29 Abril 2021
O Brasil está discutindo a aprovação de uma lei que privatiza a compra e a distribuição de vacinas da Covid. Em detrimento dos mais pobres.
A reportagem é de Julien Dourgnon, publicada por Alternatives Économiques, 27-04-2021. A tradução é de André Langer.
Triste mês de abril. Como se esperava desde o início de março, a variante P1 da Covid-19, identificada pela primeira vez em Manaus, capital do Amazonas, espalhou-se pelo país como um rastro de pólvora. Segundo o Instituto Butantan – que é, ao lado da Fiocruz, um dos dois institutos de doenças infecciosas especializados em vacinas humanas –, essa variante, cuja contagiosidade é maior que a variante inglesa que atinge a Europa, causou a pior crise na área da saúde desde o início da pandemia.
Em meados de março, a maioria dos 26 Estados brasileiros havia restabelecido a panóplia de medidas restritivas: abertura do comércio limitado a produtos essenciais, toque de recolher às 17h ou às 20h dependendo dos lugares, fechamento de todas as escolas públicas e privadas. Apenas 15 dias após sua reabertura, proibição da venda de álcool nos fins de semana... Mas já era tarde. A forte dinâmica de propagação da variante P1 (63.000 novos casos em média por dia e taxa de reprodução superior a 2), alimentada pela promiscuidade dos habitantes das áreas urbanas e pela tradição de encontros em família, por vezes em grande número nos finais de semana, de forma rápida sobrecarregou o serviço público de saúde (SUS).
No final de março, os 23.000 leitos de terapia intensiva (UTI) dos hospitais públicos do país (1) e os 9.000 leitos dos hospitais provisórios de campanha já estavam com ocupação superior a 95%, em média. Alguns dias depois, hospitais superlotados fizeram com que pacientes com insuficiência respiratória tivessem que esperar por tratamento intensivo, com dois tubos no nariz e uma minigarrafa de oxigênio nos braços, enquanto a equipe médica alertava as autoridades sobre a falta iminente de medicamentos de sedação, necessários para a intubação.
A situação é insuportável para os familiares dos pacientes colocados na lista de espera, alguns dos quais buscam ajuda no Facebook ou no Instagram para encontrar uma UTI disponível na região. Em 21 de abril, 22 dos 26 Estados ainda se encontravam em uma situação qualificada como “crítica”, com uma taxa de ocupação dos 58.000 leitos de UTI (setores público e privado) acima de 90%.
Com uma média de cerca de 3.000 mortes por dia, com picos de mais de 4.000, durante mais de um mês, o país registrou 90.000 mortes apenas em abril. Desde o início da pandemia, já soma 394 mil vítimas sobre um total de 212 milhões de habitantes. Agora, e pela primeira vez, o número de mortes per capita excede o da França ou da Itália, ao passo que a população aí [no Brasil] é significativamente mais jovem.
A pandemia, que já atingiu mais os jovens do que na Europa, é ainda mais virulenta contra essa faixa etária. De acordo com a Fundação Fiocruz, os casos de infecção na faixa etária de 30 a 59 anos saltaram 550% entre janeiro e o final de março, ante uma média de 300% para todas as idades somadas. A proporção de pacientes internados com menos de 60 anos passou de 33% para 44% no período. Esse rejuvenescimento continua mal explicado, mas alguns pesquisadores o atribuem ao menor cumprimento das regras de isolamento social e à progressão da vacinação entre os idosos.
Se o pico de hospitalizações parece ter sido atingido, nenhuma perspectiva de um grande declínio é esperada nas próximas semanas. Apesar de tudo, vários Estados começaram a relaxar nas medidas restritivas. Nos Estados de São Paulo e da Bahia, shopping centers gigantescos reabriram nos dias de semana, assim como o comércio das ruas centrais das cidades. Cedo demais, segundo pesquisadores do Butantan e da Fiocruz, para quem a situação epidemiológica segue degradada. Segundo eles, apenas a vacinação de pelo menos 70% da população permitirá que se baixe a guarda.
E o Brasil está longe disso. O país paga caro pelos cinco meses, entre outubro e fevereiro, em que o governo federal minimizou a questão sanitária da vacinação para torná-la uma questão puramente política. Ao recusar, por sua vez, 60 milhões de doses da chinesa Coronovac, 30 milhões da russa Sputnik V, por pressão da diplomacia americana da administração de Donald Trump, e 70 milhões do laboratório da Pfizer, o Brasil perdeu o bonde de uma vacinação em massa acelerada.
De acordo com dados consolidados divulgados no último fim de semana, 18% da população recebeu a primeira dose da Coronovac ou da AstraZeneca e apenas 7,3% a segunda. Este lento progresso depende da importação a conta gotas de doses e é desacelerado pela falta das substâncias ativas necessárias para que os dois institutos nacionais produzam as duas vacinas localmente.
No entanto, segundo o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, à frente do “programa nacional de imunização”, a vacinação completa da população prioritária, os maiores de 60 anos e/ou com comorbidade grave, deve ser concluída no final de setembro, auxiliada pela chegada, antes do final de junho, de 14 milhões de doses prometidas pelo laboratório Pfizer, a terceira vacina a ser autorizada pela Agência Nacional da Saúde (Anvisa).
Essa lentidão abriu uma brecha na qual entrou a iniciativa privada. Cansada de entrar na fila, conforme exige o plano nacional de vacinação, e ciente do lucro a ser auferido, a elite empresarial brasileira, após ter organizado operações clandestinas de vacinação “fura fila” amplamente divulgadas na imprensa, utilizou suas redes para “sensibilizar” o Congresso para os benefícios da “flexibilização” do monopólio público sobre a compra e a distribuição de vacinas contra a Covid-19.
Argumentando que a iniciativa privada tem mais condições de negociar com os laboratórios, que é mais ágil na distribuição das doses e, principalmente, que a compra por empresários privados permitiria a vacinação antecipada dos funcionários, o lobby acabou tendo ganho de causa. Um projeto de lei nesse sentido, aprovado pelos deputados e que está indo para o Senado, onde há boas chances de ser aprovado assim como está, recebeu o inesperado apoio do ministro da Saúde.
O projeto de lei (PL 948/2021) facilita a compra de vacinas contra a Covid-19 por pessoas jurídicas privadas, passando, quando aplicável, por acordos comerciais com empresas privadas do setor da saúde: laboratórios, redes de farmácias, grupos privados de seguros de saúde. Em contrapartida, essas empresas serão obrigadas a reservar 50% das doses adquiridas prioritariamente para os trabalhadores, sendo o restante devolvido ao SUS.
Uma restrição considerada equilibrada pelos parlamentares favoráveis ao texto do projeto de lei, mas que sabem que é formal e contornável. Uma disposição legislativa, adicionada ao longo do caminho, fez os professores da saúde pública das principais universidades federais do país e os partidos políticos da oposição pularem de alegria.
Enquanto o SUS só pode usar vacinas autorizadas pela Anvisa, as empresas podem administrar qualquer soro, desde que tenha sido validado por pelo menos uma organização reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Fica, portanto, aberta a porta para que os compradores privados se isentem da obrigação adquirindo vacinas não autorizadas pela Anvisa, que não podem ser utilizadas pelo SUS.
Além do fato de o texto poder ser sancionado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por inconstitucionalidade e apresentar graves problemas de segurança sanitária, fará surgir, segundo o ex-diretor da Anvisa Gonzalo Vecina, uma “fila dupla” de vacinação.
“É imoral! Quem tem dinheiro é vacinado primeiro. Quem tem dinheiro pode fazer o que quiser enquanto quem não tem precisa ficar na fila de espera. Vamos mesmo instalar a barbárie no Brasil?”, denuncia.
O texto será inútil para acelerar a vacinação, além de desferir um golpe fatal na autoridade e credibilidade do órgão nacional de saúde, acrescenta Daniel Dourado, médico e advogado do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (USP).
Este golpe dos empresários do setor privado a favor da distribuição paralela de vacinas, com o apoio benevolente de deputados da constelação de partidos do Centrão, que voltaram à vanguarda do jogo político e que são reconhecidos pelo seu oportunismo, ilustra a dificuldade do país para garantir a igualdade de acesso aos cuidados da saúde, apesar de uma crise excepcional.
Essa questão de uma saúde em duas velocidades já estava em pauta em maio de 2020, no final da primeira onda epidêmica que pressionava os serviços de reanimação do setor público e muito menos os das estruturas privadas.
Estas últimas, acessíveis apenas a 26% dos brasileiros com plano de saúde privado ou que podem pagar por cuidados caros em dinheiro, ainda assim possuem um número de leitos de terapia intensiva equivalente ao do sistema público.
O Brasil, contando todas as estruturas hospitalares disponíveis, é, portanto, bastante bem dotado de UTIs, além do padrão recomendado pela OMS e das capacidades disponíveis na França, mas a oferta verdadeiramente acessível varia muito conforme o seu nível de riqueza e da sua localização.
Numa média nacional, o SUS dispõe de 1,1 UTI para cada 10.000 habitantes, contra 5 para o sistema privado, cujos serviços são voltados exclusivamente para um pequeno segmento da população. Desigualdade reforçada pela má distribuição das UTIs no território, relativamente mais numerosas no Sul e Sudeste do país do que no Norte e Nordeste. Ao final, a oferta para 10.000 habitantes pode variar de 1 a 6.
Por fim, entre um sistema de saúde público mal servido desde 2017 pelo governo federal e pelas instituições privadas, o fosso também se ampliou em termos de equipamentos e técnicas.
O popular comediante Paulo Gustavo, em estado grave de insuficiência respiratória, tem acesso, em um hospital privado de alto padrão, a uma técnica de oxigenação de última geração chamada ECMO, fora do alcance do SUS e de seus 33 mil pacientes em tratamento intensivo no Brasil.
A perspectiva de uma nova onda epidêmica no final de 2020 levou diversos Estados a publicarem decretos exigindo a requisição de UTIs do setor privado em troca de uma justa compensação, em nome da otimização do uso dos recursos em tempos de calamidade.
De qualquer forma, a calamitosa gestão da pandemia por parte do presidente Bolsonaro, descrita como “genocida” pela oposição, deixará sua marca: humana, é claro, mas também política.
Num país como o Brasil, onde as três instâncias – os 26 Estados, os 5.570 Municípios e o Governo Federal – têm, cada uma, amplas competências específicas na área da saúde pública, na articulação das estratégias de saúde, na conjugação dos recursos ou na coerência da comunicação pública, isso é ainda mais crucial.
No entanto, Jair Bolsonaro não acatou o pedido dos governadores de instalar uma estrutura permanente de crise, o Centro de Operações de Emergências (COE), até 23 de janeiro, ou seja, um ano após o início da pandemia. Da mesma forma, o presidente só demonstrou benevolência com a vacinação muito recentemente; antes era crítico dela. Por outro lado, não cedeu às medidas restritivas dos governadores, que ainda considera criminosas e inconstitucionais.
Na última sexta-feira, o presidente disse à cadeia de televisão da região Amazônica que estava pronto para convocar o Exército para fazer valer o direito constitucional de ir e vir, de trabalhar, de rezar nas igrejas, apresentando-se, de passagem, como o defensor do último recurso das liberdades públicas e, portanto, da Constituição, contra a “covardia” dos governantes.
A abertura oficial de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as responsabilidades do Governo Federal na gestão da pandemia, que a oposição espera que leve a um processo de impeachment de Jair Bolsonaro, obviamente não esfriou os ardores do presidente em polarizar a opinião, aliás, uma de suas especialidades.
A ponto de levantar dúvidas entre alguns dos oficiais militares, para quem a passagem do general Pazuello como ministro da Saúde foi um desastre. Preocupados com os efeitos devastadores para a instituição, assentada sobre a ordem e a eficiência, de estar associada a um presidente incontrolável e maniqueísta, generais com carreiras de prestígio tomaram distância do governo.
Em meio a todo esse circo político, a população dá a volta por cima e conta seus mortos.
1. Em março de 2021, o Brasil tinha 66.000 UTIs, 49% no setor público e 51% no setor privado. Cerca de 20 mil foram criados para lidar com a pandemia, segundo o IBGE.
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Vacinas: no Brasil, os ricos querem furar a fila! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU