06 Abril 2022
“Mas assim como o racismo é um problema dos brancos, o abuso sexual na Igreja é um problema do clero. E assim como os brancos precisam nomear e confrontar a 'fragilidade branca', então superar o desconforto que fomos socializados para evitar e ignorar em uma sociedade de supremacia branca, também nós, padres, bispos e precisamos nomear e confrontar a 'fragilidade clerical', e então enfrentar o desconforto que nós temos socializado para evitá-lo e ignorá-lo em uma Igreja marcada pelo persistente pecado do clericalismo”, escreve Daniel P. Horan, franciscano estadunidense, diretor do Centro de Espiritualidade e professor de Filosofia, Estudos Religiosos e Teologia no Saint Mary’s College, nos Estados Unidos, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 06-04-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Na última semana duas das maiores universidades católicas dos EUA realizaram conferências ligadas a pesquisas históricas e teológicas sobre o abuso sexual na Igreja Católica.
O primeiro, um simpósio intitulado “Gênero, Sexo e Poder: para uma história dos abusos sexuais do clero na Igreja Católica dos EUA”, ocorreu de 27 a 29 de março promovido pelo Cushwa Center for the Study of American Catholicism na University of Notre Dame.
O segundo, uma conferência intitulada “‘Nossas transgressões ante vocês são muitas, e nossos pecados testemunham contra nós’ (Is 59, 12a): Re-imaginando a Igreja à luz da colonização e do abuso sexual católico”, ocorrido pela Gonzaga University, de 31 de março a 03 de abril.
Embora eu estivesse fora da cidade e não tenha conseguido participar do evento da Notre Dame, eu fui convidado para participar da conferência na Gonzaga, a qual teve apoio do projeto “Taking Responsability” baseado na Fordham University. O primeiro grupo de trabalho consistia de aproximadamente 40 acadêmicos de toda América do Norte, a maioria historiadores e teólogos (incluindo alguns que apresentaram ou assistiram ao simpósio de Notre Dame há poucos dias). Embora duas sessões plenárias fossem públicas, a maioria dos trabalhos eram fechados apenas para participantes convidados.
Sem divulgar muitos detalhes, eu vou dizer que a qualidade dos acadêmicos, o nível da discussão, e a seriedade e sinceridade de todos os participantes era excepcional. O evento da Gonzaga era especialmente significativo dado o foco particular sobre a intersecção do abuso sexual com a história do colonialismo e o racismo sistêmico na Igreja Católica nos Estados Unidos, algo raramente explorado nas discussões de abuso e encobrimento clerical.
Ainda durante a conferência eu comecei pensando sobre a notável falta de acadêmicos ordenados envolvidos no trabalho de engajamento na terrível história de abuso sexual na Igreja, tanto representados nestes encontros específicos quanto mais amplamente. Por exemplo, de nove acadêmicos clérigos convidados a participar, apenas três de nós estavam presentes. Mas isso também me chamou a atenção pois poucos membros da comunidade jesuíta da Gonzaga vieram em pessoa para as palestras públicas sobre o tema do abuso clerical.
Os organizadores e participantes do evento em Notre Dame também me disseram que estavam cientes de apenas dois membros da Congregação da Santa Cruz que participaram de todo ou parte do simpósio, e um era um pós-doutorando obrigado a estar lá. Para contextualizar, a Corby Hall abriga mais de 60 membros da congregação e é apenas uma das quatro principais residências da comunidade no campus.
Esta não é a única vez que vejo clérigos se ausentando de se envolver no acerto de contas público ou acadêmico com a história e a realidade do abuso sexual do clero. Há muitas razões pelas quais o clero pode optar por não comparecer ou participar de tais eventos, incluindo conflitos de agenda ou outras desculpas legítimas. Ainda assim, em outros casos, alguns clérigos foram hostis, defensivos ou reivindicando o status de vitimização para a investigação contínua do abuso e seu encobrimento. Vimos esse tipo de defesa clerical ao longo dos anos, até mesmo do Papa Francisco, e mais recentemente em algumas defesas do Papa emérito Bento XVI na sequência de revelações de sua própria má gestão de casos de abuso enquanto arcebispo de Munique.
Estive presente em conversas nas quais alguns membros de comunidades religiosas e padres diocesanos expressaram opiniões que sugerem que eles – o clero – veem a si mesmos, sua comunidade ou a Igreja em geral como aqueles “realmente” sob ataque. Alguns chegam ao ponto de condenar a investigação “injusta” ou “negativa” sobre casos passados de abuso ou responsabilidade coletiva por parte das comunidades hoje. Eu não fiz nada de errado! Por que eu tenho que lidar com isso? Como que isso é problema meu? Conversas com colegas confirmam que não sou o único que vivenciou esse tipo de comentário.
Ao tentar questionar por que tantos de meus colegas clérigos se ausentaram ou se engajaram em estratégias defensivas, me peguei refletindo sobre o racismo sistêmico e o privilégio branco como analogias do abuso sexual do clero e um fator agravante nesse fenômeno horrível. Nesse contexto, o clericalismo serve como um paralelo ao privilégio branco, assim como a injustiça sistêmica do abuso do clero muitas vezes é paralela ao racismo sistêmico.
