O inumano é o Nada que se assenta no posto e no lugar da Humanitas: é a ruptura irreparável do mecanismo do reconhecimento dentro do gênero humano que chegou a constituir a própria cifra do tempo presente como tempo extremo do niilismo realizado.
A opinião é do cientista político italiano Marco Revelli, professor da Universidade do Piemonte Oriental “Amedeo Avogadro”, em artigo publicado em La Stampa, 20-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "a Des-humanitas, assim como a In-humanitas, tornou-se hoje, para todos os efeitos, a trama íntima da nossa realidade. O nosso modo de ser homens em um universo de não homens".
Foi suficiente que uma entidade biológica não humana – um vírus – entrasse no espaço celular do ser humano e se estabelecesse lá para que toda a superestrutura que constitui a arquitrave do nosso humanismo virasse de cabeça para baixo, impondo as regras impiedosas (e frias) da immunitas sobre as amigáveis (e calorosas) da communitas.
Foi suficiente que uma entidade biológica não humana – um vírus – entrasse no espaço celular do ser humano para que toda a superestrutura que constitui a arquitrave do nosso humanismo virasse de cabeça para baixo, impondo as regras impiedosas da immunitas sobre as amigáveis da communitas - Marco Revelli
Tweet.Foi o que ocorreu com o “valor de vínculo”, que agora se inverteu em desvalor, no momento em que a proximidade, de sinal de benevolência (de filantropia, ou seja, de amor pelo ser humano), torna-se ameaça (misantropia), e a distância entre indivíduos da mesma espécie se afirma como dever cívico.
O mesmo vale para o princípio de igualdade, carro-chefe da modernidade, subvertido no momento em que o homo aequalis das leis humanas é substituído pelo homo hyerarchicus do código genético da natureza (especialmente nas fases mais dramáticas da pandemia, quando foi necessário selecionar o acesso às terapias intensivas), e o humanum genus se rachou e se dividiu com base em classes de idade, estado de saúde, esperança de vida, ou seja, entre jovens e velhos, fortes e fracos, saudáveis e doentes.
Cristianismo, Renascimento, Iluminismo, apesar das suas diferenças, compartilhavam no fundo a mesma dupla certeza: que a humanitas entendida como philantropia, ou seja, “comunhão consciente”, era a essência do ser humano, em relação à qual o inumano se colocava como antítese externa, como uma espécie de “fora do ser humano”. E ao mesmo tempo que a humanitas era o conteúdo e o resultado de toda autêntica aculturação. Ou seja, nas palavras de Werner Jaeger, que ela era o resultado de toda Paideia bem-sucedida, entendida como educação do ser humano à sua verdadeira forma... Pois bem, essa crença se despedaçou há menos de um século.
Nós viemos depois. Agora sabemos que um homem pode ler Goethe ou Rilke à noite, pode tocar Bach ou Schubert e, depois, na manhã seguinte, ir ao seu trabalho em Auschwitz - George Steiner - Marco Revelli
Tweet.Basta a citação de um breve texto. De um grande autor. Diz ele: “Nós viemos depois. Agora sabemos que um homem pode ler Goethe ou Rilke à noite, pode tocar Bach ou Schubert e, depois, na manhã seguinte, ir ao seu trabalho em Auschwitz”. São palavras de George Steiner e evocam o verdadeiro ponto de ruptura entre o antes e o (nosso) depois: Auschwitz. O lugar onde a longa história do pensamento ocidental sofreu a sua própria dilaceração catastrófica com a irrupção em massa do desumano no humano (irrupção no pensamento, não apenas na história, onde não seria um novum). O desumano teorizado e programado racionalmente (mediante aquela mesma ratio que, na visão clássica, deveria ter fundado a philantropia).
Com Auschwitz – por isso o assimilamos ao mal absoluto – não só o desumano se afirma como protagonista exclusivo, mas também ocupa o núcleo central do humano. E se instala nele como sua autêntica essência: como monstruosa metamorfose da Humanitas - Marco Revelli
Tweet.Com Auschwitz – por isso o assimilamos ao mal absoluto – não só o desumano se afirma como protagonista exclusivo, mas também ocupa o núcleo central do humano. E se instala nele como sua autêntica essência: como monstruosa metamorfose da Humanitas (a Elie Wiesel que se perguntava: “Onde estava Deus em Auschwitz?”, Primo Levi respondia perguntando onde estava o ser humano). E, ao mesmo tempo, se apresenta não como separado, mas interno ao processo de aculturação que constitui o aspecto não formal da Humanitas.
Em Auschwitz, a barbárie prevaleceu no próprio terreno do humanismo cristão, da cultura renascentista e do racionalismo clássico, portanto, não como negação antitética e extrínseca dele, mas como torção (e variante) interna ao seu desenvolvimento - Marco Revelli
Tweet.Em Auschwitz – é Steiner quem ainda nos lembra – a barbárie prevaleceu no próprio terreno do humanismo cristão, da cultura renascentista e do racionalismo clássico, portanto, não como negação antitética e extrínseca dele, mas como torção (e variante) interna ao seu desenvolvimento.
Auschwitz ultrapassou irremediavelmente a linha que separa humano e desumano: revela o quanto e como o des-umano é, em sentido próprio e literal, “in-umano”, isto é, in-scrito no humano, parte dele, expressão da mesma raiz - Marco Revelli
Tweet.Mostrando, na forma mais feroz, aquilo que o homem ousou fazer ao Homem, como escreveu Primo Levi, Auschwitz ultrapassou irremediavelmente a linha que separa humano e desumano: revela o quanto e como o des-umano é, em sentido próprio e literal, “in-umano”, isto é, in-scrito no humano, parte dele, expressão da mesma raiz.
O inumano – foi o que afirmou Carlo Galli, com razão – não é baudelaireanamente o mal de viver (“Um oásis de horror em um deserto de tédio”). Nem a leopardiana estranheza da natureza ao humano (o nosso ser Nada para a Natureza).
O inumano é, antes, a apresentação atual da possibilidade de que o homem nada seja para o outro homem, ou seja, que o homem considere nada o outro homem - Marco Revelli
Tweet.“O inumano é, antes, a apresentação atual da possibilidade de que o homem nada seja para o outro homem, ou seja, que o homem considere nada o outro homem.” Ele constitui a refutação prática e mental do postulado segundo o qual todos os seres humanos participam da humanidade: uma queda do olhar (a incapacidade de se ver no outro). Do ouvido (a incapacidade de escutar a palavra do outro, o seu “relato”). Do pensamento (que o outro homem seja pensável como pensante, Sujeito e não só Objeto).
O inumano é o Nada que se assenta no posto e no lugar da Humanitas: é a ruptura irreparável do mecanismo do reconhecimento dentro do gênero humano que chegou a constituir a própria cifra do tempo presente como tempo extremo do niilismo realizado.
A Des-humanitas, assim como a In-humanitas, tornou-se hoje, para todos os efeitos, a trama íntima da nossa realidade. O nosso modo de ser homens em um universo de não homens - Marco Revelli
Tweet.Mas, se isso for verdade, a Des-humanitas, assim como a In-humanitas, tornou-se hoje, para todos os efeitos, a trama íntima da nossa realidade. O nosso modo de ser homens em um universo de não homens.
O que mais nos mostra o espetáculo atroz, prolongado por anos, da morte em massa dos migrantes nos nossos mares, observado primeiro com pena, depois cada vez mais com desatenção, hábito, finalmente aborrecimento e até ódio, senão a imagem dessa redução do homem a nada para o outro homem?
E o caso mesquinho do acolhimento, primeiro sofrido com os dentes cerrados, depois pouco a pouco rejeitado, negado, hostilizado, em todo o continente europeu mobilizado para confinar novamente, contrastar, reduzir e possivelmente extinguir os fluxos, mesmo que por trás dessa extinção haja – nós sabemos disto, mas nos recusamos a pensá-lo – a morte em série? O que é isso senão a reproposição de algum modo homeopática do mesmo paradigma da desumanização do Outro experimentado então na escala anormal da excepcionalidade e que agora se tornou cotidianidade, mesmo que de uma forma menos chocante, por não ser guiada por uma explícita ideologia do desumano e por uma declarada intencionalidade da destruição?