09 Dezembro 2021
Pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit) da Faculdade de Economia da Unicamp, Ludmila Costhek Abílio é um dos nomes mais significativos nos estudos voltados à uberização do trabalho no Brasil. Autora de Sem Maquiagem (2014), no qual investiga as relações de trabalho em torno das revendedoras de cosméticos na indústria de beleza brasileira, ela vê a uberização como um processo de generalização de modelos de exploração do trabalho tipicamente periférico por meio de tecnologias que se apropriam da busca humana por autonomia. Longe de ser algo neutro, gerado de forma automática por sistemas que buscam solucionar problemas humanos, o gerenciamento algorítmico se mostra uma forma de cisão entre o ser humano e a tarefa que ele executa: a eficiência da força de trabalho é potencializada, enquanto o trabalhador tem que arcar, sozinho, com o ônus de garantir a própria sobrevivência.
Ludmila Abílio (Foto: Nupecs)
Em entrevista exclusiva ao Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT, Ludmila Costhek Abílio discute temas como a crescente “amadorização” do trabalho, a informalidade que contamina os meios de controle e os efeitos da uberização sobre a oferta de emprego, entre outros. A pesquisadora também traz um alerta: é preciso prestar atenção no que é dito pelos trabalhadores submetidos à uberização, sob pena de apagar experiências e trajetórias de vida – e de não ser capaz de propor caminhos em um cenário de crescente precarização da vida de trabalhadores e trabalhadoras.
A entrevista é de Igor Natusch, publicada por Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT, 01-12-2021.
Um número considerável de especialistas ligados ao mundo do trabalho parece concordar que o processo de uberização assume, em países como Brasil, algumas características distintas do verificado na Europa ou na América do Norte. De certa forma, estaríamos chegando “atrasados” nesse processo, que estaria se desenvolvendo há mais tempo em outros lugares. Você vê a questão da mesma forma?
Na verdade, eu pensaria até o contrário. Isso vai depender muito da forma como a gente entende o que é a uberização. Pela minha perspectiva, a uberização não é um processo que esteja exclusivamente atrelado às plataformas digitais e aplicativos. Pelo contrário: a uberização é um processo que se desenha no mundo do trabalho há décadas, e que acaba sendo catalisado pelas novas tecnologias digitais. Porque veja, eu posso pensar em uma série de trabalhadores uberizados que não estão passando pela plataforma. Nesse sentido, talvez nós sempre tenhamos enfrentado elementos que hoje são centrais à uberização. O que acontece é que, por meio das plataformas digitais, você tem hoje novas formas de organizar e controlar essa multidão de trabalhadores. O que a gente está vendo no mundo, quando a gente fala em gig economy, em economia de plataformas, é que esses processos de flexibilização e essas formas de exploração, com características que são tipicamente periféricas do trabalho, estão se expandindo para outras relações onde elas não eram visíveis desta forma.
Então, eu pensaria mais no sentido de que a gente está, na verdade, exportando essa uberização. Senão nós vamos atrelar características a um aplicativo, e penso que é ao contrário: é a empresa em plataforma que se apropria de elementos que sempre estiveram ali e dá novas formas a eles. São processos complexos, mas eu não diria que nós chegamos atrasados na uberização: eu diria que nós estamos exportando, nós e outros países da periferia, elementos que eram tipicamente periféricos e que estão se expandindo pelo mundo do trabalho, atravessando o mundo do trabalho como um todo. Mas claro que se realizam de formas desiguais, de acordo com contextos específicos.
Teríamos então, até certo ponto, uma precarização que sempre foi almejada pelos detentores dos meios de produção e que assume, a partir do advento das plataformas e aplicativos, esse formato específico?
Eu penso assim: você tem historicamente uma tensão que move a relação entre capital e trabalho, e que sempre moveu, que é o uso do trabalhador como força de trabalho. A busca do capital sempre foi no sentido de que esse uso seja mais intensivo, pelo maior tempo possível, da forma mais eficiente possível, com a eliminação de todos esses momentos em que a força de trabalho não está sendo eficazmente otimizada – e tudo isso ao menor custo possível. Por outro lado, essa força de trabalho é um ser humano, com todas as suas lutas e conquistas, frutos de enfrentamento de vários conflitos que envolvem a ergonomia do trabalho, a saúde e segurança do trabalhador,as determinações sociais sobre qual é a duração “digna” da jornada de trabalho, o direito ao descanso, ao envelhecimento, ao adoecimento protegido. Todos os direitos e proteções do trabalho giram em torno dessa tensão entre as determinações socialmente estabelecidas sobre os limites e proteções em torno do uso dessa força de trabalho. Nós estamos vendo as conquistas, freios e proteções que foram historicamente constituídos sendo abolidos; neste sentido, parece que a gente está sempre voltando para o passado. Só que, ao mesmo tempo, nós temos hoje meios técnicos e políticos que garantem novas formas de gerenciamento desta força de trabalho.
Então, a uberização, na minha perspectiva, envolve dois elementos centrais. Um deles é a redução do trabalhador a uma mera força de trabalho, e que passa a ser uma força de trabalho sob demanda, usada de acordo com as determinações das empresas. Só que o trabalhador não está descansando, dormindo em casa: ele está na rua, esperando ser convocado novamente, ele está à disposição o tempo todo. A sobrevivência enquanto ser humano é transferida totalmente para ele, e é isso que hoje se chama de empreendedorismo de si, trata-se de gerir a própria sobrevivência e ser inteiramente responsável por ela, o capital e o Estado não comparecem mais nessa relação. Essa é a novidade de fato da uberização, você conseguir reduzir o trabalhador à força de trabalho, tendo à disposição mecanismos técnico-políticos que garantem o uso mais eficaz e racionalizado dessa força de trabalho, ao mesmo tempo em que capital e Estado finalmente se desresponsabilizam. Isso é uma enorme novidade, mas, quando a gente olha para a periferia, esses elementos sempre foram altamente complexos, porque esses limites no emprego da força de trabalho nunca foram delimitados, estabilizados ou universalizados. O modo de vida do trabalhador periférico sempre esteve muito próximo do que é ser um uberizado. O que acontece agora é que você tem à disposição uma nova forma de gerenciamento da informalidade, você consegue ter centenas de milhares de trabalhadores sendo controlados e gerenciados por uma única empresa. São novas formas de centralização dos ganhos, da exploração e do controle que estão acontecendo.
A senhora mencionou o dito ‘empreendedor de si mesmo’, a pessoa que seria supostamente dona de um negócio que é ela própria. Isso nos faz pensar em algumas questões em torno da formalidade desses trabalhadores e trabalhadoras – como, por exemplo, o fato de que boa parte dos trabalhadores em plataforma rejeita a CLT, não deseja ter sua relação de trabalho regida pela lógica da carteira assinada.
Acho que a gente tem que ter muito cuidado com o uso da palavra ‘empreendedorismo’ e com a própria compreensão do que o trabalhador está dizendo. Porque esse é um dilema que a academia e outros setores, além dos próprios trabalhadores, claro, estão enfrentando, nós todos estamos enredados nesse dilema. Temos que pensar sobre como a gente escuta o que está sendo dito para nós. O trabalhador que diz para você ‘não quero ter patrão’ é o mesmo que vai falar ‘nossa, Uber Eats é trabalho escravo, o iFood está cada vez pior’. O trabalhador está longe de achar que a moto dele é uma microempresa, que ele está investindo e que ele é um empreendedor, não é isso que está sendo dito para nós.
Uma grande sacada do capitalismo é a apropriação racionalizada da nossa busca por autonomia. Hoje, e há muito tempo, ela é um elemento da gestão, transferindo para o trabalhador uma série de elementos que permitem que ele gerencie o próprio tempo. Só que é um gerenciamento completamente subordinado. Eu chamo isso de autogerenciamento subordinado, até para não usar mais a palavra ‘empreendedorismo’, porque é tudo muito diferente de ser um empreendedor. De fato, você não tem mais a figura física do chefe, você não tem a figura física de um relógio de ponto e nem da própria empresa. Tudo isso traz uma série de estabilidades e direitos para o trabalhador, mas é também atravessada por uma série de formas de exploração e humilhação, e a gente não pode esquecer isso. O mundo do trabalho brasileiro é um mundo composto por humilhações cotidianas e injustiças que correm também por dentro do emprego formal.
Então, quando o trabalhador fala ‘eu não quero CLT’ a gente pensa ‘puxa, olha isso, enganaram ele, a Uber disse que ele poderia ser o próprio chefe e o cara acreditou’. E isso acaba silenciando a experiência desse trabalhador, produzindo sobre ele a ideia de uma falsa consciência, de um autoengano, e a coisa é muito mais complicada que isso. Mas essa discussão acaba sendo bastante complexa e arenosa, porque estamos vivendo um momento de ataque aos direitos trabalhistas e de reformulação do que é o trabalho formal, que foi completamente transfigurado pela reforma trabalhista. Então, não se trata de dizer que o trabalho formal não é importante, mas de entender a experiência dos trabalhadores e suas trajetórias de vida.
Um aspecto que é bastante presente em seu trabalho, e que não vejo ser abordado com tanta frequência em outros contextos de discussão sobre a uberização, é o processo crescente de amadorismo que vai tomando conta do mundo do trabalho. O que se pode dizer a respeito do efeito que a uberização acaba tendo sobre o próprio conceito de trabalho especializado?
Acho que essa é uma questão super importante. Na verdade, eu comecei a falar sobre trabalho amador antes de começar a tratar da uberização, quando eu fui pesquisar o trabalho das revendedoras da Natura. Você tem uma empresa que conta, hoje, com mais de um milhão e meio de mulheres vendendo esses produtos, completamente responsáveis pela comercialização desses produtos, sem lojas ou nada parecido. E esse negócio dá certo. É um trabalho, mas que não aparece como trabalho, que está envolvido por essa perda de forma-trabalho. É só você aderir, não tem contratação, não tem seleção, não tem tempo de trabalho definido, não tem valor da hora de trabalho. Nada está definido, e isso dá uma permeabilidade enorme a esse tipo de atividade, porque eu posso ser secretária e estar vendendo ao mesmo tempo, posso ser delegada de polícia e estar vendendo durante o expediente. Quando eu escrevo sobre esse tema do trabalho amador, estou me remetendo a conceitos de uma socióloga francesa, Marie-Anne Dujarier, que vai olhar para o trabalho do consumidor – coisas como, por exemplo, pesquisarmos na internet os preços de uma passagem de avião. Isso é um trabalho amador, porque eu não sou uma profissional em uma agência de turismo ou uma agente de viagens: eu sou uma consumidora, que está realizando uma tarefa que perdeu a forma social do trabalho.
Então, quando eu escrevi o livro Sem maquiagem (2014), eu já estava olhando para essa amadorização como uma tendência do mundo do trabalho. Com as plataformas digitais, isso fica muito evidente. Se você olhar para um motoboy, você entende perfeitamente esse processo de amadorização. Há 10 anos, o motoboy tinha uma profissão estabelecida, uma forma de organização do trabalho clara: era um emprego, que podia ser formal ou informal, em nome do qual ele passava por seleções, os conhecimentos dele eram claramente mobilizados o tempo todo. Havia clareza sobre o valor da hora de trabalho, e o grau de conhecimento que ele tinha sobre a cidade ia afetar no alcance e no funcionamento de seu trabalho. Você segue tendo essas figuras, mas, se eu resolver agora mesmo que quero virar uma entregadora, faço um cadastro e, se me aprovarem, eu viro. A amadorização é justamente isso, a perda dessas formas socialmente estáveis e reguladas do trabalho.
Outro exemplo claro disso é o motorista da Uber. Você olha um taxista e um motorista e eles estão fazendo exatamente a mesma coisa, mas o taxista passa por uma série de certificações, mediadas pelo Estado. Para ser taxista ele tem que obter uma licença, e quem é que concede essa licença? O carro dele vai ter uma placa específica, e de onde saiu essa placa? O carro vai ter um logotipo, um padrão visual, e como a empresa obtém a autorização para usar esse nome social? Tudo isso passou pela regulação do Estado. Você entra no carro, e a pessoa pode ser um péssimo motorista e tudo mais (risos), mas você tem todos esses elementos que garantem a confiabilidade. O motorista da Uber não passou por nada disso, ele tem o carro dele e um cadastro no aplicativo. Ele não é um profissional, ele vive como um amador.
Eu posso fazer isso todos os dias da minha vida durante muitos anos, mas a forma como isso é socialmente reconhecido é como uma espécie de temporário permanente, como se eu estivesse ali o tempo todo e, ao mesmo tempo, sempre de forma passageira. Eu confio nesse trabalhador – e a amadorização tem a ver com isso, com novas formas de certificação do trabalho – porque eu confio na marca, e porque é uma multidão de pessoas em todo o mundo que estão usando essa marca, então eu confio na avaliação da multidão. Quando eu vou em um apartamento do AirBNB. ele não passou por certificação nenhuma do Estado, mas eu confio na certificação que é feita de forma amadora (pelos usuários). É a multidão que promove um controle de qualidade sobre esse trabalhador e sobre o serviço. Então, nós também somos postos para trabalhar, nós somos gerentes amadores. Quando eu escrevo uma avaliação, eu quero contribuir com as pessoas, quero ajudar quem for ficar naquele apartamento que eu achei ruim, então eu atuo como um gerente amador – e não sou eu individualmente, é a multidão, o que importa nessa história é o coletivo.
Enquanto a senhora falava, lembrei que, logo que surgiram esses aplicativos, eles vinham imbuídos de um discurso de compartilhamento. A Uber, por exemplo, não se colocava como um serviço de transporte individual: era um aplicativo de caronas. Acho que isso dialoga bastante com o que a senhora está colocando, como uma amadorização conceitual do trabalho e um esvaziamento do significado do serviço que está sendo oferecido.
É muito interessante isso, porque, no caso do AirBNB, como qualificar o que está sendo vendido? Isso acaba tendo nós até na teoria marxista: qual é a mercadoria produzida, o que é trabalho e o que não é, quais são os custos do trabalho? Então, quanto a essa amadorização, eu venho falando muito nesse processo de informalização na uberização. Não é apenas transformar o trabalhador ou trabalhadora em informal: é informalizar os meios de controle, de gerenciamento, de determinação do trabalho. O que é trabalho e o que não é, qual o valor do trabalho, como ele é distribuído: todas as regras que regem essas questões são presentes e são ferrenhas, mas elas perderam suas formas estáveis. E quanto a essa economia de compartilhamento, é claro que a Uber nunca esteve nem perto de ser uma plataforma de compartilhamento, mas há a uma apropriação desse nosso engajamento, das solidariedades e até mesmo buscas pela comunidade.
Pensando um pouco, então, a partir de posições que se possa tomar, coisas que se possa fazer no enfrentamento desses aspectos prejudiciais que acabam sendo atingidos pela uberização. Queria perguntar a respeito do problema do desemprego – mais especificamente, da incompatibilidade de um ambiente de trabalho uberizado com a necessidade de segurança mínima de renda para que o trabalhador pague suas contas e coloque comida na geladeira. E trago essa questão porque cresce, na esfera pública, um discurso de que é necessário “aceitar” que não existe emprego para todo mundo…
Essa é uma questão de grande importância. Porque é isso, se consolidou de forma muito vitoriosa a perspectiva de que não há lugar para todos no mundo do trabalho e inclusive a esquerda encabeça, hoje, esse discurso. Isso está incorporado ao discurso da esquerda quando ela fala em descartabilidade social, em gestão dos descartáveis, em marginalidade. Só que o fato de as pessoas não estarem empregadas não quer dizer, de forma alguma, que elas não estejam trabalhando. Isso tem a ver com a amadorização do trabalho, com uma série de formas de trabalho que mal são reconhecidas como trabalho de fato. Outra questão da qual muito se fala é a do encarceramento, e o encarceramento surge como sinônimo de gestão de descartáveis. Calma lá, hoje o setor prisional é um excelente negócio, totalmente mercantilizado inclusive na questão de gestão do trabalho. Você tem cadeias produtivas que contam com a mão de obra não paga de presidiários, sem contar todos os elementos da mercantilização da gestão prisional. Ou seja, a gente internalizou, de fato, esse discurso de que ‘olha, não tem lugar para todo mundo’, tanto à esquerda quanto à direita, nossos discursos estão gravemente convergindo.
Tornou-se quase uma questão prévia, não? Se vamos discutir o tema do emprego, então é preciso partir do princípio de que não há lugar para todo mundo.
Exatamente, e aí tudo vai se legitimando. A reforma trabalhista, mesmo: ‘olha, é preciso aumentar a empregabilidade das pessoas, e para isso temos que cortar direitos, temos que flexibilizar o uso da força de trabalho’. Isso gerou emprego? Não.
O que me parece um grande problema, hoje, é que a esquerda tem poucos elementos para se contrapor, de fato, a esse discurso. A gente sabe que isso não é real, que precarizar não gera emprego, mas nossos instrumentos de análise precisam se complexificar e se fortalecer. Quando a gente incorpora o discurso de que não há lugar para todos – e podemos ver que as pessoas estão trabalhando cada vez mais, e de formas cada vez mais degradadas – isso complica muito a conversa. E a uberização se legitima a partir daí, é o que a Uber faz: ‘vocês vão regular? Então eu não tenho condições de me manter aqui, eu saio desse país’. Na verdade o que ela faz é uma chantagem. A fábrica da Natura é inteiramente desmontável, a arquitetura dela é feita de uma forma que ela pode mudar de país a qualquer momento, é uma enorme mobilidade do capital. A uberização entra nessa esteira: ‘olha, é melhor os caras estarem trabalhando precarizados do que não terem nada’.
Como se a própria possibilidade de trabalhar fosse um recurso finito.
Exato, é isso que está em jogo, e até pode ser finito, mas não podemos, em nome da certeza do fim da centralidade do valor-trabalho, obscurecer os processos avassaladores de mercantilização da vida, dos direitos sociais; dos novos tipos de subsunção de trabalhos antes improdutivos e dispersos, das formas de exploração advindas da convergências entre comércio, distribuição e produção, que ainda convergem com o consumo, com a vida reprodutiva e podem, pelo contrário, nos indicar a cada vez mais livre exploração do trabalho e colonização do valor em todas as esferas da vida. Não podemos perder um olhar dialético entre descartabilidade social e eliminação de freios na exploração do trabalho. A exploração do trabalho colonizou todas as esferas da vida, essa colonização conta com a perda de formas estáveis e fixáveis sobre uma série de elementos que vão compondo um processo de trabalho, ele mesmo cada vez mais difícil de delimitar e definir.
Uma questão que começa a ser discutida de forma mais consistente dentro da esfera sindical é o acesso ao algoritmo, como condição necessária para a negociação coletiva e como um direito da classe trabalhadora. Na sua visão, esse é um passo na direção correta?
Acho que a questão do gerenciamento algorítmico do trabalho é, hoje, urgente. Você vê, quando teve o Breque dos Apps e surgiram uma série de projetos de lei, a gente que acompanhou de perto viu o desconhecimento sobre o que o gerenciamento algorítmico é e as possibilidades de exploração que ele traz. Eu gosto muito de uma frase que um motoboy me falou: ‘não adianta colocar no projeto lá a transparência’ – e é claro que tem que colocar a transparência no projeto, mas ele coloca as coisas assim – ‘você coloca isso lá na lei, mas robotizaram a gente e nós estamos em um mato sem cachorro’. ‘Porque a empresa não me penaliza formalmente se eu recusar corridas, por exemplo: ela não me bloqueia, mas também não me manda mais corridas’. Isso já é feito, eles (motoristas de aplicativos) chamam de bloqueio branco. Gerenciamento algorítmico não é uma coisa que vai acontecendo por meio da tecnologia, algo automatizado e neutro. Não: é algo programado com fins humanos muito claros e que, em torno desses interesses, vai se aprimorando. Não adianta, por exemplo, você falar em transparência se você não garante, ao mesmo tempo, o valor da hora de trabalho, incluindo aí o tempo de espera. Se você não regular isso, o gerenciamento algorítmico traz a possibilidade de driblar uma série de elementos que podem até estar formalmente colocados, mas que são burláveis, por meio informais e difíceis de localizar e fixar.
A senhora mencionou o Breque dos Apps, que vem sendo uma movimentação de trabalhadores ligados a aplicativos no sentido de construir formas de organização. Há uma ponte possível entre esses esforços de organização e o modelo tradicional, em torno do sindicato e da negociação coletiva? A senhora acredita que é possível casar esses dois universos?
Essa é uma pergunta difícil, porque, por um lado, você tem os sindicatos, que se formaram em uma relação muito clara com formas de organização do trabalho que seguem existindo, mas que, hoje, se combinam com outras formas de controle e gerenciamento que estão distantes daquela categoria estável do emprego. O sindicato se formou em uma relação na qual estava claro o que era local de trabalho, o que era tempo de trabalho, quem era o patrão, qual era o salário. Os processos de informalização do trabalho hoje vigentes requerem uma readequação dessa forma de organização e um freio que dê conta de enfrentar o fato de que o patrão não está mais (em uma posição) imediatamente visível e localizável. As cadeias produtivas se globalizaram profundamente, há uma altíssima mobilidade do capital, temos cadeias produtivas que vão da Zara na Espanha ao boliviano no centro de São Paulo trabalhando em condições análogas à escravidão. Então, por um lado você tem esses desafios que o sindicalismo está enfrentando há décadas, e, por outro lado, você tem, nessas novas formas de organização, esses dilemas complexos, como a recusa a essas formas tradicionais de organização do trabalho e a deslegitimação dos sindicatos.
Não existe uma resposta pronta ou clara para isso. Se esses movimentos conseguem se articular e encontrar essas pontes, isso potencializa as possibilidades de resistência e organização dos trabalhadores e trabalhadoras. Mas essas pontes não estão muito visíveis. A gente vê as tensões, por exemplo, por dentro do Breque dos Apps. São reconfigurações por dentro da esquerda que estão acontecendo, que estão em disputa e que têm consequências muito sérias.
Se pensamos nessa tensão interna dentro do Breque dos Apps, que a senhora acabou de mencionar, o que essas pessoas estão nos dizendo? Porque me parece que boa parte do problema está, como a senhora mencionou anteriormente, na dificuldade em ouvir e interpretar o que está sendo dito pelos trabalhadores e trabalhadoras que estão totalmente inseridos na uberização. Qual seria, na sua leitura, a direção que essas pessoas estão apontando, em termos de atuação?
Acho que o próprio nome que escolheram, Breque dos Apps, é muito expressivo. O que é um breque? É como se dissessem ‘olha só, vamos colocar um freio no gerenciamento algorítmico, nessas formas de degradação, de rebaixamento do valor da força de trabalho, de extensão do tempo de trabalho’. O Breque incide em elementos centrais das relações de trabalho, porque qual é a pauta do Breque? É o valor, os critérios de distribuição do trabalho, as injustiças permanentes, os desligamentos sumários que ocorrem cotidianamente. Veja que interessante isso, o trabalhador não põe como pauta o fim dos bloqueios: ele quer o fim dos bloqueios injustos. Ele está mantendo uma relação de compra e venda de trabalho, e nem está no horizonte dele superar isso, ele só está pedindo a adoção de normas minimamente estabelecidas nesta relação.
Eu acho que o Breque está falando disso para a gente, do patamar mínimo de dignidade nas relações de trabalho. É pouco, a gente tem que pedir mais, mas esse pouco, hoje, é muito. Então, a gente precisa estar muito atento ao que está sendo pedido, e entender que são novas formas de organização. Você tem lideranças que despontaram, que ganham visibilidade, mas são lideranças que surgem pós-movimento. Esse movimento é horizontalizado, o funcionamento dele corre ao largo de partidos e sindicatos. E não há consenso, de fato: há trabalhadores que sim, estão na briga pelo reconhecimento de vínculo pela CLT, mas há trabalhadores que têm outra concepção. Ou seja, a coisa está em pleno movimento e estamos sendo desafiados em vários campos, inclusive nas possibilidades do sindicalismo, em nossos horizontes políticos. Tudo isso está materializado no Breque e na uberização.
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“O trabalhador inserido na uberização está longe de achar que a moto dele é uma microempresa”. Entrevista com Ludmila Costhek Abílio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU