21 Março 2022
Pesquisa “Elemento Suspeito” comprova racismo e classismo da PM do Rio de Janeiro e identifica o alvo preferencial das abordagens: o jovem, de gênero masculino, negro e de baixa renda. Após duas décadas do estudo, a situação só se agravou.
A pesquisa é de Silvia Ramos, Itamar Silva, Diego Francisco e Pedro Paulo da Silva, do CESeC, publicada por WikiFavelas e reproduzida por OutrasPalavras, 16-03-2022.
Somente nos últimos sete dias, dois casos de injúria racial cometidos no Rio de Janeiro ganharam espaço na mídia e nas redes sociais. Igor Palhano, dentista, de 30 anos, foi impedido de sair de um shopping da zona oeste antes de comprovar com documentos a propriedade de sua moto. Quatro dias depois, a empresária Sarah Fonseca, de 28 anos, foi interceptada por um segurança “da associação de lojistas do bairro” ao abordar seu próprio namorado e sua sogra, que tomavam café numa padaria de Ipanema, na zona sul do Rio, sob a alegação de que estaria “pedindo dinheiro ou importunando”. Talvez os casos não tivessem tanta repercussão se não envolvessem vítimas com alguma visibilidade: Igor é filho do sambista e humorista Mussum, e Sarah – que é influencer digital com mais de 600 mil seguidores no Instagram – mesmo muito abalada conseguiu reunir forças para denunciar o episódio racista em tempo real nas suas redes. Os dois casos foram registrados na Delegacia de Combate a Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), mas, conforme apontam os resultados da pesquisa Elemento Suspeito, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), eles engrossam uma realidade comum e muito pouco notificada, pela qual os jovens negros passam diariamente ao ir e vir pela cidade.
Achille Mbembe (2014, p.197) explica que a raça é uma moeda icônica, que aparece por ocasião de um comércio dos olhares. “É uma moeda cuja função é converter o que se vê (ou o que prefere não ver) em uma espécie ou um símbolo no interior de uma economia geral dos signos e das imagens que se trocam, que circulam, às quais se atribui ou não valor e que autorizam uma série de juízos e de atitudes práticas”.
O verbete do Dicionário de Favelas Marielle Franco, sobre a pesquisa Elemento Suspeito destaca a dimensão do trauma coletivo que representam as abordagens infundadas e violentas a jovens negros no Rio de Janeiro, que só nos dias atuais vêm sendo explicitamente relacionadas à questão do racismo estrutural da sociedade brasileira. A incidência do indicador de Idade, Gênero, Classe, Cor e Território (IGCCT), criado pelos pesquisadores do CESeC, reforça essa dura realidade: apesar dos casos que ganharam espaço na mídia serem de jovens de classe média/alta, os “elementos suspeitos” de antemão, são mais homens do que mulheres, mais negros do que brancos, mais pobres, mais jovens e mais moradores de favelas e bairros de periferia do que a média da cidade.
Todo esse conjunto de evidências deveria ser mais do que suficiente para tornar inegável que o Estado brasileiro tem no racismo um pilar fundamental de sua lógica de funcionamento. A abordagem da polícia ou das forças de segurança privada é apenas uma ponta desse sistema, que se consolida no encarceramento em massa da população negra. Segundo Juliana Borges (2019), dois em cada três presos são negros, a maioria na condição de presos provisórios – ou seja, ainda aguardando julgamento. No outro extremo dessa engrenagem, por sua vez, encontramos a desmobilização e desconsideração da legislação antirracista por parte de promotores e juízes. Em 2016, pesquisadoras do Afro Cebrap analisaram os bancos de dados de decisões de tribunais de justiça de nove estados brasileiros, e identificaram que a maioria dos casos que envolviam o proferimento de insultos raciais acabavam classificados como “injúria simples” ou “ofensa à dignidade ou decoro de alguém”. Em geral os magistrados alegam ausência de provas sobre a intenção deliberada de discriminar racialmente para que esses casos fossem enquadrados como “injúria racial”.
Se uma das grandes vitórias dos movimentos negros brasileiros é o fato de que racismo aparece como crime inafiançável e imprescritível na Constituição Federal, a realidade nos mostra que ainda estamos muito longe de fazer valer a letra da lei. Em artigo de opinião magistral, Conrado Hubner argumenta que existe uma “Constituição não escrita da brutalidade brasileira” onde “todos são iguais perante a lei, exceto pretos, etc.”; e onde “preto se presume suspeito até prova robusta em contrário”. A pesquisa Elemento Suspeito se debruça exatamente sobre as manifestações dessa norma “oculta” que organiza os comportamentos das forças do Estado brasileiro, retroalimentando desigualdades a partir da discriminação racial.
(Introdução elaborada pelo Dicionário de Favelas.)
Verbete: Elemento suspeito: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro (pesquisa)
Por Silvia Ramos, Itamar Silva, Diego Francisco e Pedro Paulo da Silva, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)
A publicação “Elemento suspeito: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro” (2021) é a primeira de uma série e lança novas perspectivas conceituais que animam o projeto empírico, quase 20 anos depois da primeira pesquisa “Elemento Suspeito” realizada em 2003. Os números sobre a realidade atual e as comparações com resultados do levantamento anterior aparecerão nos próximos documentos.
A pesquisa pretende conhecer a incidência de abordagens policiais nas ruas da cidade do Rio de Janeiro nos diferentes grupos geracionais, raciais e territoriais, a qualidade dessas interações e as opiniões de diferentes setores da população sobre a polícia.
Em 2003, a primeira pesquisa Elemento Suspeito, realizada pelo CESeC na cidade do Rio de Janeiro, buscou entender quais seriam os critérios de viés e seleção empregados pelas forças de segurança na realização de suas ações de abordagem. Em outras palavras, a proposta era compreender quais cidadãos estavam mais sujeitos a serem parados e revistados por policiais no dia a dia, ou seja, transitando pela cidade fora de ocorrências policiais.
Combinando elementos quantitativos e qualitativos, naquela primeira edição, os resultados da pesquisa confirmaram que jovens do gênero masculino, negros e pessoas de menor renda eram desproporcionalmente mais abordados pela polícia. Além disso, este grupo considerava tais abordagens mais agressivas do que outros perfis de pessoas também abordadas. Na sua segunda edição, realizada em 2021 – quase 20 anos e muitos eventos depois, tais como uma intervenção federal no estado do Rio de Janeiro e uma pandemia mundial – a pesquisa visava entender se houve alteração das abordagens policiais no dia a dia da cidade, e se teria mudado a percepção da população carioca com relação a elas.
“Entre uma pesquisa e a outra passaram-se cinco governos estaduais (Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral, Luiz Fernando Pezão, Wilson Witzel e Cláudio Castro) e 14 comandos diferentes na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), que patrulha as ruas da cidade e realiza a maioria das abordagens. Ocorreram, ainda, várias experiências em segurança pública. Houve tempo suficiente para a polícia mudar. Durante esse longo período, também, as câmeras de videomonitoramento, oficiais e particulares, multiplicaram-se em escala nas ruas do Rio e foi testado um sistema de reconhecimento facial de pessoas, entre outros modelos de policiamento” (CESEC, 2021, p.5).
A partir da realização de grupos focais, entrevistas aprofundadas, e com o apoio do Datafolha, empresa especializada na realização de pesquisas no Rio de Janeiro, a partir da condição básica de todos os participantes terem tido experiência prévia com abordagens policiais, foram agrupados membros dos seguintes grupos sociais: jovens negros moradores de favelas; jovens negras, travestis e transexuais moradoras de favelas; entregadores que trabalham com motos ou bicicletas; motoristas de aplicativos de ambos os gêneros; jovens brancos; estudantes negros universitários e praças negros da Polícia Militar.
Além disso, nos dias 4, 5 e 6 de maio de 2021, equipes do Datafolha realizaram 3.500 entrevistas em pontos de fluxo da cidade, onde 739 pessoas responderam ao questionário completo, sendo uma amostra representativa dos moradores da cidade que já foram abordados pela polícia.
Em termos de distribuição por raça ou cor, a maior parte das pessoas abordadas era considerada negra (preta e parda). No que se refere às experiências, um dado que chama atenção é o de que 50% dos 739 entrevistados “[tiveram] parente ou amigo preso ou detido pela polícia”, e 46% “[presenciaram] pessoalmente policiais agredindo as pessoas” (CESEC, 2021, p. 10 – Gráfico 2).
A maior parte das abordagens acontece em carro próprio, seu ou de outra pessoa, a pé na rua ou na praia e no transporte público (ônibus, BRT, trem ou metrô).
Comparando o perfil geral dos abordados pela polícia com o perfil da população carioca, a pesquisa concluiu que aqueles são mais homens do que mulheres, mais negros do que brancos, mais pobres, mais jovens e mais moradores de favelas e bairros de periferia do que a média da cidade. Analisando os que foram abordados mais de dez vezes, esses números se potencializam: 94% eram homens, 66% eram negros, 50% tinham até 40 anos, 35% moravam em favelas, enquanto 33% moravam em bairros de periferia e 58% ganhavam de zero até três salários mínimos.
Tal realidade deu origem ao indicador IGCCT, cuja sigla é formada pelas iniciais dos marcadores Idade, Gênero, Cor, Classe e Território.
A discrepância entre a distribuição de cor da população carioca e dos que foram parados mais de dez vezes é chocante e confirma o fato de que especialmente jovens negros do gênero masculino são abordados excessivas vezes, particularmente quando circulam a pé na rua, em transporte público ou em motos. Se nos casos de abordagens da Lei Seca, de Uber ou carros pessoais, muitas vezes a polícia só demanda apresentação de documentos ou revista nos veículos, em cerca de 50% das abordagens acontece a revista corporal, reservada para indivíduos que policiais suspeitam que podem estar portando armas ou drogas. Dentro desse grupo, a pesquisa verificou que 84% eram homens, 69% eram negros (lembrando que apenas 48% dos cariocas são negros), e 70% eram moradores de favelas e bairros de periferia.
“Mesmo quando focalizamos apenas a população que já foi abordada pela polícia (sem contar os que nunca foram abordados), existem os superabordados, os freios de camburão, os mestres do enquadro. Aqueles que responderam terem sido ‘parados mais de dez vezes’ (e muitos desse grupo já foram parados centenas de vezes) compõem um setor da sociedade que representa quase um quinto dos já abordados (17%), que são alvo reiterado do olhar de incriminação prévia por agentes da lei. Sentem-se vistos como criminosos, sentem medo quando avistam policiais, pressentem e, de alguma forma, vivenciam as abordagens mesmo quando elas não acontecem.”
“Dia que não sou parado, chego em casa e acho até que aconteceu algo estranho.”
Jovem negro, entregador de moto.
“Eles tentam imprimir que a gente é o suspeito. A gente acaba até duvidando da própria honestidade.” Frase de jovem negro entrevistado durante a pesquisa.
Para os pesquisadores, a primeira grande contribuição da pesquisa atual está em apontar elementos que confirmam uma dimensão traumática de quem é comumente considerado “elemento suspeito” e, portanto, alvo preferencial das abordagens policiais cotidianas – ou seja, fora de contextos de ocorrências criminosas. Em teoria, esses procedimentos planejados e realizados por profissionais da segurança não deveriam ser temidos ou associados a medo, sentimento de impotência, ódio ou repulsa por parte das pessoas abordadas. Segundo o boletim com os resultados da investigação: “percebemos a presença de um novo personagem marcante na vida do Rio, que surgiu entre essas duas décadas: a consciência e o reconhecimento do racismo, por parte significativa de negros e brancos, como sendo o ‘elemento suspeito’, estruturante da atividade policial” (CESEC, 2021, p.11).
“Saber que aquela não é a última vez… A angústia de saber que você tá propenso a sofrer aquilo todo dia…” Jovem negro entrevistado.
Aprofundando a dimensão da angústia e do trauma coletivo gerado pelo reconhecimento do racismo estrutural como ponta de lança das abordagens policiais no Rio de Janeiro, a pesquisa pôde identificar alguns comportamentos recorrentes dos agentes públicos de segurança para com determinados grupos sociais. No caso das mulheres e mulheres trans, apesar de menos abordadas, a revista das bolsas e mesmo dos cabelos (penteados afro ou com tranças) à procura de drogas e outros objetos é um procedimento recorrente e invariavelmente constrangedor. Em 28% das abordagens mais recentes os entrevistados relataram terem tido armas apontadas para si ou para seus acompanhantes, além da violência verbal com o emprego de bordões ou xingamentos. A repetição contínua desses padrões de abordagens faz com que os entrevistados, especialmente os que sofrem influência do índice IGCCT – aumentando a probabilidade de serem abordados por policiais – preocupem-se continuamente em sair às ruas com roupas e cortes de cabelo que não chamem a atenção desses agentes, bem como sempre portar documentos pessoais e que comprovem a posse de veículos e objetos (como celular e computadores) que estejam portando consigo. Para esses “elementos suspeitos” por sua cor, idade, gênero, classe e território, o direito de ir e vir sem ser constrangido por forças de segurança passa por uma tensão e preocupação constantes.
Um dado interessante que a pesquisa mostra a partir da análise dos resultados por grupos focais é que os moradores de favelas e periferias e os entregadores que usam motos ou bicicletas atribuem as violências e desrespeitos que sofrem nas abordagens de rua ao racismo da polícia, enquanto motoristas de aplicativos e os próprios policiais não enxergam no racismo uma variável relevante nesses contextos.
“Eu já fui parado na Lagoa. Estava com um amigo negro. O tratamento foi completamente diferente, muito racista.” Jovem branco participante dos grupos focais.
“Quais são os critérios? O racismo é latente no Brasil. Se a gente estiver num grupo de negros, a gente vai ser minoria, mas eles não vêm pra cima da gente. Nós não sabemos o que é uma abordagem escrota porque não somos negros.” Jovem branco participante dos grupos focais.
Por fim, em termos de avaliação dos agentes de segurança, a Polícia Militar é a força com pior avaliação pelos que já foram abordados, considerada por 60% dos entrevistados muito corrupta e muito pouco eficiente (64%).
“As pessoas deveriam agradecer por serem paradas, porque mostra que a polícia está nas ruas trabalhando para segurança delas.” Fala de policial militar participante da pesquisa.
Em resumo, vinte anos depois da primeira investigação, a pesquisa aponta que a proporção geral das abordagens no conjunto da população se manteve relativamente em percentuais semelhantes.
“As abordagens se intensificaram em certas modalidades (por exemplo: motos), focalizaram mais a população negra (negros são maioria em todas as modalidades de abordagens) e se tornaram mais violentas. Foram relatadas muito mais experiências de ameaça e intimidação e muito mais armas apontadas diretamente para o abordado, levando em conta apenas a última abordagem. As revistas corporais, experiência mais constrangedora e assustadora nas abordagens, aumentaram significativamente. O quadro geral é de radicalização do foco no elemento suspeito. Os superparados, aqueles predominantemente negros, mais pobres, moradores de favelas e periferias, do gênero masculino, cresceram de 8,2% para 17%.” (CESEC, 2021, p.26)
No documento final com resultados da pesquisa, disponível no verbete da Wikifavelas, é possível ler, ainda, análises críticas elaboradas pelos pesquisadores Pedro Paulo da Silva, Diego Francisco e Itamar Silva, vinculados ao CESeC.
Veja também outros verbetes nas Categorias Temáticas Relações Étnico-Raciais e Violência, disponíveis no Wikifavelas – Dicionário de Favelas Marielle Franco.
BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. Pólen Produção Editorial Ltda., 2019.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Editora Antígona, 2014
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis; LIMA, Márcia; NERIS, Natália. Racismo e insulto racial na sociedade brasileira: dinâmicas de reconhecimento e invisibilização a partir do direito. Novos estudos CEBRAP, v. 35, p.11-28, 2016.
RAMOS, Silvia et al. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
RAMOS, Silvia et al. Negro trauma: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro. Livro eletrônico. Rio de Janeiro: CESeC, 2022.
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