Estreia nesta sexta-feira (13) o documentário ‘A Mãe de Todas as Lutas’, de Susanna Lira, que revive duas histórias trágicas e extremas da luta pela terra a partir de uma ótica íntima e feminina.
A reportagem é de Pedro Alexandre Sanches, publicada por Amazônia Real, 13-08-2021.
Estreia nesta sexta-feira (13), no canal de documentários Curta!, o filme A Mãe de Todas as Lutas, da carioca Susanna Lira, diretora de Torre das Donzelas (2018) e Legítima Defesa (2017) e especialista em direitos humanos e biopolítica criminal. O documentário revolve, sob ótica íntima e feminina, duas histórias trágicas e extremas da luta pela terra no Brasil, uma delas o massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no sul do Pará em 17 de abril de 1996, quando 19 trabalhadores sem-terra que haviam ocupado a Fazenda Macaxeira foram assassinados pela Polícia Militar paraense.
Susanna traça uma ligação direta entre A Mãe de Todas as Lutas e seu filme anterior, Torre das Donzelas, que entrevistava um grupo de ex-presas políticas encarceradas pela ditadura no início da década de 1970 no Presídio Tiradentes, em São Paulo, entre elas a ex-presidenta Dilma Rousseff. “Mulheres no front de lutas fundamentais no Brasil são muitas vezes invisibilizadas. Colocar luz nessas trajetórias tem um alinhamento com o meu olhar como documentarista que busca retratar questões sociais relevantes e abordar as questões de gênero que atravessam essas jornadas”, explica a cineasta.
As protagonistas de A Mãe de Todas as Lutas são Maria Zelzuíta, sobrevivente do massacre de Eldorado do Carajás, e, em Minas Gerais, Shirley Krenak, cuja vida foi atravessada pelo rompimento da barragem de Fundão, em Bento Rodrigues, distrito do município de Mariana, que devastou o Rio Doce em 5 de novembro de 2015. Susanna explica a decisão de contar paralelamente duas histórias distantes em termos de tempo: “Apesar de parecerem trajetórias muito diferentes, ambas lutam pelo direito à posse do território. Desde que os portugueses chegaram aqui há o questionamento sobre o direito indígena sobre o território brasileiro, onde na verdade nós somos os invasores. No século passado, essa batalha se transforma também numa luta de classes, quando os camponeses organizados reivindicam a ocupação da terra para trabalhar e viver”.
A diretora destaca a repercussão dos episódios de 1996 e de 2015 no momento presente: “Shirley Kernak e Maria Zelzuíta são mulheres brasileiras sobreviventes de massacres históricos e que nesse momento da história protestam com suas próprias existências, contra um sistema que, com o governo atual, se torna ainda mais perverso e cruel”. O paralelo no feminino entre Zelzuíta, Shirley, a terra e a mãe-Terra justifica o título A Mãe de Todas as Lutas, segundo ela: “A luta pela terra é a mãe de todas as lutas. Sem terra fértil, sem água, sem direitos sobre o lugar para morar é impossível empreender qualquer outra manifestação, é impossível viver”.
Local do massacre em Eldorado dos Carajás (Foto: Divulgação)
O documentário conta com a participação de profissionais paraenses na parte amazônica, ambos colaboradores da Amazônia Real: o fotojornalista belenense Cícero Pedrosa Neto foi o diretor de fotografia, e San Marcelo, cineasta de Bragança, operou a câmera nas entrevistas com Zelzuíta. “Foi uma honra tremenda participar dessa experiência com Susanna Lira, por tudo que ela representa hoje em termos de cinema para o Brasil. Ela tem uma pegada impressionante com direitos humanos”, afirma Pedrosa. “O massacre de Eldorado é uma das experiências mais trágicas de violência no campo que a gente tem aqui no Pará. Poder conhecer um pouco de como dona Maria Zelzuíta foi imprescindível naquele dia do atentado na Curva do S me marcou muito. Ela foi quem salvou as crianças que estavam no acampamento dos sem-terra quando a polícia chegou matando todo mundo.”
Maria Zelzuíta, sobrevivente do massacre de Eldorado e Carajás, e sua filha em assentamento dos sem-terra (Foto: Divulgação)
Zelzuíta surge em cena usando um boné do Movimento Sem-Terra (MST) e narrando a cena de mistura de lama com sangue formada com a chegada da PM à rodovia BR-155, com a ordem de retirar do local os militantes que protestavam contra a demora da desapropriação das terras ociosas da Fazenda Macaxeira. À época, fazendeiros da região trocaram acusações sobre quem teria pago propina para que os policiais matassem os líderes dos sem-terra. “Eu nem sabia o que era MST”, conta Zelzuíta, que se descobriu militante naquele momento.
“Acho que eu me achei aqui”, Zelzuíta relembra o que sentiu quando se viu em meio aos sem-terra que portavam panos vermelhos como sinal de luta. “Ela é a toda uma síntese de mãe, de mulher negra, de uma mulher que criou os filhos sozinha, que enfrentou várias lutas e está resistindo até hoje e continua absolutamente ativa dentro da luta desses ideais em que ela acredita”, diz Pedrosa.
Maria Zelzuíta, sobrevivente do massacre de Eldorado e Carajás, e sua filha em assentamento dos sem-terra (Foto: Divulgação)
Shirley Krenak dialoga com a ministra Carmen Lucia, do STF, em cena de “A Mãe de Todas as lutas” (Foto: Divulgação)
Susanna Lira fala da importância de reviver Eldorado do Carajás em 2021: “É impressionante ver como, apesar do passar dos anos, a violência no campo continua acirrada. Não à toa, o atual governo fez recentemente um material gráfico para comemorar o Dia do Agricultor com um homem armado. O derramamento de sangue continua, e falar de Eldorado é falar sobre nosso cenário atual, com o agravante de que, com a posse de armas facilitada, esse confronto passa a ser ainda mais trágico e desigual”.
Na outra metade de A Mãe de Todas as Lutas, Shirley Krenak surge pintada de guerra, lembrando o massacre a que os militares submeteram os povos indígenas durante a ditadura, ali mesmo em terras Krenak, onde funcionou, entre 1969 e 1972, o Reformatório Agrícola Krenak, uma prisão destinada a indígenas instituída em parceria entre a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Polícia Militar de Minas Gerais. “Nosso povo foi proibido de falar a própria língua”, Shirley sintetiza a violência. Em falas sempre poéticas, ela evoca os momentos pós-rompimento da barragem, quando os Krenak aguardavam, indefesos, a chegada da destruição a suas terras: “Antes da lama chegar, era como se passasse aqui o vento do silêncio. Nem os grilos você ouvia cantar mais”, “era época de piracema”, “o mau cheiro foi tomando o corpo da gente”, “o rio chora sangue”.
O filme vai revelando uma dinastia de mulheres Krenak lutadoras, que inclui a avó, a mãe e a filha pequena de Shirley. Seu irmão Douglas Krenak expressa a revolta no masculino: “Tenho muita raiva dentro de mim. É um crime que continua, uma destruição que não cessou. É um crime que se renova”. A Mãe de Todas as Lutas termina em Brasília, durante a Marcha Mundial das Mulheres, já em tempos bolsonaristas, reunindo num só corpo margaridas negras como Zelzuíta e militantes indígenas como Shirley, que vai de encontro a uma ministra Carmen Lúcia de expressão constrangida e entoa para ela o “Canto dos Pássaros”. “A Amazônia sangra”, denuncia a líder Joênia Wapichana em meio à marcha. A luta continua.
A Mãe de Todas as Lutas. De Susanna Lira. Brasil, 2021, 71 min. No canal Curta!, sexta-feira (13), às 21h35 e 23h; sábado (14), às 3h e 12h; domingo (15), às 18h; segunda (16), às 17h. No Curta! On, no Now da NET/Claro ou aqui.