16 Março 2021
Desigualdades sociais e desastre ecológico, que representam duas questões cruciais do nosso tempo, não podem ser interpretados como um destino inevitável; são o produto de escolhas precisas feitas pelo ser humano, que só podem ser revertidas por escolhas igualmente fortes de sinal oposto.
A opinião é de Giannino Piana, teólogo italiano, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas.
O artigo foi publicado por Rocca, n. 6, 15-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A difícil retomada da economia, após a saída da pandemia do coronavírus, corre o risco de ocorrer sob a bandeira de uma simples maximização da produtividade e do lucro, sem nenhuma atenção às ceonsequências sociais e ambientais. A exigência de superar a situação de grave desconforto criada pode dar origem à tentação de recuperar o tempo perdido apostando tudo na quantidade de bens produzidos e colocando entre parênteses toda preocupação com a justiça distributiva e com a qualidade de vida.
É possível dizer – pelo que emerge de muitas intervenções de expoentes do mundo industrial e financeiro – que estamos diante de uma nova revanche do capitalismo, que é anunciado como o único verdadeiro caminho a ser percorrido para restituir credibilidade e eficácia à economia, com mais uma acentuação das lógicas de tal sistema, portanto.
E isso precisamente no momento em que, graças também à experiência recente da Covid, vieram à tona mais uma vez as falhas de um sistema que acentuou exorbitantemente as desigualdades sociais – o fosso entre ricos e pobres cresceu ainda mais durante a pandemia – e pôs radicalmente em crise o equilíbrio com o mundo natural.
Na raiz dessa situação que, embora apresentando nuances diferentes nas diversas áreas do mundo – alguns sinais de uma direção diferente parecem ter surgido na Europa – converge em uma substancial unidade de orientações ideológicas e operacionais, existe o “liberalismo real”, que – como bem observa Andrea Zhok, professor de filosofia da Universidade Estatal de Milão (“Critica della ragione liberale”, Ed. Meltemi, 2020) – é um “manifesto individualismo normativo e axiológico” e “uma visão das relações sociais estruturadas em torno da ideia da troca econômica”.
A partir dessa visão, que tem como origem e como motor simplesmente o mercado, decorre a imposição do capitalismo como sistema de produção.
A convicção de que existe uma esfera econômica com finalidades e leis próprias, dotada de uma autonomia absoluta, portanto com total autorregulação, sem a necessidade de qualquer intervenção externa, provoca o esgotamento da ética e da política e, consequentemente, produz uma desumanização da sociedade, constituindo também uma crescente ameaça ao ambiente.
Desigualdades sociais e desastre ecológico, que representam duas questões cruciais do nosso tempo, não podem ser, portanto, interpretados como um destino inevitável; são o produto de escolhas precisas feitas pelo ser humano, que só podem ser revertidas por escolhas igualmente fortes de sinal oposto.
Na realidade, são vários os fatores que determinaram (e determinam) esse estado de coisas: da crise do bem-estar social que não se sustenta mais até o empobrecimento cada vez maior das classes médias; do uso descontrolado e irrestrito de recursos ambientais (muitas vezes não renováveis) à poluição de bens fundamentais para a vida (ar, água e terra em particular).
Em última análise, tudo isso deve ser rastreado até os excessos liberais, que, no entanto, conseguiram levar a melhor, também graças à incapacidade da esquerda de contrapor plataformas ideais e políticas mais equitativas, ou, melhor, de ter dado sinais claros de compartilhamento dos valores da direita mercantil.
É sintomático que, por ocasião da grave crise depressiva iniciada em 2007, não foram levantadas propostas alternativas sérias que, pondo em discussão a estrutura do modelo econômico vigente, se esforçassem para sugerir novos caminhos de desenvolvimento. As intervenções implementadas um pouco por toda a parte se reduziram à busca de ajustes temporários para tentar fazer frente aos piores resultados da crise, fortalecendo de fato a capacidade do sistema.
Diante da gravidade da situação, torna-se cada vez mais insistente a demanda por justiça, que ganha forma tanto por meio do crescimento da movimentos voltados à defesa do ambiente – pensemos no sucesso alcançado nos últimos meses pelos ecologistas em vários países europeus que foram às urnas – quanto no protesto popular, que corre o risco de se tornar cada vez mais consistente por causa do crescente mal-estar social, devido acima de tudo ao crescimento do desemprego e da desocupação juvenil.
A conflitualidade social, produzida por desigualdades que atingiram níveis insuportáveis, paralisa o processo de desenvolvimento e tem recaídas negativas sobre o terreno da ordem civil. Por sua vez, a exploração ilimitada do ambiente, além de criar condições de inabitabilidade cada vez maiores – a Covid-19 é, em alguns aspectos, a confirmação dos desastres provocados por uma industrialização selvagem –, reduzindo o quociente dos recursos disponíveis, cria as condições para um grave empobrecimento das gerações futuras.
O que fazer, então? Que caminhos tomar para sair da angústia atual, sem renunciar a um crescimento, também quantitativo, mas controlado e orientado por parâmetros de verdadeira equidade social?
O critério básico para inspirar a conduta deve ser o da sustentabilidade, que deve ser entendida em sentido holístico, marcada por três dimensões: ambiental, econômica e social.
De fato, existe uma estreita correlação – como bem assinalado pela Laudato si’, do Papa Francisco – entre a questão ambiental e a questão social, a tal ponto que a abordagem a elas só pode ocorrer simultaneamente e colocando no centro das atenções – como já se destacou – o sistema econômico. É como dizer que a ecossustentabilidade e a equissustentabilidade devem ser promovidas juntas; que medidas ambientais e medidas sociais, em outras palavras, devem ser assumidas ao mesmo tempo, segundo um projeto unitário que reoriente as atividades humanas, visando, ao mesmo tempo, o equilíbrio ecológico e o bem comum.
A reviravolta exigida, portanto, implica uma conversão baseada na tomada de consciência da necessidade de superar a condição de consumidores de recursos e de mercadorias, e a busca de uma conciliação entre ambiente, saúde e trabalho, colocando em equilíbrio ou em recomposição temáticas que muitas vezes são apresentadas em termos conflitivos – desenvolvimento versus sustentabilidade, defesa do ambiente versus oportunidades de emprego, global versus local – e indo além dos dualismos para alcançar uma harmonia, que deve ser constantemente renovada, na busca de um nível mais elevado.
A exigência de limitar o consumo de bens supérfluos, às vezes até alienantes por serem fruto da simples pressão social induzida pelas mídias, encontra saída na adesão a duas escolhas: priorizar as necessidades essenciais, respeitando o critério da justa distribuição da riqueza e indo ao encontro das necessidades de todos, e restituir um protagonismo de primeiro plano a uma forma de economia “pública”, capaz de garantir os direitos de todos por estar fundada no princípio da solidariedade e não na simples busca do lucro pessoal.
Essas orientações de fundo, das quais não se pode (e não se deve) abrir mão, devem se traduzir em iniciativas de carácter operacional, que, para promover – como já foi dito – um sistema alternativo, devem estar estreitamente coordenadas entre si.
Isso implica, por um lado, uma “visão”, ou seja, a identificação de um modelo que defina o objetivo perseguido; e, por outro, a clara identificação de um caminho cujas etapas devem ser cuidadosamente especificadas para permitir um processo de desenvolvimento gradual, abrindo espaço para uma forma de mediação que garanta um verdadeiro amadurecimento das consciências, condição essencial para manter um alto nível de consenso absolutamente necessário para se chegar a um resultado compartilhado.
Preciosas indicações a esse respeito foram fornecidas recentemente pelo economista francês Thomas Piketty, em um grande volume recente intitulado “Capital e ideologia” (Ed. La Nave di Teseo), no qual ele formula a proposta do chamado “socialismo participativo”.
Partindo da consideração de que “toda sociedade humana deve justificar as suas desigualdades”, de que “é necessário encontrar as suas razões, porque, caso contrário, é todo o equilíbrio político e social que corre o risco de desmoronar” e ressaltando que a sociedade justa é a menos desigual, ele sublinha que a questão não é apenas econômica, mas também diz respeito à sociedade e às estruturas políticas e institucionais, que favoreceram a concentração da riqueza ao longo do tempo; em uma palavra, que tudo deve ser remetido ao sistema que foi escolhido.
Nesse contexto, ele não deixa de denunciar o hipercapitalismo da sociedade contemporânea, que apresenta as características de uma ideologia política onipresente, que investe sobre os diversos aspectos da condução da vida pública, sem excluir a legislação, o sistema fiscal e a própria educação, e não hesita em colocar sob processo (como inaceitável) o fundamento meritocrático e empresarial da diferença de riqueza contemporânea, afirmando que a tese meritocrática é “uma forma cômoda para os privilegiados [...] de justificar qualquer nível de desigualdade”.
Apontando para a redistribuição de renda e de riqueza como objetivo fundamental – as fortunas, observa ele, são formadas com a ajuda dos bens coletivos e, por isso, devem recair em benefício de todos – Piketty indica uma série de ações e mecanismos (até mesmo drásticos) que devem ser implementados para alcançar isso: desde a garantia de uma renda de partida para todos os jovens até à criação de condições que permitam um acesso universal e paritário à educação; da limitação dos direitos de sucessão à tributação da riqueza privada com progressão fortemente crescente até 90%; da participação dos trabalhadores na gestão das empresas à limitação do direito de voto dos acionistas, até uma maior presença pública no capital das empresas.
Por fim, Piketty não deixa de abordar a questão ecológica, destacando a importância de não avaliar as escolhas exclusivamente com base no critério monetário e colocando no outro prato da balança saúde, segurança, emprego, autonomia e poupança energética, além de reavaliar a economia local, sem se fechar obviamente na autarquia ou se aventurar em guerras comerciais.
A possibilidade de as medidas indicadas (e outras que podem ser acrescentadas no mesmo sentido) serem adotadas positivamente e terem eficácia está ligada a uma mudança de mentalidade que se traduza em uma profunda modificação dos estilos de vida.
A consciência de que as desigualdades sociais e a crise ecológica representam hoje a verdadeira emergência só nos pode levar a sair da lógica do consumismo desenfreado para tomar a estrada da sobriedade, sabendo distinguir as atividades essenciais das que não o são, as necessidades verdadeiras das necessidades supérfluas ou falsas, reduzindo, assim, atividades e necessidades, produzindo menos resíduos e evitando os desperdícios de energia e de matérias-primas.
“Quando entendemos que os limites do planeta e a responsabilidade para com as gerações futuras nos obrigam a escolher – escreve Francesco Gesualdi – é fundamental ter clareza de que as necessidades não são todas iguais; algumas são mais importantes do que outras, porque respondem a exigências vitais sob o perfil físico, psicológico e social” (“Dal lockdown alla transizione. Le basi per un nuovo sviluppo”, in Avvenire, 22-05-2020, p. 3).
Trata-se, sem dúvida, de uma reviravolta desafiadora, que pressupõe a adesão a um quadro de valores exigente – a redução das necessidades é sempre difícil quando se contraíram hábitos de longa data e a redução dá a impressão de um recuo –, mas a coragem de escolher, além de favorecer o crescimento de uma sociedade justa e de um mundo habitável também para os que virão, é amplamente recompensada pelo desenvolvimento das relações interpessoais e pela melhoria da qualidade de vida.
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Existe vida além do capitalismo. A busca de uma alternativa. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU