19 Abril 2021
Hoje, alimenta-se o mito da ciência divina e perfeita. Transformamos a ciência em um deus, totalmente ético, que deve nos assegurar que sempre sairá a casa zero, não importa quantas sejam as possibilidades que isso ocorra.
O comentário é de Massimo Coppola, diretor de cinema e escritor italiano, em artigo publicado por Domani, 18-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A caótica gestão dos riscos ligados às vacinações anti-Covid por parte dos institutos de controle de drogas, o FDA nos Estados Unidos, a EMA na Europa, a Aifa na Itália, é uma nova evidência do domínio do irracional, do subjetivo, do “persuasivo”, que, depois de aniquilar a política, agora se difunde também nas instituições científicas.
Mudou a própria maneira como a ciência é percebida, e, consequentemente, mudou aquilo que queremos da ciência: não mais erros e refutações nos limites de uma versão dos fatos o máximo possível compartilhada, citando o célebre filósofo da ciência Karl Popper, mas certeza e absolutez imediatas.
Queremos que a ciência se adeque à nossa subjetividade dominante e às nossas demandas infantis. Afinal, esta é a era da subjetividade. Quem morre é o texto – ou o dado. Permanecem com vida apenas o autor e o seu nada-a-dizer e tudo-a-temer.
Portanto, tornamo-nos absolutistas no campo mais relativo que existe, o campo empírico das ciências, baseado na coleta de evidências. É peculiar o fato de que, nunca antes na história, tínhamos alcançado a atual e incrível capacidade de coletar dados e reagir às adversidades que a cada dia a natureza, desde as menores às globais como a pandemia em curso, nos oferece, desinteressadamente.
E, precisamente agora, vem o refluxo; acabado o “século da técnica”, dos temores semeados aqui e acolá de uma desumanização do agrupamento civil, da transformação do indivíduo em número, agora é a ciência que se torna humana, demasiadamente humana.
O anseio pelo absoluto nos define como seres desejantes e humanos. Mas abandonar a luta em defesa daquilo que não é humano (números, dados, fatos), na realidade, nos condena ao exílio de nós mesmos como comunidade ou coletividade.
Em algumas das páginas mais belas e eficazes da sua “Crítica da razão pura”, na seção intitulada “Da opinião, da ciência e da fé”, Kant fala sobre o que está acontecendo conosco hoje. Palavras que deveriam ser escritas em letras garrafais nos céus acima das instituições acinzentadas e aterrorizadas que estão retardando a campanha de vacinação e causando milhares de mortes evitáveis.
Assim diz Kant:
“A persuasão é uma simples aparência, porque o fundamento do juízo, que reside unicamente no sujeito, é considerado como objeto. Portanto, tal juízo possui apenas uma validade privada, e a crença não pode ser comunicada. Mas a verdade repousa na concordância com o objeto, com respeito ao qual, consequentemente, os juízos de todos os intelectos devem estar de acordo. A pedra de toque da crença, portanto, é a possibilidade de comunicá-la e de encontrar a crença válida para a razão de cada homem; porque, então, há pelo menos a presunção de que o princípio do concordância de todos os juízos repousará sobre o fundamento comum, o objeto com o qual, então, todos eles concordarão”.
Simples, não? Existe um cientista no mundo capaz de dizer que esse não deveria ser o único princípio-guia? Aquilo de que agora estamos persuadidos (de que as vacinas são perigosas) não corresponde ao objeto (os dados incrivelmente claros sobre o baixíssimo risco de efeitos nocivos, sensivelmente inferior ao de morrer de Covid).
É útil citar alguns dados simples, que encontrei no The Post e que aqui resumo: para quem tem 55 anos de idade ou mais, há quatro chances em um milhão de ter reações adversas graves (o que não significa morrer), atribuíveis à vacina da AstraZeneca, e 800 em um milhão morrem de Covid-19. Em suma, o risco é 200 vezes maior, ou 20.000% maior.
Além disso, a chance de uma morte por incidentes de vários tipos é de 180 casos em um milhão para quem tem 55 anos de idade ou mais. Esses são os únicos fatos comunicáveis, em sentido kantiano. A persuasão reside no medo injustificado, evidente ao lermos os dados mencionados acima.
O que Kant diria?
“Eu posso guardar uma persuasão para mim, mas ela não pode nem deve querer se tornar válida fora de mim. A opinião é uma crença insuficiente tanto subjetiva quanto objetivamente. Se ela for suficiente apenas subjetivamente, ela se chama fé. Enfim, a crença suficiente tanto subjetiva quanto objetivamente se chama ciência. A suficiência subjetiva se chama convicção (para mim mesmo); a objetiva, certeza (para todos). Não vou me deter para explicar conceitos tão fáceis”.
Faltavam 20 anos para o fim do século XVIII, e Kant considerava que não devia parar e explicar conceitos tão fáceis! É como se, por causa de um acidente aéreo, por medo de outros raríssimos eventos adversos do mesmo tipo e por causa do pânico que tal pensamento irracional geraria, as autoridades internacionais parassem todo o tráfego aéreo, o meio de transporte mais seguro em absoluto, deixando as rodovias abertas, apesar de os carros ceifarem um número extremamente mais elevado de vítimas, como ocorre todos os dias.
É natural que o medo de voar seja mais generalizado do que o de viajar de carro; de carro, estamos perto do chão, no controle, usamo-lo todos os dias. Mas o fato de ser natural sentir medos irracionais não pode se tornar matéria de discussão que vá além da persuasão, falaciosa e individual. Mas isso já aconteceu, infelizmente, com a sequência de inimigos inventados pelo populismo, causa daquilo que estou dizendo aqui.
Da mesma forma, pode ser compreensível que receber uma injeção seja considerado mais perigoso do que não fazer nada. Mas é exatamente isso que aqueles que nos governam devem fazer, ajudar-nos a desmascarar os enganos da nossa mente imperfeita, e isso só pode ser feito compartilhando princípios, um acima de todos, o emanado acima por Kant.
E se todos desenvolvêssemos uma fobia de água? Espero que ninguém se ponha a reexaminar a necessidade de ingerir uma discreta quantidade todos os dias.
Em suma, nas simples palavras do filósofo de Königsberg: “É um absurdo opinar em matemática; deve-se saber ou se abster de qualquer juízo”.
Mas há mais uma coisa, que lança uma nova luz sobre o que colocamos em jogo quando pretendemos estar protegidos do medo infundado e subjetivo, colocando em risco, concretamente, a vida dos outros:
“A pedra de toque comum para ver se algo é uma simples persuasão é a aposta. Muitas vezes, alguém enuncia as suas proposições com uma resolução tão segura e irredutível a ponto de parecer que depôs inteiramente todos os temas de erro. Uma aposta o faz ofuscar. Às vezes, vê-se que ele tem tamanha persuasão a ponto de poder ser apreciada por um ducado, mas não por dez. De fato, ele arrisca o primeiro, mas, diante de dez, começa a perceber aquilo que antes não percebia, ou seja, que é bem possível que esteja errado. Se imaginamos que devemos apostar a felicidade da vida inteira, o nosso juízo triunfal vai embora, ficamos tímidos e começamos a descobrir que a nossa fé não vai tão longe”.
E aqui Kant, como muitas vezes lhe acontecia, peca por otimismo. Nós queremos que a ciência seja um deus e, portanto, não apostamos apenas dez ou mesmo cem ducados, apostamos a nossa vida inteira em uma falácia. E o pior é que não somos nós que os apostamos, mas sim aqueles aos quais delegamos a tarefa de não apostar e, em vez disso, confiar nas evidências empíricas (e, como tais, comunicáveis, como Kant diria ainda).
A transformação da ciência em religião tem um sinal novo; não mais o cientificismo e o positivismo extremos, mas a sua transfiguração em um transcendente imaginário e irracional, que emerge do inconsciente coletivo e que, como tal, se torna um instrumento de pressão sobre a elite ou – o que é a mesma coisa – que é instigado pelas próprias elites. Daí a pretensão da infalibilidade da ciência, a pretensão da margem de erro zero; um cientificismo herético ainda mais perigoso do que o ortodoxo, um novo nível de marginalização da razão e do empirismo, que, hoje em dia, continuam sendo os únicos instrumentos que nos permitiram nos entender, quando isso aconteceu.
Dois mais dois são quatro, todos sabem disso. Mas, assim que o mesmo princípio aplicado a essa simples equação se torna complexo e diz respeito às nossas vidas, não damos a mínima para ele. E se desse cinco, só para mim, assim como para aqueles outros dez em um milhão?
Todos nos sentimos como cisnes negros agora. Kant, portanto, dizia que apenas aquilo que é objetivo é verdadeiramente comunicável; hoje, escravos do feitiço da transparência, queremos saber tudo, e, se não nos dizem, gritamos o complô.
Mas a transparência se fundamenta em – e multiplica a falta de – confiança e capacidade de delegação. Querer saber sempre, sem ter os instrumentos para julgar aquilo que nos é dito, é perigoso. Porque, no fim, o conhecimento parcial se torna absoluto, se liga aos nossos medos e, de opinião ou ansiedade solitária injustificada, mas natural, torna-se ratio do discurso.
E assim tem sido desde a primeira gestão caótica das poucas dezenas de eventos adversos seguidos (talvez! Ainda não se provou) à administração de dezenas de milhões de doses de vacinas. Os cientistas querem nos dizer tudo, e, mesmo que nenhum deles ache que a vacina é mais arriscada do que a ausência da vacina, tudo é posto em stand-by com base no medo coletivo filho da transparência, e não da evidência.
Assim, alimenta-se o mito da ciência divina e perfeita. Transformamos a ciência em um deus, totalmente ético, que deve nos assegurar que sempre sairá a casa zero, não importa quantas sejam as possibilidades que isso ocorra.
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A irracionalidade de transformar a ciência em uma religião - Instituto Humanitas Unisinos - IHU