Matrimônio indissolúvel e patrimônio inconservável. Artigo de Andrea Grillo

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05 Novembro 2021

 

Descobrir o matrimônio não principalmente como “ato jurídico”, mas como “processo iniciático” pode constituir uma provocação que aceita, ao mesmo tempo, a fragilidade das biografias e a profundidade do testemunho.

 

O comentário é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado em Come Se Non, 03-11-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Em um livro publicado em 2016, no contexto dos dois Sínodos sobre a família ["Gesù e il Matrimonio, indissolubile per chi?", de Silvio Barbaglia, Cittadella Editrice], é possível ler uma reconstrução muito surpreendente e verdadeiramente iluminadora do “evangelho do matrimônio”. Gostaria de tentar oferecer aqui não apenas uma apresentação do núcleo teórico do volume, mas também as consequências sistemáticas nada evidentes dessa importante leitura de algumas fontes neotestamentárias da doutrina matrimonial católica.

Esta não é, portanto, uma resenha no sentido clássico, mas sim uma reação em nível sistemático às profundas considerações que a leitura bíblica da tradição matrimonial sugere com perspicácia.

Divido meu texto em três partes: em primeiro lugar, apresento a teoria que emerge do volume (1), relaciono-a com a recepção que a história ofereceu dessa teoria (2) e, enfim, abro algumas perspectivas de reflexão sobre o novo modelo de matrimônio-família que a história oferece à consciência eclesial, a partir da Amoris laetitia (3).

 

1. A tese central: o anúncio escatológico do “matrimônio pelo Reino dos céus”

 

Por hábito – hábito litúrgico e hábito dogmático – costumamos ler o Evangelho “por perícopes”. Com a tesoura, recortamos “seções” que compomos com outros textos ou com os nossos raciocínios. Isso é legítimo, mas nem sempre assegura a plena compreensão do texto. Ao fazer tais “cesuras” (e ao dispor títulos ao longo de um texto), antecipamos sobre o texto a nossa teologia sistemática. Isso ocorre de modo singular com o capítulo 19 do Evangelho de Mateus. Que é composto, como parece óbvio, por quatro perícopes dedicadas à controvérsia sobre o repúdio, ao tema dos eunucos, às crianças a serem imitadas e, enfim, ao jovem rico e à riqueza como obstáculo ao reino dos céus.

Habituamo-nos a referir cada perícopes a “estados de vida” diferentes: o matrimônio para os leigos, a eunuquia e a pobreza para os religiosos. Mas a lectio continua do texto, corroborada por outras passagens do mesmo Evangelho (Mt 1; 5-7; 22), leva o autor a levantar uma hipótese singularmente eficaz e extraordinariamente nova: todo o capítulo 19 teria como destinatários não “os homens e as mulheres” em geral, mas aqueles e aquelas que estão dispostos a viver como peregrinos-missionários no discipulado do Senhor. Barbaglia levanta a hipótese de que:

“Os destinatários originais da forma indissolúvel de matrimônio não eram – na intenção do ‘Jesus testificado’ (isto é, do personagem narrativo ‘Jesus’) do Evangelho segundo Mateus – todos os homens, por causa do plano divino de criação em Adão e Eva, mas sim apenas os discípulos-missionários itinerantes que, sob a liderança de Jesus, acolhiam casais que haviam deixado a sua família de origem, desligando-se também do seu patrimônio” (p. 7).

Essa descoberta, que emerge a partir de uma leitura “não descontínua” dos quatro textos do mesmo capítulo, abre a uma inteligência do matrimônio cristão em modalidades decididamente novas. Outra passagem confirma isso:

“A tipologia do matrimônio indissolúvel assume, na análise, a forma do ‘matrimônio pelo Reino dos Céus’, em apologia e em polêmica com a forma de matrimônio dominante, a serviço da família patriarcal e patrilinear. Como o chamado ao seguimento de casais significava também o rompimento das relações de parentesco, o único vínculo que devia ser protegido e não rompido era o matrimonial, entre marido e mulher, absolutamente indissolúvel. Começar a fazer parte da nova família, a de Jesus, como irmão ou irmã, significou para o seu grupo composto por celibatários, solteiros e casados, acolher a todos sob a mesma paternidade, revelada no Abbá. O pertencimento ao status de filhos/as e, por isso, de irmãos e irmãs, era funcional para viver, no presente, a perspectiva última do Reino dos céus; para essa finalidade, o fundamento protológico no casal original antes do pecado – ‘... no princípio não foi assim...’ (Mt 19,8) – institui uma forma não histórica de matrimônio indissolúvel, mas sim escatológica, típica da experiência do grupo de Jesus, pelo Reino dos céus” (p. 8).

Essa interpretação do texto, sufragada por argumentos muito consistentes e com uma rara coerência, põe em crise as reconstruções que leem o “sacramento do matrimônio” como fundado na criação ou na natureza. É singular o fato de que, embora essas leituras também coloquem terminologicamente a geração no centro (é suficiente citar o “bonum prolis” do “De bono coniugali”, de Agostinho, e a “Summa contra gentiles”, de Tomás, que define o matrimônio como “generatio”), essa interpretação consegue notar, até mesmo com surpresa, que em todos os textos do Evangelho considerados no texto nunca se fala de geração.

 

2. A tensão com a “recepção histórica” do modelo escatológico

 

A singular notícia que recebemos da leitura do texto poderia ser formulada assim: uma teoria da “indissolubilidade” do vínculo entre homem e mulher, na sua forma mais “impossível”, surge ao mesmo tempo que a necessária “solubilidade” de todos os outros vínculos patrimoniais e familiares. Por isso, Paulo, nas suas cartas, já atesta as “adaptações” que a história pede a esse cumprimento escatológico, que subverte todas as formas históricas permanentes. A relação pura entre homem e mulher, sem pais nem mães, sem filhos nem filhas, sem campos ou animais, brilha como um ideal que, para se realizar, deve assumir formas de mediação.

A releitura da oscilação paulina entre “remédio da concupiscência” e “mistério grande” pode se inscrever nessa laboriosa mediação entre o discipulado peregrino do círculo de Jesus e as formas permanentes, filiais e patrimoniais de adesão à fé. Essa tensão tem a forma de expressão mais forte no matrimônio. O não repúdio da mulher/marido, quando assume um significado apenas no repúdio radical a todos os outros bens familiares e patrimoniais, torna-se não o dever de todo homem, mas o sinal escatológico de uma tensão à santidade não ordinária.

Isso impõe uma condição nova à consciência eclesial e a obriga a rever algumas soluções que, enquanto isso, adquiriram o sabor de uma formalização sem raiz. A intromissão de argumentos jurídicos, que deslocam diretamente o contrato de matrimônio ao âmbito do sacramento, parecem estar fundamentados não apenas em uma leitura unilateral da Escritura, mas também em uma elaboração sistemática bastante frágil. Lendo o texto de Barbaglia, capta-se em perspectiva a precariedade da solução que o Concílio de Trento deu à condição matrimonial.

 

3. A superação do “modelo tridentino/século XIX” de matrimônio católico

 

Até o Concílio de Trento, a condição do matrimônio era estruturalmente plural. A competência natural e civil se relacionava com a competência eclesial de modo articulado e complexo. Havia uma pluralidade de formas de vida, que a Igreja simplesmente abençoava. Com o Decreto Tametsi (1563), a competência eclesial sobre a “forma canônica” assume totalmente a dinâmica complexa do matrimônio. Essa escolha epocal torna-se conflituosa quando os Estados liberais reivindicam uma competência própria sobre o matrimônio, o que a Igreja inicialmente nega.

Esse modelo conflituoso, dominado por preocupações jurídico-institucionais, pensa em garantir o poder escatológica do “matrimônio pelo Reino dos céus” identificando sic et simpliciter o contrato entre dois batizados com o sacramento. Assim, o “ius in corpus” torna-se o objeto do contrato válido, e a consumação da relação sexual dá fundamento à indissolubilidade. É evidente que essa leitura jurídica confunde os planos e, ao mesmo tempo, perde a mediação natural/civil elementar e a proeminência da antecipação escatológica.

O distanciamento em relação a essa abordagem soa muito poderoso na AL 304, na qual se define como “mesquinho” o desígnio de identificação da vontade de Deus com a “lei objetiva”. A identificação do sacramento com o “contrato matrimonial entre batizados” é uma aceleração historicamente compreensível, mas sistematicamente defeituosa. O texto de Silvio Barbaglia traz argumentos exegéticos fundamentais para compreender o esforço com que a Igreja predispôs mediações históricas para a indissolubilidade escatológica.

Não é por acaso que o livro de Barbaglia se conclui com uma forte “proposta sistemático-pastoral”, que prevê duas formas paralelas: um sacramental de bênção do matrimônio baseado no batismo, o sacramento do matrimônio como vocação a fazer da união entre homem e mulher a analogia, embora sempre imperfeita, do amor entre Cristo e a Igreja. Talvez a solução possa levar à discussão, talvez a forma do “sacramental” seja tão antiquada quanto o problema. Mas é certo que descobrir o matrimônio não principalmente como “ato jurídico”, mas como “processo iniciático” pode constituir uma provocação que aceita, ao mesmo tempo, a fragilidade das biografias e a profundidade do testemunho.

Para devolver uma palavra final ao autor:

“Em síntese, a figura do ‘matrimônio pelo Reino dos céus’ também pode se tornar atualmente uma imagem tensional em vez de um código irreformável de normas de comportamento. E a indissolubilidade do vínculo matrimonial, ao lado do status de ‘eunucos pelo Reino dos céus’ pode representar ainda hoje, na vida e na escolha matrimonial, uma justa provocação profética a fim de manter alto o valor em jogo, reconhecendo que aquelas palavras originais de Jesus foram proferidas no momento de tornar presente o Reino dos céus. E, portanto, para restaurar a força profética do matrimônio como sacramento à natureza evangélica, talvez seja necessário não recomeçar de novo a partir de Adão e Eva - essa tarefa já foi feita por Jesus! – a fim de universalizar a forma natural do matrimônio indissolúvel, mas sim recomeçar a partir de Jesus e do grupo restrito e particular daqueles que haviam deixado tudo para segui-lo, daqueles que, libertando-se do seu ‘patri-mônio’, foram capazes de abraçar aquela imagem excelsa e inatural de ‘matri-mônio’” (p. 105).

Essas palavras ajudam a compreender as últimas linhas com que se encerra a Amoris laetitia, com uma forte retomada dessa visão escatológica do matrimônio, que sabe compreender, ao mesmo tempo, a altura do ideal e a fragilidade dos caminhos que o perseguem:

“325. As palavras do Mestre (cf. Mt 22,30) e as de São Paulo (cf. 1Cor 7,29-31) sobre o matrimônio estão inseridas – não por acaso – na dimensão última e definitiva da nossa existência, que precisamos de recuperar. Assim, os esposos poderão reconhecer o sentido do caminho que estão a percorrer. Com efeito, como recordamos várias vezes nesta exortação, nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada de uma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. Há um apelo constante que provém da comunhão plena da Trindade, da união estupenda entre Cristo e a sua Igreja, daquela comunidade tão bela que é a família de Nazaré e da fraternidade sem mácula que existe entre os Santos do céu. Mas contemplar a plenitude que ainda não alcançamos permite-nos também relativizar o percurso histórico que estamos fazendo como família, para deixar de pretender das relações interpessoais uma perfeição, uma pureza de intenções e uma coerência que só poderemos encontrar no Reino definitivo. Além disso, impede-nos de julgar com dureza aqueles que vivem em condições de grande fragilidade. Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver nesse estímulo constante. (...)”

 

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