“Não podemos desmaiar ao perceber que, como Vida Religiosa, somos construtores indispensáveis dessa mudança que não pode ser adiada. O Papa nos propõe um plano para ressuscitar… É urgente discernir e promover junto com os outros as dinâmicas que podem testemunhar e canalizar a vida nova que o Senhor quer gerar neste momento da história”, aponta Liliana Franco Echeverri, religiosa da Ordem da Companhia de Maria Nossa Senhora, preside a Conferência Latino-Americana de Religiosos – CLAR e a Conferência de Religiosos da Colômbia e é doutoranda em Teologia na Universidade de Antioquia, Colômbia.
O conteúdo deste artigo foi apresentado pela irmã Liliana Franco no evento A Vida Religiosa Consagrada no mundo (pós)pandêmico. Presença solidária onde a Vida clama, realizado pelo Instituto Humanitas Unisinos, 09-04-2021.
São tantos e tão variados os rostos da pandemia: uma crise sanitária imparável, que cobre toda a geografia do planeta e nos coloca de frente com a nossa vulnerabilidade e a urgência da solidariedade. Hoje é evidente que necessitamos uns dos outros para cuidar da vida, do público, do comunitário.
Situamo-nos ante evidência inegável das brechas sociais que minam a possibilidade de viver com dignidade. A crise alimentar, a fome, a falta de oportunidades de trabalho, a escassez de recursos sanitários, o déficit de oferta educativa, que não chega a todos.
A condição da migratoriedade de nosso mundo e o novo rosto da sociedade que se configura. De alguma maneira todos nós vamos reconhecendo estrangeiros, inclusive em nossa própria terra.
Algo novo surge do encontro entre culturas distintas, por menos aparece o desafio de nos reconhecermos irmãos e de frear o ruído ensurdecedor dos muros que se levantam em zona de fronteira e de parar racismos, xenofobias e exclusões.
A corrupção que se expande sem trégua por todo o território, os cartéis de todo tipo, nos quais se desperdiça a favor do bem particular, o que teria que ser pública, propriedade coletiva. Um modo de fazer política que tende já quase naturalmente a polarizarmos, a enfrentarmos, a fraturar nossa identidade para enfraquecer a democracia.
A violência generalizada, feminicídios, assassinatos de líderes sociais, disputas pelo território em torno ao microtráfico de drogas, à mineração e o extrativismo... enfim, nosso povo não para de sangrar. Os enfrentamentos não cessam, os inimigos da vida escondem-se em redes de poder que os protegem.
E agora, já há algum tempo, estamos encurralados por um vírus que mudou o ritmo de nossas agendas, os indicadores econômicos, as prioridades dos governos. Deparamo-nos com uma crise que nos desborda, mas fundamentalmente que nos apressa ao compromisso e que veio nos recordar para que existimos.
Esta crise tem grandes repercussões e consequências, impossível de prever. Situa-nos na lógica do insuspeito, do imprevisível. Ainda que tão acostumados como estamos aos planejamentos quiséssemos poder calcular, medir e vislumbrar com mais certeza o futuro, o evidente é o não saber, a incerteza, a mudança.
“Compreendemos que todos estamos envolvidos e implicados: a desigualdade, a mudança climática e a má gestão ameaçam a nós todos”, diz o Papa Francisco. Devem ser mudados os paradigmas e sistemas que colocam em risco o mundo inteiro.
E isto exigirá de nós cinco modos de nos situarmos diante da realidade:
1. Reconhecer que a realidade é complexa;
2. Localizarmo-nos no contexto desde um olhar esperançoso de quem crê;
3. Ler os fatos desde uma atitude crítica e um empenho construtivo.
4. Discernir a passagem de Deus pela história e escutar sua vontade;
5. Virarmos às fronteiras.
No prólogo do livro Deus na Pandemia, o Papa Francisco afirma: “Esta dramática situação pôs em evidência a vulnerabilidade, caducidade e contingência que nos caracterizam como humanos, questionando muitas certezas que cimentavam nossos planos e projetos na vida cotidiana. A pandemia nos coloca perguntas de fundo, a respeito da felicidade de nossa vida e ao amparo de nossa fé cristã”.
“A crise é um sinal de alarme, que nos faz considerar com atenção onde se encontram as raízes mais profundas que nos sustentam em meio à tormenta”, continua o Papa.
“É um tempo de prova e de decisão para reorientar de novo nossa vida a Deus, como apoio e nossa meta; mostrou-nos que especialmente em situações de emergência, dependemos da solidariedade dos outros; e nos convida a por nossa vida ao serviço dos demais de um modo novo, como cristãos, não devemos nos deixar paralisar pela pandemia”.
Onde nós religiosos estivemos durante esta crise? Essa é a pergunta que ressoa e fruto da missão que presto à Vida Religiosa. Proponho dez cenários que vi dos religiosos deste continente.
A comodidade da sala de televisão, ali vendo as notícias e as repetindo como “papagaios”, no refeitório. Às vezes com tão pouco sentido crítico, influenciados por correntes políticas ou ávidos de tudo o que as redes sociais dizem, sem filtros, sem controle, sem discernimento. E desse lugar, o silêncio passivo, a paralisia burguesa ou o juízo que não constrói, nem mobiliza para a transformação. Por todos os que desde ali nos situamos, necessitamos pedir perdão.
Aos cenários que enumero na sequência, quero dar nomes verdadeiros de religiosos.
E como ele, muitos religiosos e leigos que, em Chile, Peru e distintos cantos deste continente, fizeram seu o clamor de tantos por alimentos. Todos os que decidiram que, diante dos templos fechados, surgisse em cada casa uma Igreja doméstica, na qual se compartilha o pão e a palavra. Todos os que se empenharam em buscar doações, acompanhar as mulheres, comprar os alimentos, para fazer que na panela comunitária se cozinhe a esperança e a sopa seja suficiente para todos.
Em Beirute e em outros lugares, dispondo seus grandes claustros para a acolhida daqueles que sofrem. Os e as que dispuseram casas de retiro e escolas para abrir um lugar aos enfermos pela covid-19 ou que necessitavam de dias de isolamento, ou simplesmente abrigo porque não param de caminhar e não encontram teto. Abrindo as portas da casa e do coração, ali estivemos.
E também tantas e tantos religiosos, enfermeiros, médicos, capelães, para os quais não houve trégua em seu serviço. Tantos que, por carisma estão aí, na zona da crise, sem se atrincheirar, nem se blindar por medo do contágio. Todos os que se situam diariamente diante do desafio de acompanhar os doentes e as famílias que sofrem pela ausência de seus seres queridos.
E todos os missionários e missionárias na Amazônia. Eles que tiveram que abraçar a impotência, cavoucar a terra em busca de respiradores, remédios, leitos, alimentos, recursos. Eles que não param em seu afã criativo de buscar como responder em meio ao conflito, experimentando a carência, perseguidos por aqueles que tem interesses particulares sobre a terra e que querem extinguir os bens da natureza e as culturas diversas. Ali estivemos, com eles, neles, gritando, parindo respostas em um contexto no qual tudo é pergunta.
Impulsionando o encontro, a intercongregacionalidade, nos fortalecendo para o anúncio e a denúncia, buscando novos modos de nos situarmos frente à realidade. Defendendo as vítimas. Lá estivemos na Repam, na Reman, na Caritas, na rede Tamar, nas pastorais sociais e paróquias... Buscando o comum, convencidos de que a força está no comunitário. Mais além de nossas próprias parcelas e visões... nesse lugar no qual se expande o olhar e surgem novas possibilidades para o compromisso.
Na incerteza, nosso empenho com a formação contínua não minguou. Seguimos propiciando espaços para o encontro. Todas as Conferências de Religiosos e muitas das congregações deram passos à virtualidade. Não se paralisaram pela mudança de planos. Estivemos no lugar em que se busca fazer leitura de fé da realidade, aprender métodos e modos de responder aos desafios da missão, gerar capacitações que nos permitem alimentar o espírito e desenvolver habilidades e competências para enfrentar os desafios do momento histórico.
Os desafios apostólicos nos golpeiam com força. Tivemos que aprender sem indução o modo de nos situarmos apostolicamente ante esta crise. Em quase todas as nossas congregações, temos visto uma redução na renda, o que significa que devemos nos reorganizar, discernir e nos organizar de uma nova maneira. Buscar outros recursos e metodologias, expandir os grupos de apoio. E muitos de nós estivemos ali, no lugar de dirigir uma obra, como professores ou catequistas nos reinventando, nos questionando sobre as formas de continuar acompanhando o grupo de mulheres, a pastoral paroquial, os migrantes da fronteira. Lá estivemos, sem muitas coisas claras, mas persistentemente presentes, decididamente entregues.
Também nos colocamos no lugar da oração encarnada, ali onde a oração não para. Nesse espaço em que nos perguntamos constantemente o que Deus quer de nós. A pandemia convocou-nos à comunidade... e a partir daí, fomos convidados a aprender outras formas de rezar, de nos relacionarmos com Deus, de encontrar a sua presença nas nossas vidas, de celebrar a fé... A passagem de Deus, a escuta da sua Palavra está gerando conversão em nós. Não somos os mesmos. Se pensarmos bem, reconheceremos que não somos os mesmos.
E com ela, tantos e tantos. A última notícia que tive ontem foi a morte de Adela, uma freira argentina... Todos os dias esta pandemia também nos visita. Esse é também o nosso lugar, o de todos aqueles que têm a vida ceifada por um sistema de saúde precário, ou de todos aqueles que dão a vida livremente e em solidariedade com o seu povo.
O Papa insiste: “Trata-se de contagiar-nos de esperança... Pensar no depois significará que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que almejamos, centrado no protagonismo dos povos, em toda a sua diversidade e acesso universal aos três T's: terra, teto e trabalho”... e, claro, transcendência. Não podemos desmaiar ao perceber que, como Vida Religiosa, somos construtores indispensáveis dessa mudança que não pode ser adiada. O Papa nos propõe um plano para ressuscitar… É urgente discernir e promover junto com os outros as dinâmicas que podem testemunhar e canalizar a vida nova que o Senhor quer gerar neste momento da história.