12 Março 2021
Um ano procurando um culpado. Durante estes 365 dias da pandemia, os dedos da humanidade apontaram para todos os tipos de causas, sem encontrar respostas, apenas estigmas e conspirações. O evidente é que as explicações para este colapso parcial dos sistemas socioeconômicos – que durante os primeiros meses de epidemia adquiriu traços distópicos – não estão ligadas à aleatoriedade da natureza, nem aos interesses rebuscados de uma nação asiática para alterar a ordem geopolítica mundial, mas se alista diretamente à forma como o ser humano se relaciona com a Terra. A origem do novo coronavírus não é um pangolim, nem um laboratório, mas uma crise ecológica provocada pelas sociedades neoliberais e sua cultura do crescimento material.
A reportagem é de Alejandro Tena, publicada por Público, 10-03-2021. A tradução é do Cepat.
“Não há dúvidas sobre isso”, concorda Fernando Valladares, doutor em Ciências Biológicas e pesquisador do Conselho Superior de Investigações Científicas – CSIC. Embora não se saiba a origem exata da covid-19, todas as certezas científicas do momento apontam para a perda de biodiversidade gerada por atividades econômicas como o desmatamento, o comércio e a criação intensiva de espécies animais.
A própria ONU alertou sobre como a guerra contra a Terra e a deterioração dos ecossistemas estão levando a humanidade a uma nova era marcada pelo surgimento de epidemias. Tanto que o último relatório da IPBES (Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços de Ecossistemas) destaca que na natureza existem 1,7 milhão de vírus desconhecidos que podem saltar para a espécie humana, a qualquer momento, em um processo de zoonose.
Para Valladares, a destruição da natureza é essencial para entender a origem desta conjuntura epidêmica em que as civilizações modernas se viram imersas. “Estamos defecando sobre os ecossistemas, tornando-os praticamente disfuncionais e isso tem algumas consequências”, alerta o especialista. Onde existe uma mata, onde existem populações de mamíferos e aves, existe biodiversidade, que nada mais é do que um escudo protetor que coloca barreiras entre o ser humano e os patógenos que se concentram nos reservatórios naturais.
Existem três níveis de variedade natural que contribuem para controlar a proliferação de patógenos. Por um lado, a diversidade de formas de vida: predadores e presas, carnívoros e herbívoros, de sangue frio e de sangue quente. Cada uma destas funções contribui para um equilíbrio natural que impede que haja superpopulação de espécies que abriguem maior número de reservas virais.
Por outro lado, nos ecossistemas existe uma biodiversidade que atinge animais dentro de um mesmo grupo, ou seja, diferentes tipos de roedores, de aves, de mamíferos. “Isto é um mecanismo de diluição que ajuda a diminuir as cargas virais”, pondera o pesquisador.
Por último, existe uma terceira escala de biodiversidade que atinge um nível genético, de tal forma que um vírus não afeta da mesma forma todos os animais de uma mesma espécie concreta. “Nós, humanos, temos mecanismo e o percebemos com o coronavírus, com a doença se manifestando de formas muito diferentes em cada um dos pacientes”.
A forma como o ser humano interage com animais e o modo como elimina hectares de matas e expande suas cidades sobre a natureza contribuem para que todos estes mecanismos sejam alterados, fazendo com que os vírus e bactérias que permanecem ocultos saltem para o ser humano.
“A Terra é um sistema muito complexo de relações, onde cada espécie tem sua função. De alguma forma, há décadas invadimos os ecossistemas, alterando habitats e colocando espécies selvagens perto de nós. Isto nada mais faz do que aumentar os riscos de que haja zoonose”, expõe Gema Rodríguez, responsável por Espécies Ameaçadas no Fundo Mundial para a Natureza (WWF).
Na perda de biodiversidade e o aumento de riscos de zoonoses intervêm elementos que se retroalimentam em um círculo vicioso. Por um lado, a mudança climática provocada pela atividade econômica do ser humano, baseada na queima intensiva de combustíveis fósseis e na mudança de usos da terra. O aumento de temperaturas do planeta é crucial para entender a propagação da Covid, conforme aponta uma recente pesquisa da Science of the Total Environment, que detalha como as mudanças na temperatura acabaram alterando os ecossistemas de tal modo que as populações de morcegos – animal que serve de reservatório de diversos tipos de coronavírus – de Mianmar e Laos se deslocam para Yunnan, China.
A economia fóssil provocou uma grande crise climática que é determinante para entender como os vetores de contágio de vírus de origem animal se aproximam cada vez mais do ser humano. A Covid não é um caso isolado. O zika, a malária e a dengue também guardam relação com a forma como as espécies de mosquitos se mudam para novos habitats com a progressivo aumento dos termômetros.
No caso da Espanha, o último relatório do Ministério para a Transição Ecológica e a Fundação Biodiversidade alerta sobre como as transformações no clima podem tornar a península ibérica um lugar perfeito para que se assentem mosquitos que transmitem o vírus do Nilo ou os carrapatos que propagam a Febre Hemorrágica da Crimeia-Congo (FHCC).
“Esta pandemia é um sintoma a mais de que o ser humano não está em paz com o planeta Terra. Do ponto de vista semântico, poderíamos dizer que a relação com o Planeta é violenta”, opina Unai Pascual, economista do Centro Basco para a Mudança Climática (BC3) e um dos autores do último relatório da IPBES sobre biodiversidade e pandemias.
O especialista faz referência a outros impulsionadores diretos de processos de zoonoses, que, por sua vez, aceleram ou contribuem para a mudança climática. “As mudanças no uso da terra são determinantes”, sustenta. Neste ponto, ressalta que o desmatamento tem “algumas implicações notáveis, já que o corte intensivo de árvores é uma forma direta de destruição da biodiversidade, além de ser uma das principais causas do surgimento de doenças infecciosas de origem zoonótica”, como o SARS e o ebola, cuja propagação está condicionada ao deslocamento de espécies de animais, após a devastação de matas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), que estima que 70% dos surtos têm a ver com essa perda de espaços verdes.
O desmatamento – que acarreta uma carga de emissões de CO2 e destrói sumidouros de carbono que ajudam a combater a mudança climática – está diretamente relacionado ao modelo agropecuário industrializado, ao passo que onde hoje são eliminadas matas, amanhã serão cultivadas monoculturas de soja ou palma destinadas à alimentação do gado nas grandes granjas.
Tanto é que, segundo o Instituto Real de Assuntos Internacionais, 76% do corte intensivo de árvores tem a ver com tais cultivos. O peso que a pecuária industrial adquiriu na economia neoliberal é, segundo Valladares, “uma bomba-relógio” frente à irrupção de novas epidemias. E é que, nas últimas décadas, as grandes granjas – além de gerar uma importante massa de gases do efeito estufa – foram reservatórios de patógenos que acabaram saltando para o ser humano. A gripe aviária ou a gripe suína são os dois exemplos mais recentes.
Não só a pecuária intensiva é um fator de risco. O coronavírus também colocou no foco midiático o impacto que os mercados úmidos e a criação de espécies invasoras podem acarretar na saúde. O mercado de Wuhan, epicentro da pandemia da covid-19, foi determinante para entender como o ser humano se expõe ao entrar em contato com espécies retiradas de seus habitats.
Não em vão, esta epidemia também revelou os problemas de outras práticas perigosas que são desenvolvidas na Europa, como a criação intensiva de visons-americanos, uma espécie invasora que foi a origem de diversos surtos no velho continente, durante 2020. Gema Rodríguez, cuja organização reivindica o fechamento das fábricas peles, argumenta que “a criação de espécies selvagens equivale a criar vetores de doenças”.
A criação de espécies silvestres é muito comum na Espanha, onde existem granjas de javalis e de lebres destinadas à caça, cuja concentração em espaços reduzidos fragiliza seu sistema imunológico e favorece a propagação de patógenos e doenças como a tuberculose.
A pecuária industrial, o desmatamento, a criação de espécies selvagens e a própria mudança climática são impulsionadores diretos do surgimento de novas epidemias como a do coronavírus, práticas concretas e visíveis que, segundo Valladares, levam a humanidade a uma era onde as pandemias poderão ser cada vez mais frequentes.
“Se continuarmos assim, é objetivo dizer que teremos mais processos de zoonoses. De fato, é possível que ocorram múltiplas epidemias ao mesmo tempo. É uma questão de probabilidade e estatística: quanto mais biodiversidade perdermos, menos capacidade os ecossistemas terão para nos proteger”, expõe o biólogo.
Para o economista do BC3, é importante entender que os impulsionadores diretos da pandemia se alimentam de impulsionadores indiretos relacionados “com a governança, a economia e as normas que regulamentam o comércio em nível local, regional e global”. Em outras palavras, o corte intensivo de árvores e o financiamento da agricultura e o gado não são práticas isoladas, mas respondem a mecanismos econômicos do sistema neoliberal de crescimento expansivo e a uma cosmovisão sociocultural baseada no consumo material.
“O fato de que existem algumas normas que permitem estas atividades, não significa que sejam boas. Isso é o que devemos começar a falar, metendo a mão em todo o metabolismo econômico”, argumenta Pascual.
O sistema de crescimento econômico está se deparando com os limites físicos do planeta, do qual cada vez restam menos recursos para extrair. A natureza, de uma forma quase mitológica, envia seus sinais de alerta em forma de pandemia, em forma de colapso. É que a tirania do PIB, a cultura de medir a prosperidade de um Estado em função de sua riqueza material, está começando a ter resultados paradoxalmente antieconômicos.
“Precisamos diminuir o consumo, reorientar a econômica para os cuidados, desacelerar. Antes de pisar no freio, temos que distribuir e direcionar os recursos produtivos das economias para uma forma sustentável. Se não mudarmos os mecanismos de governança em todos os níveis, continuaremos perdendo biodiversidade, acelerando a mudança climática e sofrendo pandemias”, com um grande custo, não só humano, mas na economia dos países. “A única forma de prevenir novos vírus é desacelerar. Não é uma opinião, é um fato baseado em toneladas de artigos científicos que nos dizem que é mais custoso reagir diante de uma pandemia do que prevenir”, argumenta Pascual.
Para Valladares, os estragos causados pela Covid deveriam ser o suficiente para que a humanidade “aprenda” uma lição valiosa sobre a importância da biodiversidade. “O enfoque, até agora, foi muito paternalista e marcado por atuações simbólicas. Buscamos salvar o lince, o lobo, o urso panda, mas não fomos à raiz do problema, que é avançar para um sistema que garanta que os ecossistemas possam trazer segurança”, adverte Valladares.
No entanto, um ano após a deflagração da Covid, com a vacina cada vez mais perto, os dados não levam a enxergar que as coisas possam mudar. De fato, não se observa um retrocesso em atividades econômicas vinculadas ao desmatamento. Boa prova disso é que, conforme aponta Pascual, enquanto o preço do petróleo oscilou, durante 2020, o das commodities agrícolas como a soja e a palma teve um crescimento linear, durante todo o ano.
Quando a covid chegou, há um ano, as bases do sistema econômico oscilaram. As grandes cidades se esvaziaram, os hospitais entraram em colapso e as economias nacionais desabaram. De certo modo, a pandemia é um espelho que devolve o reflexo destrutivo da atividade humana. Agora, a luz que anuncia o fim do túnel parece tão próxima como uma picada de agulha, mas a pergunta, após este pesadelo, é se a nova normalidade trará uma vacina para os ecossistemas.
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E a guerra contra a Terra desembocou em uma pandemia global - Instituto Humanitas Unisinos - IHU