12 Abril 2022
Visibilizar “todas aquelas feridas que esses megaprojetos extrativistas causam à América Latina”, foi o objetivo da Caravana pela Ecologia Integral em Tempos de Extrativismos, formada por 10 pessoas da Colômbia, Equador, Honduras e Brasil, que de 22 de março a 6 de abril visitou Alemanha, Itália, Bélgica, Áustria e Espanha.
Uma dessas pessoas foi Dom Vicente de Paula Ferreira, secretário da Comissão Especial para a Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que de volta ao Brasil, nesta entrevista explica o vivenciado nos encontros e o que isso significa para as comunidades atingidas pela mineração, vítimas de crimes que soterram o futuro de muita gente.
A entrevista é de Luis Miguel Modino.
Como foi sua experiência de poder visitar diversos países da Europa para poder dar visibilidade à realidade da mineração na América Latina?
Nós, a Caravana pela Ecologia Integral em Tempos de Extrativismos, fomos um grupo da Rede Igrejas e Mineração de 10 pessoas, da Colômbia, Equador, Honduras e Brasil. A palavra exatamente é essa, visibilização de todas aquelas feridas que esses megaprojetos extrativistas causam à América Latina.
Inclusive trazendo crimes como o de Brumadinho, o de Mariana, levamos também a realidade de Piquiá de Baixo no Maranhão, de Putumayo e Caldas, na Colômbia, para mostrar essas vozes às entidades eclesiais e civis de cinco países na Europa, que foi Alemanha, Itália, Bélgica, Áustria e Espanha. Não são só denúncias, são também anúncios, como nós respondemos várias vezes quando nos perguntavam: Mas qual a alternativa?
A alternativa principal, fundamental, é que as nossas comunidades precisam ter a soberania de escolher o seu modo de vida, e é o que a mineração muitas vezes não faz, porque ela acaba impondo os seus projetos à custa inclusive da expulsão das famílias dos seus territórios, com a poluição do ar, a contaminação da água, a devastação da natureza. Foi essa a experiência que eu tive nessa caravana.
Qual tem sido a reação da sociedade civil e da Igreja da Europa diante daquilo que foi denunciado e anunciado?
Muita empatia, muita acolhida, sensibilidade, apesar de constatarmos que a Igreja ainda está muito lenta nessa temática da Laudato Si, da ecologia integral. A própria sociedade nas suas organizações maiores não ter levado a sério esses tratados para a proteção do meio ambiente, para o combate do aquecimento global. Apesar da gente sentir de alguma forma que há uma impotência de nossa parte, mas os grupos que falaram conosco mostraram muita acolhida, e pudemos até reforçar também nossas parcerias.
Aqui no Brasil, por exemplo, há projetos concretos que são amparados por algumas instituições eclesiais, que ajudam a gente a construir projetos de vida para as nossas comunidades. Eu senti muita empatia, muita acolhida, e compromissos também. Por exemplo, do ponto de vista da sociedade civil, há um empenho de organizações para a construção da lei de devida diligência, que a Europa está em processo de construção, que é exatamente responsabilizar as empresas em toda a cadeia de produção, e também defender aqueles que são vítimas desses processos extrativos.
Como ajudar a Igreja na Europa, na América Latina, no mundo todo, a tomar consciência que o cuidado da Casa Comum é uma missão de todo batizado e da própria Igreja?
A primeira é passar por um processo de conversão pessoal, eu dou esse testemunho meu. Não podemos ficar esperando a iniciativa dos outros. Se temos consciência, vamos fazer aquilo que está ao nosso alcance. No meu caso, isso é visível. Por onde a gente começaria? Pelo testemunho concreto nos territórios, nós precisamos abraçar uma causa concreta, não adianta ficar falando de coisas abstratas. No meu caso, eu acompanho Brumadinho, e estou lá junto com as comunidades. E tantos outros que aparecem porque estão abraçando causas concretas.
Um ponto que é fundamental é a disputa pela linguagem, pela narrativa, pela visibilidade. Infelizmente, esse sistema hegemônico, capitalista, que está aí, que só pensa no lucro, tem o poder da comunicação em suas mãos. Por exemplo, a Vale, ela monstra o que está fazendo, mas aquilo que ela não faz, e a dor do povo que sofre com seus crimes, ela não mostra. Então, ajudar a Igreja é também ajudar a tornar isso visível para as nossas próprias lideranças e fiéis. Outro ponto que eu destaco é a formação, produzir materiais formativos para grupos de catequese, de jovens, de famílias, para conscientizar a nossa Igreja.
O senhor tem acompanhado de perto a realidade de Brumadinho, um dos maiores crimes ambientais na história do Brasil. Para o povo que mora em Brumadinho e em outras regiões fortemente atingidas pelas consequências da mineração, o que significa este tipo de iniciativas como a caravana que recentemente finalizou?
Mostrar que estas comunidades são feridas e ao mesmo tempo têm vida, sonhos, querem viver uma vida feliz, nós logramos isso com muito entusiasmo; colocar Brumadinho na mesa de organizações internacionais, o discurso de Igreja no Vaticano, no Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, levar os casos de Mariana, de Piquiá, mostrar que o nosso povo sofre, ele está ferido, mas ele quer viver, ele tem projetos de agroecologia, de turismo, tem espiritualidade, tem vida de Igreja, tem sonhos, tem desejo, que necessariamente não passam pela mineração.
As pessoas, as comunidades, elas têm outros projetos e devem ser respeitados na sua autonomia de decidir o seu futuro. A caravana deu um grande impulso para mostrar a memória de tudo isso que está acontecendo.
O senhor falou da visita ao Discastério para o Desenvolvimento Humano Integral. O que significa para Igrejas e Mineração essa atenção por parte do Vaticano?
Significa muito, eu fiz a sugestão de que nós devemos caminhar mais próximos. Nós fizemos uma reunião, o Dicastério está em transição, e nós fomos acolhidos por uma parte da coordenação, pela irmã Alessandra Smerilli, e ela nos inseriu em movimentos muito importantes. A gente não foi só para pedir, foi também para levar a nossa experiência, e eu creio que a experiência de resistência de América Latina, com tantas redes de defesa da vida, dos direitos humanos e da natureza, pode contribuir muito com o Vaticano, com o Dicastério.
Nós não fomos lá só pedir ajuda do Vaticano, nós fomos lá para oferecer a nossa história, a nossa espiritualidade, a nossa defesa dos nossos povos e as experiências concretas que nós temos no nosso território. Isso também trouxemos como tarefa, caminhar ainda mais próximos a esse Dicastério, que é o lugar mais importante para a gente discutir em termos de Igreja universal, Igreja católica, a questão da ecologia integral.
De cara ao futuro, pensando na vida das comunidades que são acompanhadas por Igrejas e Mineração, o que pode representar esta caravana e as luzes encontradas nos diversos lugares e entidades que visitaram?
A gente não consegue resistir ou propor alternativas se a gente não conhece profundamente a nossa realidade global. Esses problemas, Mariana, Brumadinho, não são só problemas locais, isso é um estilo, é fruto de um capitalismo global, que está profundamente questionado. E como modelo de economia global, profundamente ferido, e causando sérios danos a tantos milhões de pessoas no mundo e à natureza.
Mostrar um olhar crítico sobre essa realidade, para a gente não sofrer aquilo que sofremos em tantos territórios, que é a alienação. É como se a mineração fosse assim, sempre foi, vai continuar assim e a gente não pode mudar. Primeiro é levantar a questão, questionar esse modelo, depois trazer, como nós trouxemos, que as comunidades têm vida, elas têm projetos. Muitas vezes os projetos são sacrificados em nome de um lucro que nem fica no nosso território, ele vai para fora.
Mostrar às comunidades a sua importância, a importância do seu cântico, da sua dança, da sua família, do seu rio, da sua agricultura familiar, dos seus pequenos projetos de comércio, da sua culinária, do seu jeito de ser. Isso aí reforça demais. A caravana mostra o jeito latino-americano de ser, isso ajuda demais.
Qual sua mensagem para o episcopado e para a Igreja do Brasil e da América Latina diante dessa realidade da mineração e as consequências que ela está tendo na vida do povo?
Esse tema não é um tema secundário, ele é transversal, ele é primordial, ele é urgente. Com a guerra agora vai sobrecarregar em nosso continente latino-americano, na África, porque vai faltar matéria prima. Então vão acelerar os processos de destruição dos nossos territórios, de exploração.
A Igreja precisa acelerar o seu processo de resistência e de defesa dos nossos povos. Nós, inclusive, e isso é importante ressaltar, propomos a desinversão em mineradoras que destroem os nossos territórios, os nossos povos. Nós enquanto Igreja não podemos compactuar com esses modelos econômicos, inclusive recebendo doações. Estamos precisando saber onde é que estão os nossos investimentos, quais são os bancos, de onde esse dinheiro vem.
Eu não posso aceitar que uma Vale, que mata tanta gente em Brumadinho, depois venha “bondosamente” reformar a minha Igreja. Mata a pessoa e depois vai com as flores no cemitério e a gente vai aplaudir porque ela é boa, porque doou. Quem está matando nosso povo é ela.
O próprio desinvestimento, não receber recursos, não investir, não apostar nesse modelo. É uma tarefa importantíssima para nós que somos coordenadores de dioceses, para o episcopado, para os padres, fazer sempre esse discernimento, onde é que nós estamos investindo os nossos recursos. Eles são de fundos que são éticos ou de fundos que são criminosos?
E isso deve nos colocar, nos ajudar, enquanto formadores de opinião, a ter coragem de dizer isso publicamente. A nos mostrar nas redes sociais, a nos mostrar na televisão, nas homilias, onde nós estamos, esses projetos. Porque de fato, o nosso povo não tem condições de se defender sozinho, e nós temos uma responsabilidade social diante de tantas pessoas, a gente tem voz. O que a gente vive é em favor dessas vítimas, e não em favor do sistema que está ferindo nosso povo e a terra.
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Caravana pela Ecologia Integral. Entrevista com Dom Vicente Ferreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU