"Considerando toda a herança espiritual que o papa, como jesuíta, recebeu de Santo Inácio de Loyola, o autor conclui dizendo quais são os componentes intrínsecos do que entendemos por sinodalidade eclesial: o lugar prioritário do Povo de Deus, que deve ser escutado e assim participar ativamente da vida eclesial, a capacitação para a missão evangelizadora de cada cristão devido a seu batismo, o respeito à consciência de cada indivíduo na Igreja, a autoridade vista na perspectiva do serviço, o respeito às instâncias intermediárias na Igreja, a fidelidade ao Espírito Santo sempre a renovar a caminhada os fiéis, o importante papel enriquecedor dos pobres para o conjunto da Igreja, constituem, sem dúvida, elementos presentes na reforma empreendida por Francisco e no seu empenho por uma Igreja sinodal, confirmando sua intenção de tornar realidade a conquista do Concílio Vaticano II", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao comentar o livro Igreja Sinodal de autoria de Dr. Mario de França Miranda.
Imagem: Capa do livro Igreja Sinodal
O terceiro volume intitulado Igreja Sinodal de autoria de Dr. Mario de França Miranda faz parte da coleção Teologia do Papa Francisco – a qual pretende resgatar e sistematizar os grandes temas teológicos dos ensinamentos do papa reformador. Os pequenos volumes que compõem mais um conjunto da Biblioteca Francisco retomam os grandes temas da tradição teológica presentes no fundo e na superfície desses ensinamentos tão antigos quanto novos, oferecidos pelo Bispo de Roma. São sistematizações sucintas e didáticas; gotas recolhidas do manancial franciscano que revitalizam a Igreja e a sociedade por brotarem do coração do Evangelho.
O autor destaca que estamos vivendo uma mudança de época não só na sociedade, mas também na própria Igreja. Na Igreja essa mudança se deve a eleição do Papa Francisco, como reação do episcopado católico à centralização exagerada por parte da Cúria Romana e a certo intelectualismo e juridicismo presentes na vida da Igreja ocidental. Essa tendência centralizadora emergiu nos anos posteriores ao Vaticano II, diminuindo a importância da conquista conciliar e provocando certo mal-estar entre os teólogos e também entre figuras mais significativas do episcopado. Tudo parecia poder ser enquadrado e resolvido pela razão teológica e pela normatividade canônica. Recorria-se normalmente a princípios e a normas gerais as serem recebidos e vividos pelos membros da Igreja, independentemente da situação concreta ou de seus condicionamentos existenciais. Some-se a isso a concentração do poder nas mãos do clero, reduzindo o laicato a uma massa passiva sem voz e sem vez. A reação a este estado de coisas já fora iniciada pelo Concílio Vaticano II através da colegialidade episcopal, valorização da Igreja local, reconhecimento da dignidade do laicato na evangelização, Igreja em missão, fé inculturada, respeito à liberdade do cristão, diálogo sincero com a sociedade atual, maior espaço para a mulher na Igreja, reconhecimento dos esforços presentes nas outras Igrejas cristãs e, mesmo em outras religiões, pela justiça e pela paz no mundo.
Tomando como orientação básica a sinodalidade (caminhar juntos), por abranger boa parte do que foi acima elencado, por apontar para uma nova mentalidade na vida da Igreja que atinge todos os seus e sintetiza o espírito e alcance da reforma eclesial levada adiante pelo Papa Francisco, e por explicar mesmo a reação que tem encontrado por parte de alguns no interior da Igreja, a pergunta base que motiva o texto é o por que a Igreja deve ter esta característica, expressa em sua autocompreensão e em sua estrutura institucional. A resposta a esta questão é dada a partir de um enfoque trinitário, buscando fundamentar a insistência corajosa do Papa Francisco de concretizar uma Igreja sinodal.
Na primeira parte intitulada: O projeto do Pai para a humanidade mostra-se que a característica do projeto divino do Pai está na constituição de um povo (a eleição é e um povo e não de um indivíduo) e as promessas salvíficas feitas primeiramente ao povo judeu. Esse povo deveria, no trato entre os seus membros, na vida pessoal, familiar e social, obedecer à vontade de Deus, ao seu plano primeiro. Ao iniciar sua vida apostólica com o anúncio do Reino de Deus, Jesus continua na mesma linha aberta pelos profetas, a saber, reformar seu próprio povo para que pudesse desempenhar na história o papel que lhe reservara o Deus Altíssimo. Com a rejeição dos cristãos por parte dos judeus, irá nascer o novo Povo de Deus, a comunidade cristã: a Igreja. Esta tem como vocação realizar e proclamar a sociedade o projeto divino, resumido na pregação de Jesus como “Reino de Deus”. E a história da Igreja mostra avanços e retrocessos nesse caminhar. O Concílio Vaticano II representa um divisor de águas nesta matéria, uma vez que construiu uma eclesiologia que compreende a Igreja como Povo de Deus, em que todos gozam de igual dignidade e fundamental igualdade e vocação, estão capacitados a participar ativamente da missão evangelizadora da Igreja. Esta opção conciliar é decisiva para a realização de uma Igreja sinodal. O Código de Direito Canônico possibilitou maior participação de todos na Igreja pela criação de órgãos representativos como o Conselho Presbiteral, o Conselho Pastoral, o Conselho Pastoral Diocesano, o Sínodo dos Bispos, o Conselho Paroquial. No entanto, se torna necessário recuperar a verdadeira eclesiologia do Vaticano II, expressa nos capítulos I e II da Constituição Dogmática sobre a Igreja. Uma importante ajuda nos oferece o Documento de Aparecida (2007) ao afirmar que o sacerdócio ministerial está a serviço do sacerdócio comum dos fiéis e ao recomendar maior espaço de participação aos leigos também na elaboração e execução de projetos pastorais e na tomada de decisões, confiando-lhes ministérios e responsabilidades. Menciona as Comunidades Eclesiais de Base, frutos da ação do Espírito Santo, as quais recolhem as experiências das primeiras comunidades cristãs nas quais a comunhão e a participação de todos eram uma realidade evidente. No entanto, esse objetivo não será atingido sem uma séria e profunda mudança de mentalidade de todos na Igreja, especialmente da hierarquia.
Na segunda parte intitulada: Como Jesus Cristo proclamou e realizou este projeto, mostra-se quão decisiva foi a pessoa do Filho ao determinar com sua via e com suas palavras como esse povo devia proclamar e tornar realidade o Reino de Deus na história humana. O autor mostra que a proclamação do Reino de Deus por parte de Jesus Cristo acontece na sequência das promessas veterotestamentárias e delas recebe seu sentido. No entanto, não podemos encontrar em seus ensinamentos orientações diretas e precisas que servissem para estruturar institucionalmente a futura comunidade cristã. Se não podemos haurir de sua vida uma eclesiologia acabada, nem por isso suas palavras e ações deixam de incidir fortemente na vida da Igreja. Sua vida em vista da realização do Reino foi uma existência para os outros, uma existência descentra de si, uma existência atenta e solícita ante as carências e os sofrimentos alheios. Consequentemente, a construção progressiva do Reino irá se efetivando na fraqueza humana e na força de Deus, tendo seu ápice na paixão e na morte e cruz, não como eventos de uma derrota, mas como antecedente de uma vitória na vida eterna com o Pai. Jesus deixou claro que os colaboradores de Deus na difusão do Reino não devem se devem julgar superiores aos demais e nem mesmo utilizar sua autoridade apostólica como uma instância de poder. Sua intenção ao enviar seus discípulos em missão era que eles se pusessem com ele a serviço do Reino (autoridade em função do Reino). Por outro lado, o modo de proceder de Jesus Cristo em suas palavras e em suas ações já nos é tão familiar e corriqueiro que temo dificuldade em entendê-lo como modo pelo qual o próprio Deus quer que colaboremos em seu projeto pela humanidade. Essa dificuldade se manifestou com toda a sua força por ocasião do Vaticano II. Embora um grupo de bispos lutasse por uma Igreja mais pobre e menos poderosa, mais próxima dos necessitados e menos ligada ao poder civil, essa proposta foi ignorada pela maioria, conseguindo apenas uma menção no número 8 da Lumen Gentium. O que não foi conseguido no Concílio obteve ouro resultado na recepção do Concílio pelo episcopado latino-americano através das Assembleias Episcopais de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida – na opção pelos pobres a Igreja procurou fazer-se mais próxima deles, revestindo-se assim, de maior simplicidade e sobriedade, experimentando em muitos de seus ministros as duras condições de vida dos empobrecidos e marginalizados. Outra dificuldade em se manter fiel ao exemplo de vida de Jesus que se fez pobre e frágil está no ministério ordenado na Igreja. Embora conscientes de que se trata de um serviço – o fomento e o culto a um modo clerical de vida entre as novas gerações de ministros eclesiásticos, manifestadas em gastos com vestimentas, em excessos litúrgicos, em certa consonância de superioridade em relação ao laicato, em conceber o ministério como carreira eclesiástica, em se refugiar no âmbito do sagrado diante de uma sociedade complexa e crítica que não mais lhe reconhece o status social privilegiado do passado.
Na terceira parte intitulada A ação do Espírito Santo nas comunidades cristãs completa-se o quadro trinitário, uma vez que os textos neotestamentários nos afirmam que sem o Espírito Santo não pode haver comunidade eclesial. Tanto João (Jo 14 e 16) quanto Paulo (Rm 5,5; 1 Cor 12, 4-11) nos atestam que o Espírito Santo é dado à Igreja. A própria noção e comunhão, que fundamenta o que entendemos por comunidade cristã, provêm da participação de todos no mesmo Espírito. O mesmo Espírito que atuou na vida de Jesus atua hoje nos cristãos. Dai decorrem sérias consequências para a vida da Igreja. Pois o batizado goza da igual dignidade dos demais membros da Igreja resultante da recepção do sacramento. De fato, os sacramentos não são apenas “sinais da graça”, mas introduzem os cristãos num status novo que determina relações peculiares com Deus e com os demais irmãos. Assim sendo, os sacramentos são responsáveis por certa institucionalidade fundamental. Pelo fato de distribuir seu dons que, embora diversos, provêm da mesma fonte e se destinam à construção da comunidade eclesial, Espírito Santo é também responsável pela constituição institucional da Igreja, é princípio constituinte da Igreja e está construindo-a ativamente sem cessar. A plenitude de sua ação reside na totalidade dos diversos dons e carismas por ele concedidos, devendo ser respeitados, valorizados e realmente exercidos. A diversidade e pessoas e de dons do Espírito atuantes nas comunidades cristãs irá caracterizá-las diversamente do ponto de vista organizacional ou institucional. Diante disso, urge corrigir o déficit pneumatológico da tradição ocidental. No Concílio Vaticano II houve inúmeras intervenções em vista de equilibrar uma noção unilateral do papado. Na Lumen Gentium, em sua doutrina sobre o caráter sacerdotal do episcopado (n. 21), sobre o colégio episcopal com sua cabeça (n. 22) e sobre as relações dos bispos no interior do colégio (n. 23), oferece uma importante revalorização do corpo eclesial. A importância das Igrejas locais é também enfatizado no Concílio. Elas podem ser por si mesmas, sujeitos de pleno direito, bem como responsáveis pelas demais, sobretudo e, sua região, o que na linha das antigas Igrejas patriarcais irá constituir as Conferências Episcopais. Mais recentemente o Documento de Aparecida insiste na importância a Igreja local para a fé do indivíduo (n. 164), na comunhão de todos na Igreja, à semelhança da comunhão trinitária (n. 155), comunhão essa que deve caracterizá-la (n. 161) dotando-a de sua força de atração (n. 159).
A quarta parte intitulada O Papa Francisco e o projeto trinitário de uma Igreja Sinodal abordam o tema da sinodalidade no pontificado de Francisco seguindo a chave de leitura trinitária. Divide esta parte em três momentos: a) O Projeto do Pai: a eleição de um povo em vista da realização do Reino e Deus, b) o Papa Francisco na fidelidade à realização do projeto por parte do Filho, c) o Papa Francisco em sintonia com o Espírito Santo.
Esclarece que o Papa Francisco não entra na disputa entre as várias interpretações sobre o Concílio Vaticano II, mas simplesmente procura tornar esse Concílio realidade. Na sequência o autor mostra que a prioridade do Povo de Deus tal como vem atestada na Bíblia e é ressaltado pelo Concílio Vaticano II constitui também uma tônica nos pronunciamentos e nas opções do Papa Francisco. A ação missionária é o paradigma de toda a obra da Igreja. O sujeito da evangelização é todo o povo que peregrina para Deus de tal modo que a missão da Igreja compete a os seus membros, verdade essa com significativas consequências como a necessidade de que todos sejam ouvidos na Igreja, pois, uma Igreja sinodal é uma Igreja que escuta, consciente de que escutar é mais que ouvir. Deve-se também considerar a situação real e cada ser humano às voltas com seus condicionamentos, antes e proferir um juízo moral reconhecendo que o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, de tal modo que a consciência das pessoas deve ser melhor incorporada na práxis da Igreja. Ponto nevrálgico na reforma empreendida por Francisco em prol de uma Igreja sinodal vai ser uma correta compreensão das autoridades na Igreja, tendo-se me conta que na Igreja as funções não justificam a superioridade de uns sobre os outros. Assim, ao sumir a eclesiologia conciliar do Povo de Deus, Francisco insiste na participação ativa de todos os fiéis na Igreja em razão do seu batismo e o amadurecimento dos organismos de participação propostos pelo Código de Direito Canônico e a reabilitação da antiga organização eclesiástica, pois nossas instâncias intermediárias não concretizam ainda plenamente o espírito de colegialidade desejado pelo Concílio. Toda reforma autêntica nasce da ação do Espírito Santo e a fidelidade a ele significa escutar os sinais dos tempos através dos quis ele se manifesta, saber discernir nas realidades humanas a presença atuante de Deus, confiante que o Espírito Santo atinge a todos na Igreja. Desta maneira, Francisco valoriza a ação do Espírito no povo simples, na piedade popular. O Espírito renova e edifica a Igreja, nela suscitando diversos carismas, cuja diversidade não ameaça a unidade eclesial desde que não se feche em particularismos e exclusivismos.
Considerando toda a herança espiritual que o papa, como jesuíta, recebeu de Santo Inácio de Loyola, o autor conclui dizendo quais são os componentes intrínsecos do que entendemos por sinodalidade eclesial: o lugar prioritário do Povo de Deus, que deve ser escutado e assim participar ativamente da vida eclesial, a capacitação para a missão evangelizadora de cada cristão devido a seu batismo, o respeito à consciência de cada indivíduo na Igreja, a autoridade vista na perspectiva do serviço, o respeito às instâncias intermediárias na Igreja, a fidelidade ao Espírito Santo sempre a renovar a caminhada os fiéis, o importante papel enriquecedor dos pobres para o conjunto da Igreja, constituem, sem dúvida, elementos presentes na reforma empreendida por Francisco e no seu empenho por uma Igreja sinodal, confirmando sua intenção de tornar realidade a conquista do Concílio Vaticano II.
A Igreja Católica em todo o mundo oficialmente embarcou no processo sinodal 2021-2023. No caminho aberto, este pequeno volume traz contribuição relevante para os estudos sobre a Igreja sinodal e como o tema da sinodalidade se configura de um modo muito pessoal no magistério do Papa Francisco. Há sintonia entre o estilo do magistério de Francisco e o do ensino das conferências episcopais latino-americanas. Com Francisco, a Igreja da América Latina completa sua entrada na história mundial. Estudiosos do tema e grupos de estudo encontram aí matéria para ulteriores reflexões e debates. O leitor aproveitará dessa reflexão teológica cuidadosa, perspicaz e profunda. Livro digno de leitura.