal pediu investigação à PF sobre notícias de massacre de povos isolados, lideranças da Univaja contaram que os indígenas estavam aterrorizados. A coordenação regional da Funai estava sem ninguém nomeado para o comando. Já naquela época foram feitos relatos sem citar nomes devido a ameaças de morte, que diziam que a região vivia agravamento das invasões e violência incitadas ainda quando Michel Temer ocupava o Palácio do Planalto e havia aprovado parecer da Advocacia Geral da União (AGU) determinando a adoção do marco temporal para as demarcações no país.



“Com isso, nossa vulnerabilidade ficou muito maior. O pensamento do madeireiro é que tem que matar, pra dizer que não existe índio lá. Vão matando tudo o que encontram. Pode ser índio, pode ser caça. Quando o Ministério Público for lá, já mataram tudo, e vão dizer que nós estamos mentindo”, diziam as lideranças, se referindo especialmente aos isolados e ao direito à terra. A ideia era deixar o caminho livre para grileiros e exploradores no caso de não ser demarcada como território tradicional.



As lideranças da Unijava contaram naquele período que as invasões estavam tão evidentes que as feiras das cidades da região estavam sempre cheias de caça. “Na feira de Atalaia do Norte, tem carne de anta salgada na nossa cara. Benjamin Constant tem jabuti, tracajá, ovos de tartaruga vendidos à luz do dia. Tudo da terra indígena. Mês passado levaram 37 sacos de ovos de tartaruga desses sacos de fibra grandes. Tabatinga, Atalaia. Vai lá tem 30, 40, 50 tracajás, a 110, a 80 reais”.


Proteção das fronteiras


O resultado de um comando militarizado é produzir um clima de terror também entre os funcionários da Funai. Mesmo em Brasília. “Uns estão paranóicos e outros, corajosos, enfrentam a situação. Mas o clima é pesado”, conta Fedola. A intimidação mais gritante é a prática do presidente da Funai em lavrar denúncias à Polícia Federal, seu órgão de origem, solicitando a instauração de inquéritos criminais contra servidores, tentando incriminá-los, como faz também com lideranças indígenas.



Serve de exemplo o caso de um servidor que, atendendo solicitação da Procuradoria da Funai, foi contrário à anulação de processo de demarcação de terras em fase inicial. Marcelo Xavier não apenas discordou como determinou que fosse denunciado à Corregedoria e à PF.



Até mesmo as redes sociais são monitoradas pelas chefias, denuncia o dossiê. E os funcionários recebem mensagens da própria Corregedoria do órgão ou advertências de outras formas sobre questões de “deslealdade” à instituição e às chefias como quem diz estamos de olho em vocês. São inclusive lembrados artigos da Lei 8.112, que institui o regime jurídico dos servidores públicos civis da União. Geralmente os mais visados são os que mais defendem questões indígenas em processos administrativos e nas bases em campo.



Segundo o dossiê do INA e do Inesc, em abril deste ano quatro servidores foram surpreendidos com dispensa publicada no Diário Oficial da União, obrigados a se transferirem de cidade. Desde 2019, aumentaram “vertiginosamente o número de processos administrativos disciplinares”. Nessa caça às bruxas instaurada sob o governo de Bolsonaro, além do medo e da desconfiança no ambiente de trabalho, sofrem na prática redução do tempo disponível para realização de tarefas.



Os processos administrativos têm de ser analisados pelos próprios funcionários, já sobrecarregados pelo reduzido quadro de pessoal. Em 2020, a Funai tinha 2.071 profissionais, sendo 1.717 efetivos. Havia 2.300 cargos vagos na autarquia, devido a aposentadorias e falta de concursos. “O esvaziamento do órgão ocorre de forma mais intensa a partir de 2000, inversamente proporcional ao crescimento da população indígena”, afirma o documento.


Mandado de segurança



Um dos principais casos apontados no dossiê da Funai sobre atitudes de incriminação se refere aos Waimiri Atroari, habitantes na divisa entre Amazonas e Roraima. Marcelo Xavier acionou a Polícia Federal alegando que a associação da comunidade estaria trabalhando contra o licenciamento ambiental do Linhão de Tucuruí, projetado para atravessar o território indígena. A acusação também recaiu sobre advogados da associação, indigenistas e antropólogos, incluindo oito servidores da Funai. Todos acusados de inviabilizar a construção.



A gestão do atual presidente da Funai também usa meios de comunicação oficiais da Funai para atacar desafetos, como a INA, devido a um mandado de segurança impetrado para garantir direitos de funcionários no contexto da Covid-19, denuncia o dossiê. “A associação está tão somente focada em causar dissidências e assim desarticular o trabalho institucional”, diz trecho de nota publicada pela gestão de Marcelo Xavier em 16 de abril de 2020.



Fernando Fedola ressalta que a lacuna aberta no dossiê por conta do desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips deixa evidente uma série de omissões em relação às condições de trabalho em campo e condições de segurança jurídica e física. Não apenas no Vale do Javari, mas em outras regiões do país.



O documento da INA cita desde a regulamentação do poder de polícia da Funai, inclusive com porte de arma, à necessidade de que o Exército assuma a atuação nas chamadas Bases de Proteção Etnoambiental (Bape), especialmente as que se localizam em faixas de fronteira. E que a Força Nacional de Segurança Pública seja imediatamente acionada sempre que solicitada sua presença pela Coordenação de Índios Isolados e de Recente Contato. Também frisa coisas mínimas, como a necessidade de alojamentos dignos para as equipes. “Água de consumo adequada, meios de comunicação e de transporte adequados”, reivindica.



“O governo Bolsonaro é brutal e totalizante”, acentua Fernando Fedola. A expressão significa que atua em várias frentes, diferenciadas” para desmantelar os direitos indígenas, facilitando com que “setores que disputam terras indígenas se apoderem delas”. São ataques à legislação, determinações administrativas anti-indígenas que afetam relações entre servidores, e destes com os indígenas, além da dissolução de instâncias como o Conselho Nacional de Política Indigenista e o Conselho Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas. Este conselho foi instituído com a participação de órgãos públicos como o Ministério do Meio Ambiente para assegurar a integridade do patrimônio e melhoria da qualidade de vida dos povos  originários.

 


“Fábrica de normativas”



O dossiê afirma ainda que a Funai foi transformada em “uma fábrica de normativas” e cita o exemplo longamente detalhado da IN 09, publicada em 2020, cuja germinação inicia em março de 2019, quando Nabhan Garcia anunciou que retiraria as terras não homologadas do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O objetivo era gerar uma insegurança jurídica para uma série de Terras Indígenas que amargam na fila da burocracia do governo e não estão ainda homologadas.



Ainda em março de 2019, a presidência da Funai definiu a proposta, deixando clara a  tentativa de favorecer a certificação de terras indígenas para particulares, quando os interesses privados estiverem sobrepostos a territórios tradicionais ainda não homologados. Na prática, isso acabou por legitimar o processo de grilagens de terras, ainda que contrarie a Constituição Federal. Pela Carta Magna, são nulos os títulos de propriedades que incidam sobre as TIs. Pela IN 09, obtidas as certificações, os interessados poderiam obter financiamento para desenvolvimento de atividades produtivas e negociar livremente os espaços territoriais.



Mas o ímpeto do desmantelamento da Funai não pararia por aí. Emergiram iniciativas mais “exdrúxulas”, como a Resolução nº 4, uma tentativa de resgate de uma ideia da época da ditadura militar de se criar a “heteroidentificação”, palavra de origem grega que significa “outro” ou “diferente”. Publicada em 22 de janeiro de 2021, a norma criou novos critérios para identificar indígenas por comprovações como “origem e ascendência pré-colombiana”, além de “vínculo histórico e tradicional de ocupação ou habitação entre a etnia e algum ponto do território soberano brasileiro”.



“Se com a IN 09, Marcelo Xavier requentou a pauta ruralista derrotada na Justiça, com a Resolução nº 4 trouxe de volta a fantasia de que existam falsificadores de indígenas interessados em apossar-se de terras privadas, conforme registrado no relatório da CPI que anos atrás assessorou”, anota o dossiê da Funai.



O documento relembra que esse movimento anti-indígena é anterior ao governo Bolsonaro. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), requerida por ruralistas em 2015, investigou o processo de demarcação de terras indígenas e quilombolas. “O relatório final é repleto de referências ao assunto, com inferências sobre supostas fraudes, nas quais o tema da identificação étnica é propositalmente embaralhado com o da identificação e demarcação das terras”, afirma o documento. A CPI chegou a recomendar o indiciamento penal de dezenas de lideranças indígenas, antropólogos e outros profissionais atuantes no indigenismo.



Nas considerações finais, o dossiê do INA e do Inesc cita os Projetos de Lei 191 e 490, além do “paradigmático” julgamento do marco temporal, “batalhas inconclusas, nas quais a Funai se alinha vergonhosamente com os adversários dos indígenas”. Ao longo do texto, são citados dezenas de povos indígenas vitimados pelo conjunto de arbitrariedades da Funai e do governo Bolsonaro, especialmente os Munduruku e Yanomami, gravemente afetados por garimpos e inclusive por contaminações pelo mercúrio usado na mineração ilegal.



O PL 191, proposto pelo governo Bolsonaro, pretende mudar a legislação para permitir a exploração mineral, a construção de hidrelétricas e de grandes projetos de infraestrutura em terras indígenas. O PL 490 também pretende abrir os territórios para grandes projetos econômicos e busca inviabilizar as demarcações. O marco temporal, cujo julgamento vem sendo sucessivamente adiado no Supremo Tribunal Federal (STF), pretende que somente tenham direito à terra os povos que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

Em outubro, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ingressou com uma ação civil pública pedindo a saída de Marcelo Xavier da presidência da Funai, que foi nomeado em 19 de julho de 2019.

 

Pelas demarcações

 


Seminário realizado pela INA com servidores em 29 e 30 de abril deste ano, intitulado “A Funai que queremos”, definiu como uma das prioridades a criação de um grupo de trabalho com representantes dos indígenas para monitoramento e a avaliação dos planos plurianuais e planos setoriais da política indigenista com metas e capacidade de execução alinhadas. Também enfatizaram a importância de ter dotação orçamentária para a estruturação física e de recursos humanos necessários, como também a reativação do Fundo Amazônia e do Fundo Clima, que tiveram recursos bloqueados pela Alemanha e Noruega por incapacidade do governo brasileiro em cumprir com suas contrapartidas que eram basicamente os cuidados com o meio ambiente, como reduções de queimadas e desmatamentos na Amazônia.



As propostas serão apresentadas aos candidatos, especialmente à Presidência da República, e esperam a revogação de atos legislativos e administrativos anti-indígenas. A INA defende o estabelecimento de um plano decenal para a demarcação de terras indígenas como forma de agilizar os processos que estão parados e promover a retirada de invasores. Os servidores querem a identificação e delimitação de territórios para a regularização do passivo fundiário devido aos povos originários. Eles consideram que deve haver participação das unidades da federação na execução da política indigenista, inclusive com execução de emendas parlamentares e construção de um sistema de financiamento a partir de receitas tributárias.



Também fazem parte das prioridades a reestruturação da carreira de servidores. Ao abordar condições de trabalho, foi apontada a necessidade de transformação da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato, área em que Bruno Pereira atuava, em unidade gestora com autonomia para que as Frentes de Proteção Etnoambientais possam trabalhar de acordo com características sociais, físicas e culturais dos povos que cada uma atende.

 

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