30 Julho 2021
Há alguns meses, com o início da campanha de vacinação [na Itália], várias vozes ressaltaram que se vacinar não é uma obrigação, mas uma responsabilidade ética. A decisão pessoal sobre a vacinação se situa no ponto nodal entre a liberdade pessoal e a responsabilidade pelo bem comum. Alguns documentos magisteriais recentes ajudam a refletir sobre os valores em jogo e sobre os critérios para a sua composição.
A análise é do economista italiano Paolo Foglizzo, mestre em Doutrina e Ética Social pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e ex-membro do Secretariado para a Justiça Social da Cúria Generalícia da Companhia de Jesus.
O artigo foi publicado em Aggiornamenti Sociali, fevereiro de 2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Até hoje, as vacinas representam a mais concreta esperança de combater a pandemia da Covid-19 e a consequente emergência sanitária, social e econômica que afeta o mundo inteiro. A campanha de vacinação terá que ser acompanhada por outras medidas sanitárias e socioeconômicas, mas, neste momento, continua sendo um fator crucial. O seu sucesso dependerá do entrelaçamento de três fatores.
O primeiro é a efetiva qualidade das vacinas, isto é, a capacidade de suscitar, por um tempo suficientemente longo, uma reação imunitária capaz de permitir que as pessoas vacinadas resistam à doença, reduzindo assim o número de vítimas e a sobrecarga do sistema de saúde.
Se, depois, produzirem a imunidade ao contágio e não apenas o zeramento ou a atenuação das manifestações clínicas – ainda é cedo demais para dizer isso –, a epidemia seria detida mais rapidamente, e alcançaríamos a imunidade de rebanho. Os resultados da experimentação das vacinas legitimam expectativas positivas, mas devem ser confirmadas no nível da população em geral.
O segundo fator crítico é a disponibilidade de doses suficientes para imunizar o maior número de pessoas possível (idealmente, a população inteira) em todo o mundo. Caso contrário, a epidemia continuará sendo uma ameaça mais ou menos latente.
Com base nos contratos de fornecimento concluídos até agora [na Itália], as doses das vacinas já aprovadas (para a União Europeia, Pfizer/BioNtech e Moderna, no momento em que escreveremos) serão suficientes para cobrir, no primeiro semestre de 2021, apenas uma fração relativamente reduzida da população italiana [1] e ainda menor da mundial.
Finalmente, igualmente crucial será a disponibilidade a ser vacinada de uma parcela suficientemente ampla da população, estimada entre 70% e 90%. Se esse limite não for alcançado, os vacinados poderão ficar mais tranquilos, mas continuaremos lidando com um elevado número de contágios e mortes, e com a superlotação dos hospitais.
Embora ainda não estejam disponíveis dados suficientemente consolidados, alguns indicadores permitem prever que a resistência à vacinação pode ser bastante elevada, com significativas variações de país para país.
O primeiro front põe em causa as potencialidades da pesquisa no campo biomédico, portanto as capacidades dos pesquisadores, mas também as escolhas de investimento público e privado no setor, além do rigor das autoridades reguladoras, com a consciência de que os tempos técnicos das fases experimentais não são compressíveis além de um certo limite, a menos que se comprometa a validade dos resultados. A emergência não pode servir de pretexto para revogar a prudência e a precaução, especialmente no campo da saúde.
A questão da disponibilidade das vacinas remete à capacidade produtiva da indústria farmacêutica e, portanto, também às escolhas de investimento, público e privado, e de política industrial de longo prazo: certamente não bastam apenas poucos meses para equipar laboratórios capazes de encontrar vacinas eficazes e plantas capazes produzi-las.
Além disso, especialmente no que diz respeito à definição do preço das vacinas e, portanto, à possibilidade de acesso também para os países pobres, vem novamente à tona o antigo debate sobre o equilíbrio entre os direitos de propriedade intelectual (as patentes) e o bem comum.
Em nível global, ainda não conseguimos encontrar uma modalidade satisfatória de compor a lógica do mercado, centrada na remuneração do capital investido (a maximização dos lucros ou do valor dos acionistas, em termos técnicos), com a promoção de bens comuns, como a saúde global.
O resultado é que as vacinas, assim como qualquer outro produto de mercado, estão disponíveis para quem pode pagar por elas, mesmo que, neste caso, quem normalmente paga não são os cidadãos – a vacinação é gratuita – mas os Estados, que dispõem de uma maior força contratual.
Alguns produtores anunciaram a intenção de disponibilizar a vacina a preços controlados, cobrindo os custos sem gerar lucros, mas a falta de transparência em torno dos contratos de fornecimento não permite obter ideias claras a esse respeito. [...]
No entanto, mesmo preços muito reduzidos podem se revelar proibitivos para países de baixa ou baixíssima renda, porque é preciso levar em consideração também os custos de distribuição e administração. Apesar do slogan “Ninguém está a salvo enquanto todos não estão a salvo” (“No one is safe until everyone is safe”), ainda não se veem rastros de mecanismos para implementar essa afirmação de solidariedade em nível internacional.
Na contratação dos fornecimentos, a União Europeia tem mostrado a validade de uma abordagem supranacional, evitando a concorrência entre os países, que se traduziria em uma vantagem econômica para os produtores e em desagradáveis desigualdades entre os cidadãos da União Europeia.
Em nível global, não podemos deixar de notar a falta de instituições semelhantes, dotadas dos poderes necessários para cuidar do bem comum de todos os habitantes do planeta: é um ponto crítico que a doutrina social da Igreja levantou muitas vezes desde a encíclica Pacem in terris (1963) de João XXIII (particularmente os números 68-75). Tanto Bento XVI (cf. Caritas in veritate, 2009, n. 67) quanto o Papa Francisco (cf. Laudato si’, 2015, n. 175) reiteraram o ponto com grande força.
Por fim, a aceitação das vacinas por parte da população também remete a questões cruciais da política e da cultura do nosso tempo: das fake news, que podem ser mortal quando levam a fazer escolhas erradas e que nos últimos anos se disseminaram muito precisamente sobre as vacinas, à confiança nas instituições políticas e científicas [2], passando pelas modalidades de comunicação dos resultados da pesquisa científica e de midiatização do debate entre cientistas.
Mas a questão também se coloca em outro nível: no momento em que está disponível, a vacina interpela cada um a fazer uma escolha, na qual se entrelaçam a liberdade pessoal e a responsabilidade pelo bem comum, que deixa de ser um conceito abstrato e assume uma forma concreta.
Vacinar-se é uma escolha pessoal, que a lei respeita e não impõe, mas não é individual, no sentido de que exige que se considere o vínculo com a coletividade da qual cada um faz parte. O caso é diferente da grande maioria dos tratamentos de saúde, como as intervenções cirúrgicas ou as terapias talvez bem mais invasivas e arriscadas do que uma vacinação: quem as rejeita se expõe a um risco, mas decide substancialmente por si só, levando em consideração o círculo dos entes queridos, em particular daqueles em relação aos quais tem responsabilidades.
Por outro lado, mesmo levando em conta o risco remoto que sempre apresenta, e salvo graves contraindicações que a tornam desaconselhável, como no caso de alergias, quem recusa a vacinação expõe a um risco não só a si mesmo, mas também outros. A sua escolha retarda a contenção da pandemia, pois continuará sendo potencialmente contagiável e, portanto, contagioso, em detrimento de todos aqueles que não podem ser vacinados ou sobre os quais a vacinação não tem efeito: a sua proteção depende da cobertura vacinal alheia e do alcance da imunidade de rebanho. E com um ônus adicional para a coletividade, devido ao prolongamento da sobrecarga do sistema de saúde.
Nas primeiras semanas do ano, não faltaram avisos de autoridade nesse sentido, começando pelo do presidente [italiano] Mattarella, que, na tradicional mensagem de fim do ano, afirmou: “Vacinar-se é uma escolha de responsabilidade, um dever”. O Papa Francisco, na entrevista transmitida pelo Canale 5 no dia 10 de janeiro, também declarou que se vacinar “é uma opção ética, porque você põe em jogo a saúde, a vida, mas também põe em jogo a vida de outros”.
Nos últimos dias de 2020, dois documentos vaticanos abordaram a questão de um modo mais orgânico. O primeiro é a “Nota sobre a moralidade do uso de algumas vacinas anti-Covid-19”, publicada pela Congregação para a Doutrina da Fé no dia 21 de dezembro. O tema principal é a consideração da legalidade da utilização de vacinas em cujo processo de pesquisa e experimentação tenham sido utilizadas linhagens celulares obtidas em decorrência de abortos provocados: é o caso de todas as vacinas aprovadas ou em vias de aprovação nos países ocidentais, mesmo que com situações diferenciadas [3].
Depois de resolver positivamente a questão “com a consciência certa de que o recurso a tais vacinas não significa uma cooperação formal para o aborto do qual derivam as células com que as vacinas foram produzidas” (n. 3) e justificando o uso diante do grave risco pandêmico que permitem conter, a Nota prossegue com uma afirmação que provocou uma repercussão midiática muito inferior: “A moralidade da vacinação depende não só do dever de tutela da própria saúde, mas também do dever da busca do bem comum” (n. 5); e termina, depois, lembrando que “há também um imperativo moral (...) de assegurar que as vacinas, eficazes e seguras do ponto de vista da saúde, assim como eticamente aceitáveis, sejam acessíveis inclusive aos países mais pobres e de modo não oneroso para eles” (n. 6).
Poucos dias depois, em 29 de dezembro, esses argumentos foram relançados pela nota da Comissão Vaticana Covid-19, em colaboração com a Pontifícia Academia para a Vida, intitulada “Vacina para todos. 20 pontos para um mundo mais justo e saudável”, que os conjuga no contexto concreto da campanha de vacinação em curso, com uma particular atenção para a garantia de um acesso verdadeiramente universal à vacina.
Nesse contexto, quem recusa a vacinação se aproxima da posição que a reflexão ética chama de “free rider”, de quem deseja as vantagens e os benefícios oferecidos pela coletividade sem arcar com os ônus correspondentes: o exemplo típico é o sonegador. Em um mundo hipotético em que todos estão vacinados, exceto uma única pessoa, essa única pessoa não vacinada estaria protegida do contágio graças à vacinação alheia. Mas, se cada um buscasse ocupar essa posição, ninguém aceitaria ser vacinado, e todos ficaríamos desprotegidos.
Na recente encíclica Fratelli tutti (2020), o Papa Francisco reflete sobre como não se enredar nas contradições das derivas individualistas, articulando liberdade e fraternidade. Em particular, ele nota que “quando não há a fraternidade conscientemente cultivada, quando não há uma vontade política de fraternidade (...) a liberdade se atenua, predominando assim uma condição de solidão” (n. 103). É difícil imaginar uma exemplificação dessas palavras melhor do que a situação que estamos vivendo.
A pandemia nos obrigou a sofrer forte compressões da nossa liberdade. A imunidade prometida pelas vacinas representa a esperança de sair dessa situação, mas apenas com a condição de uma difusão suficiente delas. Ou seja, hoje são necessárias escolhas pessoais inspiradas na fraternidade, isto é, abertas à consideração das vantagens e dos riscos coletivos, e não só individuais da campanha de vacinação. Caso contrário, os muitos muros e proibições com os quais a nossa liberdade se choca todos os dias custarão a cair.
Igualmente, precisamos de políticas inspiradas na fraternidade, por exemplo, no que diz respeito ao acesso universal às vacinas, se não quisermos arriscar que as nossas liberdades se tornem ilusórias por estarem confinadas em âmbitos espaciais reduzidos e constantemente ameaçados.
Como escreve o Papa Francisco, “a mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade. Nem pode sequer preservar-nos de tantos males, que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de vencer. Ilude” (FT 105). O maior engano é justamente o de nos fazer crer que é possível a liberdade sem a contribuição da fraternidade. Hoje, tocamos com a mão o fato de que proteger a liberdade de cada um, além da segurança de todos, exige fazer escolhas de fraternidade.
1. Com base na distribuição dos lotes adquiridos pela União Europeia, no primeiro semestre de 2021 cabem à Itália cerca de 22 milhões de doses da Pfizer/BioNtech e Moderna, o suficiente para vacinar cerca de 11 milhões de pessoas de uma população de cerca de 60 milhões. Por isso, é muito importante o resultado do processo de aprovação da vacina AstraZeneca, da qual, nesse mesmo período, a Itália espera mais de 40 milhões de doses.
2. Por exemplo, nos Estados Unidos é conhecida a desconfiança da população afro-americana em relação às instituições públicas de saúde, ligada ao fato de ela ter se envolvido no passado em experimentações sem o seu conhecimento. Consequentemente, teme-se uma menor adesão à campanha de vacinação dos afro-americanos, embora particularmente afetados pela pandemia.
3. A esse respeito, com mais detalhes técnicos do que a nota, mas com uma conclusão idêntica, ver o documento da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos: Rhoades, K. C.; Naumann, J. F. (presidentes da Comissão de Doutrina e da Comissão de Atividades Pró-Vida, Conferência dos Bispos dos Estados Unidos). Moral Considerations regarding the new COVID-19 Vaccines. USCCB, 14 dez. 2020, posteriormente retomado pelos episcopados de vários Estados estadunidenses.
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Vacinar-se: um dever de fraternidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU