Desemprego e falta de assistência das autoridades colocam em risco sobrevivência de moradores que vivem nas ruas.
A reportagem é de Cicero Pedrosa Neto, publicada por Amazônia Real, 11-08-2021.
“A gente já vivia no meio de um monte de desgraça, a pandemia só piorou tudo”. A frase de Lene Silva, que tem 40 anos e há 26 vive nas ruas de Belém, capital do Pará, resume o drama enfrentado pela população em situação de rua no Brasil com a chegada devastadora da pandemia da Covid-19.
Socialmente vulneráveis, com doenças crônicas e imunodepressoras, usuários de drogas, vivendo em condições extremamente insalubres e vítimas da fome, essa população tem sido uma vítima invisível da doença: as autoridades públicas de saúde no estado não possuem dados epidemiológicos oficiais sobre os impactos da pandemia neste grupo social, conforme apurou a reportagem.
No próximo dia 19, o Brasil comemora o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua, criada em 2004, mas a realidade de quem não têm um teto e dorme nas calçadas é de desamparo e invisibilidade, agravada mais ainda com os impactos da pandemia.
Na Região Metropolitana de Belém, a desocupação e a falta de empregos, consequências da crise econômica, somadas à chegada da pandemia, resultaram no aumento do número de pessoas vivendo nas ruas.
Márcio (nome fictício), tem 32 anos e contou que vive nas ruas sempre que não consegue pagar um “quartinho”, moradias temporárias espalhadas pelo centro da cidade. Ele, que pediu à reportagem para não ser identificado com o nome completo, tinha um carrinho de pipoca, ao lado de um shopping, na esquina da avenida Visconde de Souza Franco, até a chegada da pandemia.
“O povo teve que ficar em casa e eu, que dependia do movimento, não tive mais para quem vender. Não pude mais pagar o quartinho, voltei para a rua e tive uma recaída”, explicou Márcio, que é usuário de drogas, enquanto aguardava na fila para receber o jantar oferecido pela irmandade franciscana “O Caminho”. Localizada na rua Aristides Lobo, no centro histórico de Belém, a irmandade diariamente distribui alimentos com o apoio de voluntários.
Márcio é o que se pode chamar de morador de rua intermitente, aquele para quem a rua é o primeiro destino quando não há escolhas para a sobrevivência. Assim como ele, muitas pessoas vivem neste ritmo pendular e poucas conseguem sair dessa condição por conta do abandono histórico dos governos e da falta de oportunidades, que acabam levando esta população à invisibilidade.
Distribuição de alimentos nas ruas do centro de Belém (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
Com a chegada da Covid-19 e suas demandas pelo controle da disseminação do coronavírus, a falta de políticas públicas efetivas voltadas para este público, de maneira geral, veio à tona como mais um desafio para governos, profissionais de saúde e organizações da sociedade civil que trabalham com pessoas em situação de rua.
Na capital paraense não foi diferente: a falta de estatísticas oficiais, de levantamentos que dêem conta da especificidade da população de rua vivendo em Belém e das limitações do próprio sistema de saúde, escancararam problemas crônicos que se acumularam ao longo de anos de negligência do poder público.
“Eu só não morri de Covid porque Deus não quis, mas passei doze dias muito ruim mesmo, eu e a minha menina. Ele aí teve, mas foi fraco”, contou Shirley Pilar, 42, ao lado da filha de sete anos, apontando para o marido, Reginaldo Neves da Silva.
Com 53 anos, Reginaldo cata latinhas, mas diz que até isso ficou difícil durante os picos da pandemia com o fechamento de bares, restaurantes e com a diminuição do trânsito de pessoas nas ruas. Ele também fazia alguns bicos de pedreiro antes da Covid-19 – o que dava à família alguns intervalos das ruas. Eles vivem atualmente em um local cedido por uma conhecida, no bairro da Campina, centro da cidade.
Apesar de não haver dados concretos, a Secretaria Municipal de Saúde de Belém estima que hoje existam entre 1.500 e 2.000 pessoas vivendo em situação de rua na cidade. Pela ausência de referências de anos anteriores, não se pode mensurar o aumento da população nas ruas da capital com o início da crise sanitária causada pelo coronavírus.
Mesmo ficando atrás de muitas cidades como São Paulo e Rio de Janeiro – que lideram o ranking das cidades com maiores números de pessoas em situação de rua – profissionais de saúde e pessoas ligadas a organizações da sociedade civil, que atuam voluntariamente com esses grupos, em Belém, alertam que esses números podem estar defasados.
De acordo com dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), até março do ano passado, exatamente no mês em que a pandemia oficialmente chegou ao Brasil, cerca de 221 mil pessoas viviam nas ruas do país. Mas não há dados atualizados que mostrem o aumento dessa população em níveis nacionais, com o passar dos meses de impacto do coronavírus na sociedade brasileira. O último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) a gerar dados sobre a população em situação de rua no Brasil é de 2008 e não há expectativas de que ela seja incluída no censo previsto para ocorrer ainda este ano.
Segundo Thyago Rezende, que trabalha como voluntário há quase dez anos com esse público – e que hoje coordena um núcleo estratégico de atenção à população de rua na Secretaria Municipal de Saúde de Belém – a Covid-19 trouxe outros contornos ao perfil das pessoas que vivem nas ruas.
“A gente começou a observar famílias inteiras indo parar nas ruas porque perderam suas casas com o desemprego e a falta de ocupação trazida pela pandemia. A gente, infelizmente, só não sabe quantas”, conta.
O casal Tayana Trindade dos Santos e Jorge Luís Fonseca da Silva perdeu tudo com a chegada da pandemia (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
É o caso da família de Tayana Trindade dos Santos, ex-feirante de 24 anos, e Jorge Luís Fonseca da Silva, 42, ex-estivador. Apesar das dificuldades, eles nunca viveram nas ruas, mas perderam tudo durante a pandemia e foram parar, junto com os três filhos pequenos, na “Casa Abrigo para Moradores Adultos de Rua” (CAMAR), mantida pela prefeitura municipal de Belém.
“Essa doença [Covid-19] me afetou muito. Eu não fiquei doente, mas ela quase me matou de outras formas. Eu e minha família fomos despejados da casa que a gente vivia porque atrasamos um mês de aluguel”, narra Jorge Luís, que até janeiro deste ano fazia diárias como estivador em um porto às margens do Rio Guamá, em Belém.
“Eu cheguei para trabalhar quatro e pouco da manhã, como todos os dias, e veio a notícia de que iam reduzir o número de diaristas lá na empresa em que eu trabalhava. Perdi o chão na hora. Eu já estava quase sendo contratado quando veio a doença e acabou com tudo”, relata.
O casal contou à Amazônia Real que teve sorte, porque no mesmo dia conseguiu ingressar em um abrigo mantido pelo governo do Estado, aberto no período da pandemia para acolher pessoas em situação de rua, o primeiro onde estiveram.
“Eu só conseguia pensar nas nossas coisas no meio da rua. A gente perdeu tudo que a gente tinha dentro de casa: geladeira, fogão, roupas. Saímos com a roupa do corpo”, lamenta Tayana. Os pertences do casal foram coletados por um dos irmãos de Jorge, que se desfez dos bens sem que eles soubessem.
“A gente está lá no abrigo, mas na esperança que tudo isso melhore e eu possa voltar a trabalhar para ter nossa casinha de novo”, anseia Jorge que, vacinado, aguarda por uma entrevista de emprego em uma empresa de alimentos da cidade.
Thyago Rezende afirma haver também pessoas que, impactadas pela crise, passaram a viver em extrema pobreza. Elas moram em barracos ou conseguem pagar quartinhos com a ajuda de benefícios do governo, mas não têm dinheiro para se alimentar. A maioria é idosa. “Elas, hoje, dividem com a população de rua os mesmos pontos de recebimento de alimentos na cidade e percorrem longas distâncias, quase sempre a pé”.
Procurada pela Amazônia Real, a Prefeitura de Belém, por meio da Fundação Papa João XXIII, ligada à assistência social do município, informou que ainda não dispõe de um quantitativo oficial de pessoas em situação de rua e que também não sabe informar sobre o crescimento dessa população durante a pandemia, por não haver ainda um censo específico com este fim. Mas trabalha com estimativas baseadas nos atendimentos realizados pela assistência social do município.
João Eudes Ferreira, 38 anos, está hoje em situação de rua (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
O principal desafio enfrentado pela população em situação de rua na pandemia se dá justamente pelo fato de que as mesmas regras epidemiológicas impostas pelo coronavírus ao restante da sociedade são inaplicáveis no contexto das ruas. As orientações sobre distanciamento social, uso de máscaras e atenção redobrada com a higiene pessoal não têm as mesmas respostas nestas populações que sequer têm onde dormir.
“Aí a gente ouve, ‘fica em casa’, mas como que a gente vai ficar em casa se a gente mora na rua?”, questiona João Eudes Ferreira, 38, que mora nas ruas há seis anos. “E tem mais, eu não consigo usar máscara numa quentura dessas”, disse ele, com a máscara na altura do pescoço.
“Nunca imaginei que eu fosse viver um negócio desses de pandemia. Pegou a gente despreparado, às vezes eu nem acredito. Parece um vento que sai levando e matando as pessoas”, define João. A imagem evocada por ele reflete bem o contexto de exposição e vulnerabilidade das pessoas em situação de rua frente à ameaça mortal do coronavírus.
Thyago Rezende, que atua como voluntário em dois projetos de acolhimento de pessoas em situação de rua – o Bem-Querer e o Missão Belém – conta que várias entidades da sociedade civil promoveram distribuição de máscaras de tecidos, mas que por conta da dinâmica insalubre da vida nas ruas e da falta de acesso à água, até mesmo para o consumo, é impossível manter as máscaras limpas.
Voluntários distribuem alimentos em frente à Agência dos Correios, no centro de Belém (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
Vitor Nina, médico do Consultório na Rua, programa federal vinculado ao SUS, explica que o contexto de vulnerabilidade da população em situação de rua é histórico e vem acompanhado de problemas que se agravaram na pandemia. Ele destaca a situação de saúde dessas pessoas que, segundo ele, sofrem frequentemente de desnutrição, tuberculose, doenças imunodepressoras – como o HIV/AIDS – tornando-as potencialmente mais vulneráveis aos efeitos da Covid-19.
Nina aponta ainda para uma ocorrência pouco mencionada e que, segundo ele observa, pode ter ocorrido em números elevados com esta população: a coinfecção.
“É possível que muitas pessoas tenham morrido por coinfecção tuberculose e Covid-19. As duas doenças agem juntas: a pessoa já tinha um quadro de tuberculose, chega a Covid e agrava a situação”, argumenta o médico se referindo a possibilidade de ação conjunta de uma ou mais doenças com a Covid-19.
Segundo ele, há dificuldades no mapeamento epidemiológico das pessoas em situação de rua porque elas podem simplesmente ser tratadas como indigentes em caso de óbito nos hospitais, pelo fato de não informarem endereços fixos e de não estarem acompanhadas por um responsável.
Questionada sobre a omissão dos dados epidemiológicos da população em situação de rua no Pará, a Secretaria Estadual de Saúde informou que não quantifica esses números porque o “Sistema de Notificação do Ministério da Saúde não possui a variável que identifica indivíduos em situação de rua”.
Tendo-se chegado no Brasil à marca de 20 milhões de infectados, cerca de 10% do quantitativo mundial, o Ministério da Saúde segue desconhecendo e ignorando a especificidade de alguns grupos, como indígenas, quilombolas, ribeirinhos e pessoas em situação de rua.
“Na rua, todo mundo se trata como igual. A gente come com a colher do outro, bebe no mesmo copo, mesmo as vezes sabendo que aquela pessoa tem uma doença feia. Se um irmão chega com uma sacola de comida e quer dividir, a gente faz uma roda e todo mundo mete a mão ali, não tem dessa”, conta Lene Silva.
Quando perguntada sobre a maior dificuldade que enfrentou na pandemia, Lene responde: “o povo já tinha nojo da gente, quando veio a Covid, aí que eles não quiseram mais nem chegar perto. A gente bate na casa das pessoas para pedir e, lá de dentro, já todos de máscara e ‘encapados’, só balançam a mãozinha dizendo que não tem”.
Lene Silva, 40 anos, decidiu não se vacinar. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
“A gente revira lixo, bebe e come o resto dos outros, usa tóxicos e bebe cachaça. Tu achas que a gente vai se dobrar para este vírus?”, indaga Lene, uma das pessoas mais emblemáticas ouvidas pela Amazônia Real nesta reportagem.
Ela, que preferiu não se vacinar, costuma ficar na praça localizada em frente à Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no bairro da Campina. Lene não quis se vacinar porque acredita que a população em situação de rua tenha uma certa “resistência” ao vírus da Covid-19, por conta da exposição frequente às péssimas condições sanitárias e outros riscos próprios da vida nas ruas.
Incluídos desde dezembro entre os grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização (PNI) do governo federal, os moradores de rua receberam as primeiras doses da vacina, em Belém, entre os dias 3 e 4 de julho e, segundo a Secretaria de Saúde, a imunização alcançou cerca de 60% da população que vive nas ruas. A secretaria disponibilizou pontos de vacinação em áreas estratégicas da cidade, incluindo os distritos de Icoaraci e Mosqueiro, e continua realizando busca ativa dos que ainda não se imunizaram.
Cerca de 1500 doses foram disponibilizadas pelo governo do Estado, mas nem todas as pessoas aceitaram a vacinação. Um dos principais motivos foi o “medo de intervenção”.
“A vacinação depende muito da confiança dessas pessoas nos profissionais de saúde, porque elas possuem experiências traumáticas, muitas vezes violentas, com o Estado”, analisa Vitor Nina, que já trabalha há vários anos com pessoas em situação de rua e acredita que a vacinação deste grupo é uma forma de ratificação do seu direito à vida.
Ação de vacinação da população em situação de rua, em Belém (Foto: Arquivo/SESMA)
Esta reportagem é apoiada pela Open Society Foundations dentro do projeto “Marcas da Covid-19 na Amazônia”.