13 Fevereiro 2021
“Os que condenam o ecumenismo, os que condenam o respeito a um cristianismo plural, os que condenam as lutas das mulheres por direitos, estes recebem atenção e cuidado. Os destruidores das diferenças recebem acolhida e apreço sub-reptício. Os que detêm o poder das alturas, os que não se preocupam com os corpos reais merecem resposta e explicações. Que ecumenismo é esse?", pergunta Ivone Gebara, filósofa, teóloga e religiosa pertencente à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, que lecionou por 17 anos no Instituto Teológico do Recife (Iter).
Segundo ela, "o triste fim de um certo Ecumenismo se anuncia. Não seria mesmo bom que este ecumenismo controlado por poderosas autoridades morresse? Não seria bom que esse ecumenismo institucional desaparecesse?".
Depois de séculos de separações religiosas as mais diversas, muitas das quais motivadas por razões políticas, o século XX assiste a um movimento de aproximação e diálogo entre elas. O diálogo se faz em primeiro lugar entre os ramos pertencentes à mesma árvore de origem e em seguida com árvores diferentes. Assim dentro da árvore cristã vários ramos começaram a se aproximar, a se olhar, a perceber suas diferenças, a apreciar-se e até a se abraçar.
Da mesma forma iniciamos uma aproximação com árvores diferentes do monoteísmo cristão aproximando-nos mais do monoteísmo judaico e muçulmano. Depois aproximamo-nos das religiões indígenas e das de corte africano consideradas antes crenças primitivas. E o processo foi crescendo para outras expressões religiosas presentes em nossas culturas na tentativa de superar preconceitos e divisões.
Entretanto, a medida que o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, ou seja, a tentativa de buscar uma aproximação e uma unidade possível entre as religiões e propor diferentes atividades comuns, fomos esquecendo que outras divisões continuavam se multiplicando entre nós.
As divisões nasciam em nós mesmas/os provocadas pela expansão de um Mundo Maior que nos englobava a todos, um mundo aparentemente aberto pelos meios de comunicação, porém cheio de fronteiras econômicas, políticas, sociais e emocionais. Mundo profundamente hierarquizado com aparência democrática. Mundo espetáculo de guerra e de aparente acesso a bens para todos os habitantes da terra, embora dominado por minorias que de fato se haviam tornado os novos deuses do planeta Terra. Nossas velhas divindades culturais identitárias, familiares e pessoais poderiam sobreviver apenas como consumidoras dos produtos que vinham de todos os lados. Podíamos apenas conservar nossas divindades ou transformá-las ajustando-as aos novos tempos contanto que permanecêssemos submissas aos novos deuses ocultos e dominadores cujo poder ‘religioso’ não era claramente manifesto, mas apenas sutilmente aparente.
Nosso ecumenismo rendia lucro à Grande Divindade sem nome, a Cabeça maior do mundo. Organizávamos convenções, assembleias, reuniões em nome do diálogo religioso e inter-religioso a nível nacional e internacional e éramos secundadas por ajudas indiretamente provenientes dos cofres da Grande Divindade. Essa, um dia achou que não apenas a união entre religiões era importante, mas também a manutenção da divisão entre elas. Dividiu-nos de novo. Classificou nossos corpos, nossas ideias, nossas tendências, nossas cores, nossas origens, nosso sexo e justificou-as com nossas tradições e até com nossos livros sagrados.
Não percebemos as divisões que incitados/as pela Divindade Maior acabamos criando em nossa própria família, em nossa casa, em nós mesmas/os. Havia cristãos ultraconservadores, conservadores, progressistas, ultra-progressistas, sem igreja, com novas comunidades etc. Da mesma forma muçulmanos e judeus cada vez mais ortodoxos ou progressistas divididos e opostos uns aos outros. Havia gente do candomblé e da umbanda de direita, de centro e de esquerda... Havia feministas e antifeministas.... Havia gays, lésbicas, transsexuais, transgêneros... Havia dúvidas crescentes interiores e exteriores quanto à nossa própria situação identitária pessoal e social... E a Babel se fez entre nós de tal forma que apenas ouvíamos a nossa própria voz, apenas dávamos razão aos que de perto nos ouviam. Já não víamos o outro, apenas constatávamos sua diferença, sua incômoda diferença aliada a suas posições políticas e a seu lugar econômico. Já não ouvíamos sua voz própria, apenas enquadrávamos seus balbucios como legais ou ilegais, como conformes à nossa lei religiosa ou inconformes e condenáveis segundo nossas ideologias. Os bons eram os parecidos comigo, os bons eram os que acreditavam no meu deus embora afirmássemos que Deus era todo poderoso, boníssimo e espírito puro...
As iniciativas ecumênicas foram muitas durante dezenas de anos assim como a riqueza dos diálogos inter-religiosos que provocamos e que nos ensinaram tanto. Cursos, leituras bíblicas, assembleias e campanhas ecumênicas da fraternidade para celebrarmos juntas a Quaresma que nos lembrava a trágica morte injusta de Jesus e sua gloriosa ressurreição. Convidamo-nos mutuamente ao diálogo e a ajudar o pobre , o órfão e a viúva relidos de formas diferentes na vida das novas opressões que tínhamos construído e estávamos vivendo. Mediamo-nos por nossas mútuas opressões, aceitações, rejeições e ações. Demonizávamos alguns e angelizávamos outros na tentativa de sobreviver sem pensar na obediência à Grande Divindade oculta que nos comandava. Chegamos ao ponto máximo em 2021. Foi quando nos demos conta das divisões que havíamos construído, muitas vezes sem perceber e outras vezes percebendo-nos como os donos da verdade sobre os outros/as que julgávamos com cetro forte de ferro.
Assim, sem perceber condenamos à morte o ecumenismo que havíamos buscado e construído. Estávamos destruindo um quadro belíssimo pintado a muitas mãos e corações. Desconectamo-nos da tradição de proximidade de uns e outras tão fortemente presente nos Evangelhos. Esquecemos a humanidade que nos unia e a rica diversidade que mantinha nossas vidas.
Alguns então assinaram o decreto de morte ao ecumenismo, à fraternidade e sororidade comuns quando se julgaram cristãos superiores aos outros, quando defenderam hierarquizações no cristianismo julgando-se ser os primeiros em proximidade histórica à Jesus. Esqueceram-se da história passada, dos desmandos religiosos e políticos e anularam as razões das separações fortalecendo posturas duvidosas sem buscar esclarecer a história passada com lucidez e cuidado.
Por isso apesar de sermos construtores/as de divisões e apesar de nossas buscas pelo bem comum há dias que a gente se sente ‘como quem partiu ou morreu’... A gente estanca de repente, estarrecidas frente a uma palavra institucional tão contrária à tradição dos Evangelhos, tão desconectada da realidade das comunidades cristãs, tão distante das causas propagadas pelo Evangelho. A gente sente a desconexão entre a vida e as pregações! E isto temos vivido com a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021. O texto base suscitou divisões, fez aparecer o verniz que nos unia, revelou sua fragmentação múltipla, mostrou o pluralismo desrespeitoso que defendíamos.
A Pastora Romi Márcia Bencke secretária nacional do CONIC (Conselho Nacional das Igrejas Cristãs) foi vítima dessas armadilhas inconsequentes lideradas por homens aparentemente bem preparados e socialmente bem posicionados. Ela foi criticada e diminuída por alguns que abraçam um cristianismo entre as muitas formas de cristianismo, porém que se julga superior e mais verdadeiro que outros.
Bispos católicos em nota pública diante da situação conflitual a esquecem e nem sequer seu nome é lembrado por essas autoridades da Igreja Católica Romana. Ao contrário, buscam explicar aos seus algozes, aos que se distanciam do hoje dos Evangelhos as razões de suas próprias atitudes eclesiásticas. Buscam justificar algumas aberturas institucionais apenas para continuar mantendo posturas que foram parte da cristandade dos séculos passados.
Os que condenam o ecumenismo, os que condenam o respeito a um cristianismo plural, os que condenam as lutas das mulheres por direitos, estes recebem atenção e cuidado. Os destruidores das diferenças recebem acolhida e apreço sub-reptício. Os que detêm o poder das alturas, os que não se preocupam com os corpos reais merecem resposta e explicações. Que ecumenismo é esse?
O triste fim de um certo Ecumenismo se anuncia. Não seria mesmo bom que este ecumenismo controlado por poderosas autoridades morresse? Não seria bom que esse ecumenismo institucional desaparecesse?
Muitas de nós mulheres cristãs, horrorizadas com essas condutas temos vontade de gritar o que o anjo da Igreja de Laodiceia gritou: ... “Não sois frios nem quentes, estamos para vomitar-vos de nossa boca” (Apocalipse 3: 15, 16). Estamos vomitando esse ecumenismo e criando algo diferente, talvez algo como uma amizade para além das instituições, uma cumplicidade nas dores e alegrias comuns...
Que tristeza ler a nota da CNBB! A Igreja Católica não é membro do CONIC? Se é porque se distancia de suas orientações, de suas posturas como se fosse uma instituição da qual não somos parte? Mais uma vez o ecumenismo institucional declara-se moribundo!
Por que as autoridades eclesiásticas insistem que sua palavra ‘católica’ seja a mais ouvida e seja considerada a mais próxima do Evangelho de Jesus? Não seria essa pretensão oculta algo do colonialismo que historicamente nos caracterizou, algo de nossa centralidade romana julgada sempre superior? Não seria essa tentação de superioridade sempre presente nos limitados esforços para um ecumenismo real? Não estariam alguns senhores fortalecendo um ecumenismo hierárquico patriarcal e misógino que não constrói uma igualdade nas relações diferentes? Não estariam menosprezando as palavras das mulheres que nos últimos decênios têm sustentado a tradição do Evangelho para além das fronteiras institucionais, para além do confessionalismo excludente, para além das divisões que os conflitos da guerra santa patriarcal querem manter a todo custo?
Institucionalmente, e talvez até mesmo dentro de si, muitos continuam a repetir a oração do fariseu no Templo: “ Ó Deus, graças vos dou porque não sou como o resto dos homens, ladrões, injustos, adúlteros e nem como essa ‘publicana’. Jejuo duas vezes por semana, pago o dízimo de todos os meus rendimentos”. Lucas 18,11.
Atrevo-me a expressar-me com certa dureza de linguagem e julgamento inevitável. Porém, nem de longe me aproximo do desprezo com o qual a nota da presidência da CNBB de 9 de fevereiro de 2021, ignorou nossa amiga e irmã Romi Bencke, desconsiderando seu trabalho e os ataques infames e maldosos que lhe foram dirigidos. Os bispos concentraram-se em formalidades e em benefícios pecuniários que são fruto de pedidos de gente bem pouco comprometida com a sorte dos mais pobres e com a justiça nas relações. Porém, é a eles que eles se explicam e é para eles que se justificam.
Perdoem-me a ousadia do julgamento, mas parece que algumas autoridades religiosas revelam estar protegendo mais a efígie de César cunhada nas moedas de ouro do que as necessidades do povo!
Algo de tudo o que escrevi no calor da ira e da paixão desses dias é o que especialmente muitas mulheres e homens das Igrejas Cristãs sentem frente à nota da presidência da CNBB em relação a Campanha da Fraternidade Ecumênica e à complexa situação das Igrejas cristãs no mundo de hoje.
Há um ecumenismo que se termina no mundo e especialmente no Brasil e outro que está em pleno vigor. O ecumenismo eclesiástico que defende seu próprio terreno, seu dinheiro, suas obras, suas doutrinas e dogmas este está em extinção. Uma outra Campanha da Fraternidade Ecumênica cujo lema “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor” está sendo vivida e orientada por grupos pequenos muitos dos quais liderados por mulheres da estirpe de Agar, de Sara, Miriam, Débora, Rute, Maria, Marielle, Romi, Sonia, Luzmarina, Valéria, Magali, Bianca, Yuri... Delas está nascendo uma outra organização de vida cristã!
O Lema da Campanha: “Cristo é a nossa paz. Do que era dividido fez uma unidade” não parece que se ajusta à nota dos bispos e ao desejo de muitos. A nota tem provocado guerra, divisões, mentiras sobretudo porque não incentiva a campanha ecumênica, mas nas entrelinhas e na conclusão final refere-se a Campanha da Fraternidade Católica, aquela na qual muitos julgam ter mais poder e pretendem dirigir os fiéis como manda a sua santa ‘Madre Igreja”.
Talvez seja mesmo a hora e a vez do fim do ecumenismo institucional! Talvez seja tempo de retomarmos de novo nossa vida, nossa liberdade
comum, nossas crenças vitais, nossas conversas de cozinha, nossas hortas de ervas medicinais...
Quem tem ouvidos para ouvir ouça, quem tem olhos para ver veja o que está acontecendo para além das fronteiras institucionais. É o Movimento plural de Jesus, qual fênix aparentemente destruída nascendo surpreendentemente de novo!
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O triste fim do Ecumenismo... - Instituto Humanitas Unisinos - IHU