15 Julho 2021
Inédito: o documento que a indústria da carne enviou à reitoria da USP acusando a pesquisadora Larissa Bombardi. Em entrevista, ela conta por que resolveu se exilar na Bélgica, e vê “total semelhança” com o período da ditadura.
“Ah, se a professora diz que pulverização aérea não é uma coisa segura, então convido a professora a dar uma voltinha no avião pra ver como tem segurança”. Essa foi uma das mensagens que a pesquisadora sobre agrotóxicos Larissa Bombardi, do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), recebeu após a publicação da versão em inglês, na Europa, entre abril e maio de 2019, do Atlas “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia”, que trata dos impactos do uso de agrotóxicos no Brasil.
As intimidações e ameaças ganharam força após a maior rede escandinava de orgânicos boicotar produtos brasileiros por conta das informações do Atlas, atingindo, assim, interesses do agronegócio. Pesquisadora respeitada nacional e internacionalmente e especialista em uso de agrotóxicos, Larissa passou a receber ofensas e ter seu trabalho questionado e desacreditado em artigos, como os do agrônomo e político Xico Graziano, entusiasta do agronegócio.
Em agosto de 2020, a casa onde morava foi assaltada. “Não sei se o assalto está relacionado ao trabalho ou não. Não dá para saber, não vou saber nunca, mas levaram um computador velho e uma televisão. Eu tinha saído, e quando voltei as luzes estavam acesas. Abri a porta e tinha três caras lá dentro, estavam com pedaços de madeira”, afirma a professora, em entrevista a O Joio e O Trigo.
No mesmo ano, após a publicação de um artigo sobre a “correspondência espacial entre suinocultura e covid-19”, a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) enviou uma carta por email à pesquisadora, com cópia para a coordenação do programa de pós-graduação do Departamento de Geografia e para a Reitoria da USP, afirmando que a “hipótese de estudo de correlação entre suínos e o homem não apresenta lógica biológica, ou seja, não tem amparo epidemiológico em razão da especificidade de hospedeiro doméstico que os coronavírus apresentam”. A Embrapa, ligada ao Ministério da Agricultura, também emitiu uma nota onde afirma que “a tentativa de culpar a produção de suínos por estes problemas não está devidamente sedimentada em estudos científicos”.
De acordo com Bombardi, “nos artigos, tomamos muito cuidado, afirmamos que é uma hipótese, que não está comprovada, que precisa de mais pesquisas. A gente publicou os artigos com muito cuidado, mostrando que é uma hipótese e eles disseram ‘a professora não pode levantar esse tipo de hipótese’”. Para ela, as cartas são “uma tentativa de me intimidar, de limitar minha pesquisa, de limitar o livre pensar”.
Depois de meses de medo, em abril deste ano ela mudou-se com os dois filhos para a Bélgica, onde conquistou uma bolsa para fazer uma pesquisa na Universidade Livre de Bruxelas.
Para ela, há semelhanças entre perseguições a intelectuais, professores e pesquisadores ocorridas durante a ditadura militar (1964-1985) e as perseguições atuais. “Não sou o único caso, tem outros, tanto é que criamos uma rede, a rede Irerê, de apoio de e para pesquisadores sob risco no Brasil. Tenho pensado muito na ditadura e hoje tem um elemento pior que é a questão difusa. Na ditadura, houve um golpe, pelo menos se sabia. Hoje, não se sabe bem o que está acontecendo, porque tem uma casca democrática.”
A entrevista é de Tatiana Merlino, publicada por O Joio e o Trigo, 13-07-2021.
Como e quando começaram as intimidações e ameaças?
Eu estive tranquila até o momento em que lancei o Atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia em inglês, na Europa em 2019. Até então eu já tinha lançado o Atlas em 2017, no Brasil. E vinha trabalhando, dando entrevistas. E estava tranquila, em ambiente aparentemente tranquilo e seguro. No final de abril, lancei a versão em inglês aqui na Europa – na Escócia e na Alemanha. Na Escócia, dei uma entrevista a um jornalista francês e ele perguntou: “A senhora não se sente ameaçada, nunca sofreu ameaça?” Eu respondi: “Nunca aconteceu, faz anos que trabalho com isso e sempre trabalho com dados públicos e oficiais.” Nesta noite, eu tive insônia. Quando voltei para o Brasil, o dono da maior rede de produtos orgânicos da Escandinávia resolveu boicotar os produtos de origem brasileira após o lançamento do Atlas.
Depois disso, aconteceram coisas diretas e indiretas. Uma direta foi que dei uma entrevista na televisão e recebi uma mensagem de uma pessoa que dizia ser piloto de avião: “Ah, se a professora diz que pulverização aérea não é uma coisa segura, então convido a professora a dar uma voltinha no avião pra ver como tem segurança.”
Depois, houve tentativas de desmerecer o trabalho como pesquisadora. Em junho de 2019, o Xico Graziano [agrônomo e político] publicou um artigo tentando destruir a minha pesquisa e no artigo ele deixa claro que “a professora foi fazer barulho na Europa, estardalhaço”, ele usa uma expressão assim e tenta desmerecer os principais argumentos do trabalho. A assessoria de imprensa perguntou se eu queria pedir um direito de resposta e eu disse que sim. Publiquei um artigo, como direito de resposta. Foi até bom, porque eu mostrei, ponto por ponto, desmontando os argumentos que ele trazia. Mas o debate não é no âmbito científico, é em outro âmbito, o tom do texto dele era desrespeitoso.
Também foi lançada uma plataforma chamada Agrosaber, e lá também disseram “professora da USP mente”. Foi um terror psicológico gigante, fiquei semanas envolvida nessa história, tentando provar que o que eu faço é sério, que é pesquisa, que é ciência. A tentativa é dizer “isso é coisa de comunista”, era esse o tom, e agora está claro o quanto isso está alinhado com esse discurso do governo “é coisa de comunista”. É interessante ver como eles invertem. Semanas atrás o governo declarou que “o presidente Jair Bolsonaro defende autonomia indígena” que, na verdade, é a autonomia dos indígenas plantarem soja e criar gado. Nesse texto, o Graziano fala que “ela nega os avanços da ciência”, como se a negacionista fosse eu.
De uma forma sutil, tem toda uma narrativa para te desconstruir e desmoralizar. E para quem está trabalhando com ciência isso é um terror. Porque o tempo inteiro estamos sendo avaliados por pares, tudo que se preza é o rigor científico, é a busca de coerência e de critérios. Há uma tentativa de desestruturação emocional, além da tentativa de desacreditar, de querer mostrar que esse tipo de pesquisa não tem importância, também tem um terrorismo psicológico.
Houve uma vez que fui dar uma entrevista em uma rádio e a jornalista que ia gravar a entrevista comigo disse: “acho melhor você não ir, pode ser perigoso”. O ano de 2019 foi inteiro assim. Em julho, eu ia dar uma palestra em Santa Catarina, no Ministério Público e o pessoal do MP se dispôs a me buscar com segurança, no aeroporto, me levar até o hotel, entendendo a situação, que talvez tivesse um risco. Mas acabei não indo.
Quando você informou a universidade que isso estava acontecendo?
Isso foi tomando certa proporção e levei ao conhecimento do reitor da USP, que disse “precisamos marcar uma reunião hoje com a diretora da nossa faculdade”, referindo-se à FFLCH. Ela nos recebeu na mesma tarde e pediu para eu organizar um dossiê com tudo que havia acontecido.
Nesse momento, o caso do dono da rede da escandinávia que tinha boicotado os produtos já estava muito público. No Brasil, a gente fala “tem criança morrendo, tem criança com câncer” e fica todo mundo quieto. Mas quando há o risco econômico posto, as coisas mudam.
Depois, o reitor da USP ofereceu a guarda universitária enquanto eu estivesse no campus, mas eu não quis, pensei: “não vou ter estrutura emocional para lidar com isso. Não posso consumir meu cotidiano nisso.”
Depois, quando vim fazer a fala no Parlamento europeu, em dezembro deste mesmo ano, em 2019, eu já estava com muito medo, pensando em diversas formas, meios de ficar um tempo fora do país, vendo bolsa, vendo possibilidades de desenvolver pesquisa, na minha carreira, no meu tema. Nunca pensei em desistir do tema e nem nada disso.
Antes desta fala de 2019, não quis avisar ninguém que ela ocorreria. Só quando voltei, aí sim gravei o programa no canal do Bob Fernandes, e eles editaram a minha fala no Parlamento. Quando eu fiz essa apresentação, o Paul Emile Dupre, do Parlamento europeu, perguntou como estava lidar com esse tema no Brasil e eu respondi “está bem difícil, mas não fui efetivamente ameaçada”. Eu quis dizer que não fui ameaçada de morte. E ele, que trabalha com direitos humanos, disse “não precisa. Nem tudo acontece com aviso”. Eu disse “mas no Brasil tem uma coisa muito clara de classe e racial, eu sou professora universitária e branca”. E ele respondeu: “Zuzu Angel também era branca.” Aquilo me gelou a espinha.
Quando você decidiu ir embora?
Voltei para o Brasil e me organizei para vir em março de 2020, mas veio a pandemia, não consegui vir. Me estruturei para vir em setembro, e tive dificuldade enorme no meu departamento para conseguir o afastamento.
E depois escrevi uma carta aberta aos meus colegas do departamento. Disse aos colegas que achava importante que o conselho do departamento autorizasse a minha saída. Essa carta acabou vazando, foi para a imprensa e depois recebi muitas cartas de apoio de instituições do Brasil e fora e isso foi muito bonito.
O Xico Graziano, quando teve notícia desta carta, publicou no twitter dele, “é vagabundagem o que ela vai fazer na Europa”. Além de tudo, tem uma questão de gênero também.
Em agosto do ano passado, minha casa foi assaltada. Não sei se o assalto está relacionado ao trabalho ou não. Não dá para saber, não vou saber nunca, mas levaram um computador velho e uma televisão. Eu tinha saído, e quando voltei as luzes estavam acesas. Abri a porta e tinha três caras lá dentro, estavam com pedaços de madeira.
Me fizeram acordar minha mãe, a boca dela secou por dentro e ela não conseguia falar. Fomos trancadas no banheiro, passamos a noite trancadas, ficamos horas, um terror.
Depois do dia do assalto, disse “não vamos ficar aqui mais nenhum dia”. Fiquei seis meses de casa em casa. Felizmente meus filhos não estavam no momento do assalto, mas ficaram mexidos. Consegui fazer toda essa costura política preservando as crianças, mas muitas noites eu acordava em sobressalto e perdia o sono por horas.
Foi uma tensão, e nessa época os vôos estavam proibidos e eu estava sem visto. Aí surgiu uma chamada de pesquisa e um projeto meu sobre green criminology na Amazônia foi aprovado. Me organizei e vim, mas foi muita tensão.
A primeira manhã depois que cheguei aqui, pensei “nossa, que alívio”. E essa é uma das primeiras vezes que estou usando a palavra Bolsonaro abertamente em entrevista, desde que cheguei aqui. No Brasil, eu não tinha coragem.
Você também recebeu uma carta da Associação Brasileira de Proteína Animal após a publicação de um artigo que mostra a correlação entre o aumento de infectados pela covid 19 e a criação de porcos, como foi isso?
Teve uma carta da ABPA e uma nota técnica da Embrapa. Nos nossos artigos tomamos muito cuidado, afirmamos que é uma hipótese, que não está comprovada, que precisa de mais pesquisas, pesquisa transdisciplinar. A gente publicou os artigos com muito cuidado, mostrando que é uma hipótese e eles disseram “a professora não pode levantar esse tipo de hipótese”.
A ABPA mandou duas cartas, uma primeira, e depois uma segunda assinada por uma professora titular da Veterinária da USP, mas a reitoria não me procurou para nada. A nota técnica da Embrapa e a carta da ABPA são uma tentativa de me intimidar, de limitar minha pesquisa, de limitar o livre pensar.
Você vê alguma relação de isso estar acontecendo no governo de Jair Bolsonaro?
Total. É como se agora eles tivessem uma procuração para agir desse jeito, essa é a sensação que eu tenho. Mesmo esse tipo de associação, a liberdade da associação [Associação Brasileira de Proteína Animal] escrever para a reitoria da USP. A gente está num estado de exceção que permite que algumas instituições tomem medidas de exceção também. Essa é a impressão que eu tenho. Eles estão abertos para pressionar pesquisadores, eles têm o aval. Os próprios reitores que foram impostos nas universidades públicas nas universidades federais são o exemplo disso. Estamos num momento de intervenção, eles têm o alvará, a procuração para poder fazer esse tipo de coisa, essa é a leitura que eu faço.
Eu acho que o fascismo está posto de um jeito nesse momento atual da sociedade, que antes as pessoas, ainda que tivessem uma perspectiva fascista, a mantinham guardada, porque sabiam que era incorreto. Havia uma presença do bom senso imposta, tinha uma presença dos direitos humanos imposta.
Eu que lido com a questão da agricultura e ambiental sei quais foram os descaminhos que ocorreram nos governos populares [de Lula e Dilma]. Com muitos acertos em algumas áreas e em outras infelizmente não. Eu acho que em grande parte o que está acontecendo hoje no campo não teria acontecido se no primeiro mandato do governo Lula o plano Plínio de Arruda Sampaio, o segundo plano nacional de reforma agrária, que previa assentar um milhão de famílias, tivesse sido implantado. Mas havia um ambiente em que os direitos humanos e meio ambiente tinham um lugar central, de cuidado.
E agora não, isso não tem valor. Então todos esses assassinatos de indígenas, de um jeito que nunca aconteceram, os ataques aos LGBTQ+, as pessoas nas periferias sendo mortas da maneira como estão, e os ataques aos professores, processados, isso é intervenção. Abriram as portas para o fascismo, abriram as portas para o inferno. Agora todo mundo tem aval para manifestar os horrores, até para se sentir à vontade para escrever para o reitor de uma universidade tentando censurar uma professora, o que é isso? Tem isso no ambiente, um ambiente de opressão, o pesquisador fica amarrado para desenvolver a pesquisa, é uma intimidação. É uma tentativa claríssima de intimidação.
Você vê semelhanças entre o que aconteceu com você com o que aconteceu durante a ditadura militar, de pesquisadores, professores afastados das universidades, perseguidos?
Total semelhança. Não sou o único caso, tem outros, tanto é que criamos uma rede, a rede Irerê, de apoio de e para pesquisadores sob risco no Brasil. Irerê é um pássaro que avisa os outros quando tem perigo. Tenho pensado muito na ditadura e hoje tem um elemento pior, que hoje a questão é difusa. Na ditadura, houve um golpe, pelo menos se sabia. Hoje, não se sabe bem o que está acontecendo, porque tem uma casca democrática.
Por exemplo, como eu sabia que eu ia lançar esse Atlas “Geografia das Assimetrias: Colonialismo Molecular e Círculo de Envenenamento”, das relações Mercosul e União Europeia, no Parlamento europeu agora em maio, pensei “não vou poder estar no Brasil quando isso for lançado, porque ele é muito impactante”. É triste ver a fragilidade, a gente tinha tanta certeza da democracia que a gente tinha. Estamos no mesmo velho lugar do terror e da ditadura, que toda vez que tem uma conquista, mínima que seja, no âmbito social no país, vem a ditadura, é impressionante.
Tem toda semelhança com o momento da ditadura e com as coisas parecidas que os professores daquela época sofreram. E tem muitos professores com medo de serem cerceados, e alguns são mesmo perseguidos.
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“É uma tentativa de me intimidar, limitar minha pesquisa e o livre pensar”, diz professora da USP que saiu do Brasil após ameaças - Instituto Humanitas Unisinos - IHU