07 Abril 2022
"Hoje vivemos um pesadelo. Há um ator-presidente que se torna presidente-ator, que pede a dissolução da ONU, caso ela ainda se oponha ao risco de uma guerra nuclear, e temos o mundo inteiro transformado em um imenso estúdio de televisão onde ocorrem as coisas mais extremas, senão até as mais inacreditáveis".
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 06-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando os homens estavam em seus inícios, eles se interrogavam para entender o que era a justiça. E Sócrates, como conta Platão na “República”, falando com Glauco, que era irmão do próprio Platão, dizia que a justiça consiste no fato de “cada um fazer o que lhe é próprio”, ou seja, em um sentido mais filosófico, que cada um seja quem é, que as coisas se desenvolvam de acordo com a sua natureza.
O cinema representa, mas não muda as coisas. A televisão, por sua vez, tem hoje o poder de mudar a natureza das coisas e atribuir como bem entender os papéis que deseja às pessoas. Aí reside um grande perigo.
Pensemos, por exemplo, o que teria sido se o “grande ditador” personificado por Charlot, como Charlie Chaplin era chamado, tivesse realmente se tornado o Führer dos alemães, ou se o Dr. Fantástico, a partir do Pentágono, tivesse realmente tomado nas mãos os destinos do mundo.
Hoje vivemos um pesadelo. Há um ator-presidente que se torna presidente-ator, que pede a dissolução da ONU, caso ela ainda se oponha ao risco de uma guerra nuclear, e temos o mundo inteiro transformado em um imenso estúdio de televisão onde ocorrem as coisas mais extremas, senão até as mais inacreditáveis.
A história é que a Rússia, depois de se sentar à mesa de negociações em Istambul, para aliviar a tensão, decidiu se retirar de Bucha. Mas organizou uma assombrosa prova da sua própria crueldade, com um massacre brutal que encheu as ruas de vítimas não apenas mortas, mas também dilaceradas de todos os modos.
O prefeito de Bucha, todo contente pela libertação da cidade, concedeu uma entrevista em que aparece sorridente e orgulhoso pela vitória obtida, e no dia seguinte vídeos da polícia ucraniana mostram as ruas devastadas como estão em todos os pós-guerra, mas sem vestígios de massacres.
Entretanto, um gigantesco conjunto de satélites estava sendo preparado, e quatro dias depois o mundo inteiro, atônito, viu uma rua onde vários cadáveres estavam dispostos em intervalos regulares, com a mesma postura, de bruços, com os mais fantasiosos sinais de violência e de perversões.
Nessa história, Putin foi denunciado ao tribunal de Haia, porque se pensa que, como Rei soldado, deu as ordens do genocídio diretamente aos seus soldados (o que significa: matem o soldado Putin), e assim o líder russo não apenas faz as vezes de um ditador sanguinário, criminoso e assassino, mas também incrivelmente estúpido, autodestrutivo e idiota útil em vantagem dos seus inimigos, mas responsável por uma grande nação da Terra e centenas de milhões de pessoas.
A história continua com a execração universal, e como poderia não ser assim, se se trata de uma história de verdade? Mas, se for verdadeira, em que mundo estamos, com que homem, com que irmãos, com que Deus?
Não temos palavras. Somente uma leve suspeita de que a realidade adaptada a um espetáculo e o próprio espetáculo tornado realidade nos levam, sob a pressão da visão a distância da televisão, ao fim do mundo.
Este que escreve lembra dos seus jovens anos, quando trabalhava na televisão em um programa jornalístico que se chamava TV 7. Estávamos com Barbato, Furio Colombo, Giuseppe Fiori, Fabiani, Mimmo Scarano e outros grandes jornalistas, todos ávidos por dar ao jovem serviço público que era a Rai uma informação convincente, fiel, não obediente a censuras.
Um dia, chegou do Brasil um vídeo que narrava uma manifestação de operários contra os quais a polícia havia atirado – como, infelizmente, às vezes também ocorria na Itália – e matado um deles. E aquele cortejo de maravilhosos operários havia tomado o cadáver e, em procissão, o havia levado até as portas do Parlamento do Rio de Janeiro (que era então a capital) e o havia deixado lá, como se o estivesse devolvendo ao poder que o havia matado.
Estávamos prestes a transmiti-lo, mas Ettore Bernabei, que havia entendido antes de nós a ambivalente onipotência do meio, nos impediu, pensando que desse modo daríamos a ideia para a próxima tragédia de descarregar o morto na porta do Montecitório [sede da Câmara dos Deputados da Itália]. Era uma censura. Mas agora eu penso que ele tinha razão.
Na época, porém, tratava-se apenas do pequeno teatro italiano. Agora, a cena está em todo o mundo, e até mesmo as mentiras que a razão de Estado sugere aos poderosos têm um efeito diferente se o mundo mudou. O falso incidente no Golfo de Tonkin, depois admitido pelos “Pentagon Papers”, só serviu para legitimar a Guerra do Vietnã. O falso frasco do extermínio agitado na ONU por Colin Powell, do qual ele mesmo depois se arrependeu, só serviu para fazer a guerra contra o Iraque e para mandar Saddam Hussein à morte. Só se fez uso do discutido massacre de Račak para motivar a guerra da Otan, para o Kosovo punir a Sérvia e para fazer Milošević morrer na prisão: mas hoje o espetáculo é universal, uma propaganda servil pode servir para rasgar o mundo. Hoje, os atores protagonistas aparecem ao vivo em todas as telas domésticas e em muitas salas parlamentares do planeta, podem incitar ao ódio e à vingança, fazer crer que não há mais nada a ser feito, que a guerra é um fato da natureza, e a paz, um artifício, para derrubar o tabu da bomba, para suprimir, junto com a ONU, o direito e sua justiça, independentemente de como ela foi definida por Sócrates ou por Platão.
Mas, na realidade, não há uma televisão em jogo. O que está em jogo é o coração, o “quem é do homem”.
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A morte do soldado Putin. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU