11 Março 2021
“Se você acha que o aborto é a única questão moral importante, você se detalha com o que não precisa e não pensa duas vezes antes de semear confusão onde é essencial erradicar a confusão”, escreve Michael Sean Winters, jornalista estadunidense, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 08-03-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Na terça-feira passada o Evangelho da segunda semana da Quaresma começava:
“Jesus falou à multidão e aos seus discípulos e lhes disse:
‘Os doutores da Lei e os fariseus
têm autoridade para interpretar a Lei de Moisés.
Por isso, vocês devem fazer e observar tudo o que eles dizem.
Mas não imitem suas ações,
pois eles falam e não praticam.
Amarram pesados fardos
e os colocam no ombro dos outros,
mas eles mesmos não estão dispostos a movê-los,
nem sequer com um dedo’” (Mt 23, 1-4).
Aparentemente, alguns de nossos bispos perderam seu lecionário naquele dia e não leram o Evangelho ou, se leram, não compreenderam como poderiam aplicar em suas vidas. Porque no mesmo dia o arcebispo Joseph Naumann e o bispo Kevin Rhoades, chefe do Comitê de Atividades Pró-Vida na Conferência dos Bispos dos EUA – USCCB, e chefe do Comitê da Doutrina, respectivamente, publicaram uma declaração afirmando: “As vacinas da Pfizer e Moderna aumentaram as preocupações porque usava linhagens celulares derivadas de aborto na testagem delas, mas não em suas produções. A vacina da Johnson & Johnson, por outro lado, foi desenvolvida, testada e produzida com linhagens celulares derivadas de abortos, aumentando as preocupações morais”. Depois de citar o julgamento explícito da Congregação para a Doutrina da Fé de que é “moralmente aceitável receber as vacinas contra a covid-19 que tenham usado linhagens celulares de fetos abortados”, eles aplicaram suas análises morais à situação que não existe e de uma forma tão enviesada que é difícil de compreender:
“No entanto, se alguém possa escolher entre vacinas igualmente seguras e eficazes contra a covid-19, a vacina com menos conexão com linhagens celulares derivadas de abortos deveriam ser escolhidas. Então, se alguém puder escolher alguma vacina, as da Pfizer e da Moderna devem ser escolhidas em relação à da Johnson & Johnson”.
Chamem-me de tolo, mas pensei que um comitê pró-vida estaria um pouco mais motivado a encorajar as pessoas a se vacinarem contra um vírus que matou mais de meio milhão de estadunidenses e tantos outros milhares em outros países. O melhor que esses dois comitês poderiam fazer é dizer que “dado o sofrimento mundial que essa pandemia está causando, nós afirmamos novamente que ser vacinados pode ser um ato de caridade que serve ao bem comum”. Não poderiam?
A declaração da conferência dos bispos seguiu as declarações da arquidiocese de Nova Orleans e algumas outras dioceses, incluindo uma de Bismarck, da Dakota do Norte, que dizia que a vacina da Johnson & Johnson estava “moralmente comprometida” e que católicos não deveriam recebê-la. A conferência e esses bispos aumentaram os escrúpulos nas mentes das pessoas. Eles colocaram pesados fardos sobre os ombros das pessoas. Essa é uma versão moral da Opção Bento, e é uma loucura.
Louco, mas não muito difícil de entender. Se você acha que o aborto é realmente a única questão moral que importa na vida pública, talvez não perceba que uma declaração sobre tomar uma vacina para ajudar a se proteger contra uma pandemia mortal é uma pequena luz sobre como encorajar as pessoas a se vacinarem. Se você recorrer ao LifeSiteNews, para ter alguma noção do que diz respeito aos fiéis, pensará que essa questão das vacinas serem moralmente comprometidas é uma questão ardente. Se você acha que o aborto é a única questão moral importante, você se detalha com o que não precisa e não pensa duas vezes antes de semear confusão onde é essencial erradicar a confusão.
Dom Rhoades seguiu sua declaração conjunta com Naumann com um vídeo no qual afirmava: “O Vaticano deixou claro que todas as vacinas da covid, reconhecidas como clinicamente seguras e eficazes, podem ser usadas em sã consciência. Não há necessidade moral de recusar uma vacina”. Isso era tudo o que precisava ser dito. Eu queria gritar “Ponto Final!”, ou “Está feito!”.
Você não pode deixar de pensar que o vídeo do bispo Rhoades parecia um vídeo de refém: ele estava sentado em uma sala escura, parecia estar sob pressão e estava lendo um roteiro. E não pude deixar de me perguntar por que o arcebispo Naumann não fez uma declaração em vídeo semelhante.
Na EWTN, Raymond Arroyo deu uma de suas apresentações mais desprezíveis até hoje. Ele entrevistou o padre Tad Pacholczyk do Centro Nacional Católico de Bioética e os dois pareciam relativamente desinteressados na principal questão moral – o que a vacina realiza? – porque eles realmente só queriam focar na ligação com o aborto.
Ninguém vai associar a frase “autoridade intelectual” a Arroyo, mas até eu fiquei surpreso ao ouvi-lo levantar a questão da subsidiariedade ao questionar se as pessoas deveriam seguir a orientação moral do Vaticano ou de seu bispo local. O mais irritante de tudo foi a repreensão de Arroyo às pessoas que expressavam felicidade por terem recebido a vacina. Ele quer que as pessoas protestem contra o fato de as empresas farmacêuticas estarem usando essas linhagens celulares, em vez de “tudo o que vejo são pessoas dançando e fazendo vídeos no TikTok levando uma injeção no braço”. Aí está. Ele não entende por que as pessoas que viveram com medo por um ano ficam felizes em receber uma vacina. Tendo lamentado as medidas de saúde pública que “limitam a liberdade pessoal” durante todo o ano, os conservadores agora lamentam o remédio que removerá a ameaça?
É difícil não concluir que houve alguma coordenação em tudo isso. Meia dúzia de dioceses não fazem declarações sobre o mesmo assunto no mesmo dia, sem que alguém acenda o fogo. Passei meus dias conversando com católicos de todas as esferas da vida, e ninguém que eu conhecia levantou qualquer dúvida sobre o status moral de tomar a vacina. Quem fez essa bola obscena e detestável rolar?
Há uma pista na declaração conjunta de Naumann e Rhoades. Eles apontam para alguns recursos, incluindo uma declaração de janeiro do escritório de Atividades Pró-Vida. A primeira nota de rodapé dessa última declaração cita o Instituto Charlotte Lozier. A reportagem sobre o comunicado de Nova Orleans na Catholic News Agency, de propriedade da EWTN, também citou uma pesquisa do Instituto Lozier, que chamam de organização “pró-vida”. Na verdade, é o braço de pesquisa de uma organização afiliada do Partido Republicano, Susan B. Anthony List.
Se você cheira um rato, não há nada de errado com seu nariz. Somente no mundo da política, não no mundo da teologia moral, todo esse negócio faz sentido. Somente no mundo conservador, a política do Partido Republicano é o aborto a única questão moral importante. A conferência dos bispos dos EUA tornou-se, como a Susan B. Anthony List, um braço dos Republicanos. E, ao espalhar confusão sobre a moralidade dessas vacinas, elas farão com que seja mais provável que mais pessoas morram. Estou tão feliz que nossa igreja e os Republicanos sejam pró-vida, não é?
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O que está por trás das declarações dos bispos estadunidenses contra a vacina da Johnson & Johnson? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU