Ex-diretor da FAO e coordenador do programa Fome Zero no governo Lula, José Graziano afirma que fome está em patamar que "nunca se tinha visto". Solução depende de crescimento e renda, não só de programas sociais, diz.
Menos de uma década após o Brasil ter deixado o Mapa da Fome, em 2014, o país vive hoje um aumento significativo da insegurança alimentar, que pode levar a uma "situação explosiva" antes do final do ano e precisa ser enfrentada pelas autoridades públicas e pela sociedade com urgência.
O alerta é de José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) de 2012 a 2019 e coordenador do programa Fome Zero no primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva.
Em entrevista à DW Brasil, Graziano, atualmente diretor do Instituto Fome Zero, afirma que a situação da fome no Brasil é hoje "muito mais difícil" do que quando o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, usou em 1992 o mote "quem tem fome tem pressa" para lançar sua campanha contra a insegurança alimentar.
"Além de atingir um número muito maior de famílias, como nunca se tinha visto antes no Brasil, nós não contamos com a ajuda do governo federal. São poucos os municípios e Estados que têm no combate à fome a sua prioridade. Eu, particularmente, que estive por 15 anos na FAO, parece que estou vendo um país em guerra", afirmou Graziano. "Algo tem que ser feito, um verdadeiro mutirão contra a fome, em 2022, para que o problema não saia do controle."
Segundo uma pesquisa realizada em dezembro de 2021 pelo Datafolha, 15% dos brasileiros, ou cerca de 32 milhões de pessoas, deixaram de fazer alguma refeição nos meses anteriores porque não tinham dinheiro para comprar comida. E 26%, ou 55 milhões de pessoas, haviam comido menos do que necessitavam porque não tinham dinheiro suficiente.
Para ele, o Bolsa Família foi um aliado crucial no combate à fome, mas apenas programas de transferência de renda não solucionam esse drama. "O mais importante no programa de erradicação da fome é geração de emprego e renda dentro de um processo de desenvolvimento econômico inclusivo, que distribua melhor a renda. Ou seja, o país precisa crescer e distribuir a renda gerada. É isso que acaba com a fome. Políticas de transferência de renda são atores coadjuvantes", afirma.
A entrevista é de Malu Delgado, publicado por Deutsche Welle, 01-03-2022.
O Brasil construiu um longo caminho para sair, em 2014, do Mapa da Fome. Em 2017, já se observava um retorno gradual do país à conhecida situação de insegurança alimentar. Hoje, pelo menos 55% da população vive nessas condições. Quais as causas desse retrocesso?
Na verdade, a gente já vê um declínio da segurança alimentar da população brasileira a partir de 2013, que se acentua muito nos últimos anos, a partir de 2018. A questão da fome hoje no país, e sempre, é uma questão de acesso. Não faltam alimentos. Falta dinheiro para a população comprar alimentos. Já era assim no tempo de Josué de Castro [médico, nutrólogo e autor do livro "Geografia da fome”, escrito em 1946, presidiu a FAO], há 75 anos, e agora está muito mais acentuado.
Eu listaria cinco causas mais importantes para esse rápido crescimento da fome:
1) Consequência da crise mundial: O Brasil passa por um período de baixo crescimento econômico, abaixo de 2% [por ano] é insuficiente para gerar emprego e renda. Consequentemente, aumenta a população desempregada ou ocupada informalmente, com baixíssimos salários.
2) Queda nos salários: A inflação se acentua e culmina com uma não valorização do salário mínimo, que deixa de ser reajustado acima da inflação. O salário mínimo serve de farol para o setor informal. Pesquisa do Dieese mostrou que, no último ano, praticamente todas as categorias não conseguiram repor nem mesmo as perdas inflacionárias nas negociações salariais.
3) Corte nas políticas sociais e de segurança alimentar: Houve um desmantelamento de políticas sociais e de segurança alimentar criadas no início dos anos 2000;
4) Descontrole inflacionário, particularmente nos últimos dois anos da pandemia: A inflação dos alimentos afeta mais a população mais pobre.
5) As políticas de transferência de renda do governo aplicadas durante a pandemia, via auxílio emergencial, foram insuficientes para evitar que mais gente fosse para baixo da linha da miséria. Com exceção do primeiro auxílio emergencial, que pagou R$ 600 para mais de 65 milhões de pessoas, todos os outros programas de transferência de renda não foram suficientes para evitar o agravamento da fome.
A pandemia agravou as vulnerabilidades e desigualdades sociais. Mas o quadro de fome no Brasil seria contínuo inevitavelmente, diante das políticas públicas (ou da ausência delas) adotadas pelo Executivo nos últimos anos?
A pandemia veio agravar o problema, mas não é sua causa original. Com mais concentração da renda, mais desemprego, menor crescimento, a situação só piorou e mais pessoas foram jogadas na miséria. Dizer o que teria sido sem a pandemia é difícil, mas pelo mapa da pesquisa Vigisan [projeto de monitoramento da condição alimentar e nutricional do Brasil, feito pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar Nutricional – Penssan], a trajetória do rápido crescimento da insegurança alimentar já era clara desde 2013 e se acentua muito em 2018. A falta de política de segurança alimentar e combate à fome do governo federal agravou muito essa situação, sem dúvida.
O Bolsa Família foi redesenhado na gestão Bolsonaro e há especialistas que apontam riscos para o êxito futuro da política de transferência de renda pelo desmonte nas áreas de educação e saúde. Como enxerga as mudanças no programa?
A mudança que foi feita, de extinguir o Bolsa Família e criar o Auxílio Brasil, foi apenas uma jogada de marketing num ano eleitoral, para eliminar a associação do Bolsa Família com o Lula. Não vi vantagem nenhuma, e isso é unânime entre especialistas, no novo desenho do programa. Pelo contrário, parece até uma coisa provisória, que é para conseguir emprego formal.
Sabemos que conseguir um emprego formal não é uma questão de tempo, para quem passa fome, seja pela falta de qualificação profissional, seja porque não há oferta suficiente de empregos gerados na economia pelo baixo crescimento econômico. O desenho do novo programa deixa muito a desejar. Mas o mais importante, na minha opinião, é ter claro que as políticas de transferência de renda são muito importantes para o contingente de população miserável, mas não resolvem o problema da fome.
O mais importante é geração de emprego e renda dentro de um processo de desenvolvimento econômico inclusivo, que distribua melhor a renda. Isso que acaba com a fome. Políticas de transferência de renda são o que chamo de atores coadjuvantes das políticas macroeconômicas. A valorização do salário mínimo, na minha opinião, foi a grande política que tirou o país do Mapa da Fome nos governos Lula.
A fome é um fenômeno multifacetado, sobretudo no Brasil, pelas camadas de desigualdade. Vê alguma possibilidade de o país dar respostas céleres ao problema no momento atual?
A situação atual é dramática, em várias frentes. Mas o Brasil tem que enfrentar esse problema desde já. O problema da fome não pode ser deixado para um próximo governo, em 2023. Algo precisa ser feito em 2022. Senão, vamos chegar a uma situação explosiva no final do ano. A fome praticamente dobrou na pandemia, pelos dados de que dispomos. Hoje, em 2022, com eleição, só os municípios têm condições de tomar iniciativas, já que o governo federal e os governos estaduais estão totalmente absorvidos pelo processo eleitoral. Mas os municípios podem fazer muita coisa, restaurantes populares, feiras livres, apoio à agricultura familiar, hortas comunitárias... Os municípios têm os Conseas (Conselhos de Segurança Alimentar). Eles não foram extintos, como foi o Consea Federal. E os conselhos podem fazer muito nos municípios, organizar mutirões contra a fome, campanhas de arrecadação e distribuição de alimentos, implantar bancos de alimentos, melhoria de acesso da população mais pobre a alimentos. Algo tem que ser feito, um verdadeiro mutirão contra a fome, em 2022, para que o problema não saia do controle.
Existe uma espécie de negligência ou normalização do problema por parte das autoridades governamentais e da sociedade brasileira? Os movimentos da sociedade civil que tentam aplacar a fome podem ser comparados à mobilização nacional à qual assistimos na década de 90, com Betinho?
Sem dúvida há uma negligência por parte do governo federal, e muitos Estados e municípios também têm feito corpo mole. A pandemia virou a desculpa perfeita para essa inação de grande parte do setor público que lava as mãos frente à questão da fome. A fome tem crescido assustadoramente na pandemia. O último dado que temos é uma pesquisa Datafolha, de dezembro de 2021, que mostrou que 15% da população adulta, cerca de 32 milhões de pessoas, tinham deixado de comer porque não tinham dinheiro para comprar comida. E 26%, ou seja, 55 milhões de pessoas, haviam comido menos do que necessitavam porque não tinham dinheiro para comprar mais alimentos no segundo ano da pandemia. Isso é aproximadamente o dobro do que tinha sido registrado um ano antes pela Unicef. Ou seja, a fome dobrou no segundo ano da pandemia.
As organizações da sociedade civil estão fazendo o possível, muitas vezes o impossível. Nota-se claramente uma canseira, fadiga dos doadores. É muito difícil manter esse ritmo acelerado de arrecadação e distribuição de alimentos. Mas uma série de outras iniciativas novas estão surgindo. A Ação da Cidadania está liderando, atualmente, um conjunto de entidades, entre as quais o Instituto Fome Zero, que eu dirijo, para realizar um encontro contra a fome ainda no primeiro semestre de 2022. O objetivo é procurar organizar melhor essas inúmeras iniciativas voluntárias que surgiram no país.
Mas não há dúvidas de que a situação hoje é muito mais difícil do que era antes, no tempo do Betinho. Além de atingir um número muito maior de famílias, como nunca se tinha visto antes no Brasil, nós não contamos com a ajuda do governo federal. São poucos os municípios e Estados que têm no combate à fome a sua prioridade. Eu, particularmente, que estive por 15 anos na FAO, parece que estou vendo um país em guerra. Essa é a imagem que me vem à mente quando vejo o que está se passando no Brasil, com muita tristeza.
Além do custo social e político, a fome tem um custo financeiro. Poderia falar sobre alguns dados e estudos sobre os impactos econômicos que a fome gera às nações?
Na América Latina temos estudos da Cepal, junto com o Programa Mundial de Alimentos, a partir de 2005. Infelizmente não tem um estudo específico para o Brasil. Mas os resultados para a América Central e República Dominicana mostram perdas de 2% a mais de 11% do PIB, em decorrência da fome, dependendo do país. A média é de 6,4% de perda do PIB. A fome afeta a produtividade das pessoas, com maior ocorrência de enfermidades, mortes, menor nível educacional decorrente de repetência ou ausência das crianças. Na América do Sul, há estudos para a Bolívia, Equador, Paraguai e Peru por parte da Cepal e PMA, que mostram uma perda, em média de 3,5% do PIB, tendo como referência o ano de 2005. Costumo dizer que a relação custo-benefício para erradicar a fome é de aproximadamente 1 para 10 na América Latina. Quer dizer que a cada R$ 1 investido na erradicação da fome, teríamos o retorno de R$ 10. Portanto, não fossem por razões morais e humanitárias, também do ponto de vista econômico é um grande negócio erradicar a fome até 2030.