Por definição, o clericalismo – esse mal institucional que o Papa Francisco denuncia regularmente – é um sistema de privilégios, benefícios, presunções de boa vontade e direitos baseados apenas em uma pessoa ser um ministro ordenado (ou, às vezes, um membro não ordenado de uma comunidade religiosa). Isso demarca alguns membros da igreja como “apartados” e, em suas formas mais distorcidas, apresenta os clérigos como “mais santos”, incapazes de serem questionados, com direito a tratamento especial e autoridade absoluta. A própria natureza do clericalismo conspira para impedir que aqueles que se beneficiam dele – incluindo seus críticos como eu – vejam todo o alcance de seu impacto.
O clericalismo também cria uma cultura de isolamento de muitas realidades duras e fatos desconcertantes. E quando muitos clérigos são confrontados à força com as verdades esmagadoramente dolorosas e perturbadoras da crise de abuso e seu encobrimento, o que vem à tona é a defesa, o desdém, a esquiva e outros comportamentos e estratégias.
A partir do trabalho da acadêmica e ativista antirracismo Robin DiAngelo, que em 2011 cunhou o termo “fragilidade branca” para descrever o fenômeno da incapacidade dos brancos de “tolerar o estresse racial” em uma sociedade de supremacia branca e sistemicamente racista. Eu acredito que muitos clérigos católicos hoje sofrem de “fragilidade clerical”.
DiAngelo observa que os estadunidenses brancos vivem, muitas vezes inconscientemente, em um ambiente isolado e esse “ambiente isolado de privilégio racial cria expectativas brancas de conforto racial e, ao mesmo tempo, diminui a capacidade de tolerar o estresse racial”. Isso é, claro, um sintoma e efeito do privilégio branco.
Comparativamente, por causa do isolamento e conforto providos pelo clericalismo, padres, bispos e diáconos lutam em contextos onde devem enfrentar as realidades da crise dos abusos. Podemos ver com que facilidade até mesmo uma quantidade mínima de estresse relacionado ao abuso se torna, como diz DiAngelo, “intolerável, desencadeando uma série de movimentos defensivos”. Ela acrescenta: “esses movimentos incluem a exibição externa de emoções como raiva, medo e culpa, e comportamentos como argumentação, silêncio e fuga da situação indutora de estresse”.
De repente, a ausência deliberada do clero de conversas sobre a crise de abuso ou seus comportamentos defensivo e justificativo dentro de tais contextos faça muito sentido.
Posso me relacionar com a descrição. No mesmo dia em que propus a analogia da “fragilidade clerical” a meus colegas acadêmicos em uma discussão, assisti a uma palestra plenária da professora Kathleen Holscher, da Universidade do Novo México, sobre a história do abuso do clero no sudoeste dos EUA.
Em um ponto, ela colocou uma lista de nomes daqueles documentados como abusadores na Diocese de Gallup durante o século XX. Cerca de 10 deles tinham “OFM” após seus nomes. Eu não conhecia nenhum desses frades, não reconheci nenhum dos nomes, nem sou da província que forneceu principalmente os “missionários” para as reservas indígenas estadunidenses, mas esses detalhes não importam. Em apenas alguns segundos, senti uma montanha-russa de emoções, da raiva de meus irmãos históricos na vida franciscana ao medo da culpa por associação à vergonha por estar afiliado a tal maldade à indignação justa pelo dano sem sentido e indescritível perpetrado em pessoas tão vulneráveis.
Enfrentar esses fatos históricos simples, contundentes e perturbadores foi avassalador, desconfortável e até doloroso. Eu gostaria que esses milhares de casos de abuso e violência não existissem, mas fingir que não existiram não vai melhorar nada. Como padre franciscano cúmplice do pecado estrutural do clericalismo da Igreja, conheço a experiência do que chamo de “fragilidade clerical”. Conheço o desejo de fingir que a Carta de Dallas resolveu todos os problemas, de evitar o tema e a realidade do abuso e de me ausentar de contextos difíceis, assim como conheço a experiência de ser socializado como um homem branco cisgênero nas condições dos Estados Unidos experimentar formas de fragilidade tanto branca quanto masculina.
Mas assim como o racismo é um problema dos brancos, o abuso sexual na Igreja é um problema do clero. E assim como os brancos precisam nomear e confrontar a “fragilidade branca”, então superar o desconforto que fomos socializados para evitar e ignorar em uma sociedade de supremacia branca, também nós, padres, bispos precisamos nomear e confrontar a “fragilidade clerical”, e então enfrentar o desconforto que nós temos socializado para evitá-lo e ignorá-lo em uma Igreja marcada pelo persistente pecado do clericalismo.
Só então podemos começar a conhecer e falar a verdade, trabalhar pela justiça e garantir que o Reino de Deus é o que governa as ações da Igreja e seus ministros, em vez do uso abusivo do poder racista, colonial e clerical.
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A Igreja precisa nomear e confrontar a “fragilidade clerical”. Artigo de Daniel P. Horan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU