11 Novembro 2021
"Mesmo reconhecendo a gravidade da situação, a respeito dos chamados 'furtos famélicos', os juízes - com poucas exceções - não estão preocupados em salvaguardar o direito à alimentação das pessoas que se encontram em extrema necessidade. A preocupação deles é que o 'furto' não cause prejuízo à vítima do 'crime'”, escreve Marcos Sassatelli, Frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP), e professor aposentado de Filosofia da UFG.
No Jornal O Popular (Goiânia - GO) do dia 30 e 31 de outubro passado, na página 14, sobre a VIDA URBANA, lemos a seguinte manchete: “Furto famélico está em 20% das prisões”.
Mariana Carneiro - autora da reportagem - começa o seu texto com estas palavras: “Uma a cada cinco prisões em flagrante por furto, em Goiânia, nos dias úteis de julho a 26 de outubro deste ano, foi por furto famélico, quando a pessoa comete o delito para se alimentar”.
A jornalista, de um lado, relata que Gilles Gomes, advogado criminalista, “durante inspeções em presídios já conheceu pessoas que estavam presas por terem cometidos furtos famélicos”; de outro lado, relata que “desde 2004, existe um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que casos com esse perfil devem ser arquivados, segundo o princípio da insignificância, casos em que o valor do furto é tão irrisório que não causa prejuízo à vítima do crime. Entretanto, a norma não é obrigatória”.
Na reportagem, Leonardo Stutz, defensor público da área criminal, afirma que “a situação reflete o cenário de pobreza extrema que muitos brasileiros enfrentam”: situação que - acrescento eu - é fruto de um sistema hipócrita e perverso, estruturalmente antiético (ou seja, desumano) que é o sistema capitalista ultraneoliberal.
Mesmo reconhecendo a gravidade da situação, a respeito dos chamados “furtos famélicos”, os juízes - com poucas exceções - não estão preocupados em salvaguardar o direito à alimentação das pessoas que se encontram em extrema necessidade. A preocupação deles é que o “furto” não cause prejuízo à vítima do “crime”.
Infelizmente, nesses casos, as decisões dos juízes são quase sempre muito ambíguas e - na maioria das vezes - descaradamente a favor dos poderosos. Também, dá para entender! Vejam só!
“Em Goiás (nos outros Estados não deve ser muito diferente), 170 juízes (do TJ) receberam mais de R$ 100 mil em outubro” (deste ano), incluindo os adicionais, chamados “penduricalhos”. No mesmo mês, “o maior rendimento bruto foi de R$ 162 mil. Neste caso, o magistrado recebeu subsídio de R$ 35,4 mil e R$ 5 mil em direitos pessoais (abono permanência)” (Leia aqui). Como podemos acreditar na justiça desses juízes?
Mesmo que os pobres e, sobretudo, os mais pobres entre os pobres - que, por extrema necessidade, praticaram “furtos famélicos” - não cheguem a ser presos ou fiquem presos por pouco tempo por serem os casos arquivados, seguindo o princípio da insignificância, eles e elas são sempre humilhados com maus-tratos e palavras desrespeitosas, como: “furtam bolacha, leite, macarrão”, “furtam alimentos vencidos”, “presos por cometerem furtos famélicos”, “presos em fragrante furto”, “cometem delito para se alimentar”, “praticam uma conduta ilícita”, etc.
Segundo o ensinamento ético (o ético é o humano) de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) - que integra o Pensamento Social Cristão - quando uma pessoa ou um grupo de pessoas encontra-se em situação de miséria ou de extrema necessidade, “tudo é comum” ou seja, “todos os bens são de todos e de todas“ (“In casu extremae necessitatis, omnia sunt communia”: Suma Teológica. IIa IIae, questão 32, artigo 7, resposta 3).
Portanto, do ponto de vista ético - humano e cristão (radicalmente humano) - o chamado “furto famélico” não é “furto”, não é “crime”, não é “delito”, não é “conduta ilícita”, mas é “direito famélico”, “direito à alimentação”, que é um direito fundamental de toda pessoa humana e é parte integrante do direito à vida.
Lutemos por esse direito e por um novo modelo de sociedade: justo, igualitário, de irmãos e irmãs.
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Direito famélico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU