08 Janeiro 2021
Tanto a monarquia papal quanto a britânica representam impérios que vêm encolhendo, de formas diferentes, nos últimos 100 anos.
O comentário é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado por Commonweal, 30-12-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Podemos romantizar ou espiritualizar o papado o quanto quisermos, mas também devemos lembrar que ele é uma monarquia. Fui-me lembrando desse fato enquanto assistia à última temporada da série “The Crown” da Netflix. Com a sua dramatização do reinado da Rainha Elizabeth II, a série inspira inúmeros comentários e críticas sobre a cultura pop. Mas também apresenta a própria monarquia britânica como um assunto para um estudo aprofundado e uma análise comparativa, e, assim, oferece uma forma de pensar sobre a monarquia papal também.
Sim, é apenas streaming de TV. Mas os tratamentos ficcionais às vezes podem nos ajudar a ver o registro “histórico” das coisas – até mesmo as verdades, as meias-verdades e os mitos que cercam o Vaticano.
O óbvio precedente recente é “The Young Pope”, a série de 2016 de Paolo Sorrentino (à qual ele deu sequência com “The New Pope”, em 2020). Embora evidentemente fictício, “The Young Pope” claramente se inspirou na transição de Bento XVI para Francisco em 2013 e como isso se desenrolou não apenas no Vaticano, mas também em toda a Igreja.
Mas “The Crown” também tem algo a dizer aos católicos sobre as épocas monárquicas, já que existem paralelos entre o Vaticano do século passado e o reinado de Elizabeth II, que começou em 1952. Tanto a monarquia papal quanto a britânica representam impérios que vêm encolhendo, de formas diferentes, nos últimos 100 anos.
O episódio da quarta temporada de “The Crown” intitulado “48:1” abre com o famoso discurso do aniversário de 21 anos da princesa Elizabeth na Cidade do Cabo. A voz da futura rainha é acompanhada por imagens dos muitos lugares diferentes que ainda constituíam o Império Britânico em 1947, com súditos em todo o mundo ouvindo extasiados – uma personificação benigna e paternalista de serviço ao império.
Naquela época, o imperialismo e as missões cristãs (incluindo o catolicismo) ainda eram um empreendimento conjunto. Em 1940, por exemplo, a concordata entre a Igreja Católica e Portugal incluía um “acordo missionário”. Em 1953, a Igreja chegou a um acordo com Bruxelas em relação ao Congo Belga, obtendo isenções fiscais na colônia em troca de permitir o envolvimento do governo belga no estabelecimento de dioceses e na nomeação de bispos. Ambos os lados concordaram que seu acordo deveria permanecer secreto. A saída do catolicismo do colonialismo não aconteceu da noite para o dia; tem sido um processo contínuo desde o Vaticano II.
O encolhimento paralelo do Império Britânico visto em “The Crown” é uma história de crises, com poucos momentos de tranquilidade, sempre se desdobrando contra um grande pano de fundo de palácios e propriedades rurais, não no Parlamento ou em salas de reunião. Isso pode lembrar aos telespectadores as intrigas no Vaticano e na Cúria Romana, que durante séculos foram geridas como um empreendimento político e financeiro marcado pela concorrência implacável entre diferentes famílias e dinastias.
Mas, em ambos os casos, podemos ver a solidão dos que estão no topo e a frustração com os limites do que podem dizer e fazer. Um monarca constitucional como a rainha da Inglaterra é “um soberano que reina, mas não governa”. O papa não é um monarca constitucional, e teoricamente seu poder é absoluto (especialmente como soberano do Estado da Cidade do Vaticano, onde não há nenhuma constituição para limitar seu poder). Mas, de fato, o poder de um pontífice é ainda mais limitado do que o de um monarca constitucional, apesar das doutrinas do Vaticano I sobre o primado papal e a infalibilidade de 150 anos atrás.
Tanto para a monarquia britânica quanto a papal, símbolos fortes e rituais estabelecidos ajudam a esconder a fraqueza e os limites do poder. No episódio sobre a coroação, na primeira temporada de “The Crown”, o valor constitucional e constitutivo do ritual fica evidenciado. O elemento ritual protege a monarca, mas também a impede de revelar muito sobre si mesma. Esse também é o caso dos papas, muitas vezes.
Mas, de certa forma, Francisco virou as coisas de cabeça para baixo; mais do que seus antecessores, ele optou por baixar o escudo que o ritual proporciona, revelando a si mesmo e a pessoa que ele realmente é. Isso injetou imprevisibilidade nas operações do Vaticano – que valoriza a previsibilidade – deixando alguns de seus cortesãos nervosos, mas permitindo que outros prosperassem.
Em “The Crown”, vemos essa imprevisibilidade em Diana, que, como “princesa do povo”, cria uma espécie de sublevação semelhante à que Francisco provocou ao denunciar o clericalismo dos seus irmãos bispos e se apresentando mais como parte do povo de Deus do que da Cúria.
No entanto, isso também apresenta perigos. Em um ambiente tão imprevisível, as elites que normalmente apoiariam a monarquia com devoção e lealdade podem estar menos inclinadas a fazer isso – e menos inclinadas a pagar pelas consequências provocadas pelo líder. Em “The Crown”, vemos isso no caso do secretário de imprensa do palácio, Michael Shea, que é solicitado a vazar informações sobre a opinião de Elizabeth sobre a primeira-ministra Margaret Thatcher, embora a eventual demissão de Shea seja retratada de uma forma completamente diferente de como ela aconteceu.
A história da Igreja está repleta de exemplos de servos da Igreja cuja lealdade ao monarca os compeliu a pagar pelas consequências de meramente obedecer a uma ordem, ou mesmo por algo que eles nunca realmente fizeram. Mas hoje vemos como Carlo Maria Viganò e outros clérigos renomados desafiam Francisco e a autoridade papal tão diretamente, acusando o papa de algo que eles falharam em fazer (como vimos no Relatório McCarrick). A lista confiável de cortesãos e elites foi desestabilizado, e não é possível contar com o apoio da instituição da monarquia, como se fazia tradicionalmente.
Ironicamente, as mídias eletrônicas (e a televisão em particular) têm sido as grandes responsáveis por esse fenômeno. Abertura, transparência, autopercepção: essas se tornaram as preocupações maiores com o advento da comunicação de massa. “A era da deferência acabou”, diz o personagem Lord Altrincham a uma Elizabeth prestes a ser entronizada, instando-a a modernizar a sua corte, senão até a própria monarquia.
Mais de 50 anos depois, vemos como o papado abraçou totalmente a “simpatia pela mídia” moderna – entrevistas, documentários, mídias sociais, além de todos os gêneros literários e acadêmicos tradicionais aos quais um papa tradicionalmente recorre.
Não se sabe ao certo se a monarquia britânica ou o papado poderiam usar a mídia para reconquistar a legitimidade popular que vem desaparecendo há tanto tempo. E, mesmo que isso fosse possível, seria aconselhável? Com a necessidade de transparência, vem também a necessidade de calibração: quanta transparência é possível antes que a própria instituição seja posta em risco?
No episódio final da terceira temporada de “The Crown”, a princesa Margaret diz a Elizabeth: “Este é o problema da monarquia. Nós cobrimos as rachaduras. E, se o que fizermos for alto, grandioso e confiante o suficiente, ninguém vai notar que tudo ao nosso redor está desmoronando. Esse é o nosso problema”. Mas esse é o objetivo de uma monarquia papal? Se sim, então pode ser uma bênção ter papas originais e muito diferentes uns dos outros. Mas também poderia ser um problema.
Em um dos primeiros episódios de “The Crown”, o secretário particular de Elizabeth, Sir Alan (Tommy) Lascelles, adverte a jovem rainha sobre o fato de exigir muita individualidade. “É quando começa a podridão”, diz-lhe ele. A personalidade individual de um papa sempre influenciou a interpretação do ministério papal. Mas isso nunca foi mais amplamente visível ao mundo do que agora.
Essa “individualização” do papado permite mais autenticidade evangélica. Mas também pode vir às custas de uma autoridade diluída como testemunho da fé da Igreja; considere-se, por exemplo, que, na encíclica Fratelli tutti, mais de 40% das citações são do próprio Papa Francisco.
Dada a composição do Colégio dos Cardeais hoje, os papas que se seguirem a Francisco provavelmente exibirão personalidades mais fortes e até mais individualizadas. Eles não se encaixarão no molde daqueles que antecederam João XXIII. A vindoura reforma da Cúria Romana envolverá mais do que a descentralização do governo da Igreja e a racionalização tecnocrática dos recursos; sem dúvida, também será influenciada, talvez significativamente, pela personalidade do homem que está no papel de monarca.
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Sua Majestade e Sua Santidade: série “The Crown” retrata uma monarquia que se assemelha ao papado. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU