09 Agosto 2021
Com a desculpa formal de repensar os sete clássicos pecados capitais, o psicanalista e doutor em Filosofia Luciano Lutereau investiga em seu último livro, Miserias hipermodernas, o mapa dos sintomas contemporâneos e aborda como são tratados o desejo, a relação com o dinheiro, a obsessão pelo saudável, as máscaras geradas pelas redes sociais e a dificuldade em estabelecer vínculos.
O livro é resultado dos seminários do ciclo Revoluções íntimas, ministrados por Lutereau, no espaço Letras del Sur, e será seguido por Fragmentos del lazo social e por outro que abordará as questões relativas ao corpo. A abordagem, conforme destaca o filósofo Darío Sztajnszrajber no prólogo, entende o sujeito capitalista a partir da psicanálise para explicar por que os vínculos se desvalorizaram até se tornarem transações neoliberais.
“A renúncia ao desejo, típica do sujeito de nossa época, que vive acossado pelo medo do fracasso, já é conhecida: a depressão, o verdadeiro mal deste século”, avalia o psicanalista Luciano Lutereau.
A entrevista é de Ana Clara Pérez Cotten, publicada por Télam, 30-07-2021. A tradução é do Cepat.
Você diz que o neurótico na época freudiana sofria porque amava, ao passo que em nosso século se sofre porque é difícil amar. E explica que isso tem a ver com o modo como somos sujeitos de uma época. Que questões do mundo atual possibilitam que os pecados capitais sejam hiperfuncionais para viver nossos dias?
Há tempo, desejava fazer uma revisão dos pecados capitais, postos à prova na sociedade contemporânea. São um bom catálogo das formas de viver, basta que pensemos na preguiça, em uma época na qual as pessoas dizem que tudo lhes “dá moleza”. O desprendimento do ato, da determinação, daquilo que nos é imposto, como um compromisso ou uma obrigação, é algo crescente.
De onde surgiu a ideia de que se algo não foi escolhido por nós é um problema? Acreditamos que isso é a liberdade, mas é a moral do indivíduo neoliberal que quer ter opções e calcular o melhor que, na realidade, é o que lhe convém. É assim que deixamos de lado o conflito.
Por quê?
Não queremos que nada nos represente uma perda e sofremos de outro tipo de mal-estar que não é o das neuroses. Os neuróticos freudianos sofriam porque estavam intimidados a escolher, escolhas forçadas que se traduziam em sintomas, é certo, mas que por sua vez implicam uma dignidade.
Um exemplo freudiano: amo uma mulher que não pode ter filhos e, pensemos, em inícios do século XX, isso implicava em abrir mão da paternidade, então, esse homem desenvolveu uma neurose obsessiva relativa à dúvida de com qual mulher se casar, mas sua neurose não teria existido se não tivesse sido afetado por uma escolha.
Hoje, tudo pode ser adiado ou colocado em questão. Esse é um mau sentido da palavra “desconstrução”, que não é para se tornar relativista, não é para se indeterminar e querer tomar decisões sobre as quais não se arrepender. A desconstrução implica que não existe decisão que não tenha a sua cota de arrependimento, sua libra de carne com a qual é preciso pagar, porque não escolhemos o melhor quando escolhemos com o desejo.
A hipótese trabalhada no livro é que a hipermodernidade está mais relacionada à falta do que ao excesso. Como define isso que falta e que impede o vínculo?
Temos o hábito de pensar os pecados como excessos. Diferente dos pecados da Bíblia – refiro-me aos dos mandamentos –, os chamados “pecados capitais” surgiram para determinar a forma como cada um regula a si mesmo. Os mandamentos prescrevem uma regra clara. Por exemplo, “não matar”, e não existe matar pela metade, ou um pouquinho. Quem mata, mata. Mas, onde começa e onde termina a luxúria?
Ou pensemos na gula, no que acontece hoje em dia, em nossa sociedade, com os chamados “transtornos alimentares”, em que alguém pode desfrutar muito mais do que não come do que em se empanturrar. Não é o que demonstra a aneroxia?
Claro que isso supõe uma ideia de corpo, um ideal de beleza e que comer se tornou um assunto de saúde. Não existem, hoje, alimentos que se tornaram famosos por tudo o que “não” trazem? Sem isso, sem aquilo e, assim, até pagam mais caro!
Os pecados do século XXI não tem mais a ver com o excesso, não há mais luxuriosos que se pareçam ao Marquês de Sade e suas fantasias de licencioso: o desejo está em crise e a deserotização tende a que cada um se isole em seu próprio gozo e mal compartilhe algo com os outros, com o consequente empobrecimento do vínculo e a solidão de ter tudo e não ter nada, como demonstra o avarento que não é mais um rico ao estilo do tio do Pato Donald, que nada em moedas, ao contrário, o avarento de nosso século é o mesquinha de seu tempo, sua disponibilidade, o que dá o que sobra, o que não quer que lhe peçam porque, senão, sente-se exigido e sobrecarregado.
Nas primeiras páginas, você agradece pela fé e pelo amor. O epílogo é uma defesa do cristianismo como a religião que defende a comunidade. E o livro começa com uma citação de Lacan, que faz referência à relação entre religião e psicanálise. De onde vem o seu interesse em aproximar essas duas ideias, pensando-as juntas?
Na dedicatória, agradeço a meus pais, a minha mãe pelo amor e a meu pai pela fé. É um modo de situar algo que descobri há algum tempo: crer é algo que vai separado do amor e exige um ato, uma decisão, também certo temor e tremor.
O epílogo lembra o livro de Rafael Gumucio, Por qué soy católico, e uma conversa que tivemos em Santiago do Chile, alguns anos atrás, uma tarde em um café, antes que eu fosse para o aeroporto. Quem conhece Gumucio, sabe que não se trata de um autor conservador, nem dogmático.
Daquela conversa guardei no coração como me lembrou o modo como Jesus disse à sua mãe, diante de João: “Mulher, eis aí o teu filho”. Jesus foi o primeiro Anti-Édipo (para recordar o título de Deleuze e Guattari), por esse espírito de doação concedeu sua mãe a quem precisava dela. Hoje, proliferam os anticristos, mas quem vai contra Édipo? É fácil hoje se definir como ateu, mas em que acreditam aqueles que dizem não acreditar? Qual é a sua religião? A do capital? A do Eu? A da espiritualidade que afirma que o importante é “soltar-se” e “estar bem consigo mesmo”?
Antes que a religião dos pais, o cristianismo é a dos irmãos, ou seja, a que promove amar aos outros, esse mandato impossível que para Freud era espantoso: “Amar o próximo como a si mesmo”. Porém, para entender essa mensagem é preciso entender uma mensagem bíblica: que o filho adota o pai, que o sangue importa menos do que o amor.
Jesus permanece sendo o mistério do desejo que não pode se justificar e o amor que repara. Toda vez que alguém diz “Jesus, eu confio em vós” está deste lado, dos filhos abandonados, daqueles que deixaram seus pais, de um desejo que rompe nossas ideias conservadoras (embora acreditemos ser liberais) de maternidade, dos filhos que foram recebidos em adoção. Do lado dessa sociabilidade que está no limite do social.
Muitas das questões que você analisa no livro estão relacionadas à falta de um dique psíquico, de uma margem interna. Com o que esta ausência está relacionada, segundo sua experiência na clínica?
Essa é uma hipótese clínica que desenvolvo para cada um dos pecados capitais. A ideia de autorregulação, de encontrar o próprio limite, sem que isso tenha que vir de fora, como um obstáculo ou um golpe frontal (o famoso “trombar sempre com a mesma parede”), ocupou um lugar privilegiado no seminário que, depois, se tornou esse livro.
Associa-se também a pensar limites que não são privativos, mas construtivos, por exemplo, uma margem interna (como também chamo os limites) pode ser o prazer. Uma experiência de prazer tem um começo e um fim, é a coisa mais transitória que existe, mais cedo ou mais tarde, acaba e é preciso fazer um luto para passar para outra coisa. O prazer rejeita a acumulação.
É como diz a canção de Charly García: “O que foi belo será horrível depois”. Levemos essa ideia à noção de alimentação: degustar, digerir, mastigar, arranjar tempo para se alimentar, saborear o jantar com o outro, etc., tende à mesura. Ou tomemos outro pecado do qual não falamos, como a inveja, que não consiste em querer o que o outro tem (diferente do ciúme), mas em que o outro não tenha, em prejudicar o que o outro tem, seja muito ou pouco, mas de maneira completamente desconectada de minha própria capacidade de ter algo.
Na análise, o tratamento da inveja leva as pessoas a serem mais felizes sem grandes ambições, não por resignação, mas porque descobrem o quanto pode ser feito com o que possuem, quanta energia lhes tira o medo de que o outro tire algo delas, a paranoia e a insegurança com que vivem, quando o que temos, na verdade, nem sequer é para nós, porque desfrutamos muito mais quando compartilhamos.
Alerta, ao final do texto, que o que cura é o laço, o vínculo. Como defendê-lo ou restabelecê-lo?
Assim como disse que acredito no encontro, acredito também no laço e nos vínculos, que compreendo a partir do conflito, da diversidade, mas que nos dão a oportunidade de mostrar do que somos feitos. Hoje em dia, por exemplo, cada vez menos pessoas atravessam um conflito, sem se vitimizar. A vitimização se tornou a defesa mais eficaz contra o desejo.
Trata-se sempre do outro e assim vemos todos os dias proliferar versões imaginárias de que o outro é ruim, que o outro é tóxico, que o outro é psicopata, mas ninguém pensa a si mesmo como psicopata! São psicopatas os cônjuges, os chefes, até os filhos! Mas qual é a minha cumplicidade com aquilo de que me queixo o tempo todo [?]. Viverei apenas para me queixar?
O ponto é perceber que o outro lado da moeda de todo vínculo é a desidealização: o outro não é como eu gostaria, muitas de minhas expectativas ficarão pelo caminho, alguns de seus gestos, atos e atitudes vão me causar dor, mas isso significa que o vínculo foi um erro? O desafio é conseguir deixar de lado a idealização, mas não por isso se desesperançar.
A distinção é simples: a perda de idealização é respeito ao outro, mas a expectativa vincula. Todo vínculo passa por momentos de hesitação, instabilidade, decepção, mas essas tormentas podem fazer parte de seu crescimento e potencial. Resistir à instrumentalização das relações humanas, a que o outro seja um objeto de consumo e, “quando me serve”, muito bem e, quando não, “não me cabe” e ao lixo, faz parte de assumir uma perspectiva que recupera o conflito não como algo negativo, mas como uma força transformadora e construtiva.
Jorge Drexler diz isso de forma muito concisa e clara em uma de suas canções: “Brindo pelas vezes que perdemos as mesmas batalhas”. No jogo de quem ganha e quem perde, perdem os dois. Quando aprendemos a perder juntos, ganhamos... a renovação do vínculo.
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“Os pecados capitais são um bom catálogo das formas de viver”. Entrevista com Luciano Lutereau - Instituto Humanitas Unisinos - IHU