09 Outubro 2020
O padre Humberto Zúñiga Rodríguez atende aos doentes nas alas da covid-19 na fronteira mexicana. Mas, em vez de pedir orações ou bênçãos, as pessoas costumam pedir-lhe outro tipo de intervenção.
A reportagem é de David Agren, publicada por National Catholic Reporter, 08-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“A primeira coisa que dizem é: ‘Padre, eles não estão me tratando bem’. ‘Padre, eles não querem me dar esses medicamentos’”, disse Humberto em entrevista concedida desde a cozinha da sua residência paroquial, em uma tarde ensolarada de sábado.
Muitas pessoas também insistem que não têm covid-19, o que, segundo ele, leva ao pedido inevitável: “Quero sair daqui. Por favor, diga isso a eles, padre”.
Padres como Zúñiga trabalham na linha de frente da crise da covid-19 no México, onde a pandemia já custou mais de 80 mil vidas – o quarto país com mais mortes em todo o mundo – embora seu impacto tenha diminuído lentamente após atingir o pico em agosto.
Zúñiga e um colega, o padre Emiliano Quezada, servem como capelães para a ala da covid-19 da diocese de Matamoros, que cobre parte do estado de Tamaulipas e está localizado no extremo nordeste do México.
Dioceses em todo o mundo nomearam capelães para as alas covid-19 – com padres arriscando suas vidas para ministrar aos enfermos e fornecer o sacramento da absolvição. Mas Zúñiga traz uma visão especial sobre seu trabalho no hospital: ele contraiu a covid-19 em junho e se recuperou após passar 38 dias isolado.
“Acho que Deus me preparou para isso”, disse ele ao NCR em meados de setembro. “Quando o bispo me nomeou capelão da ala da covid-19, acho que a doença para mim foi uma preparação para essa realidade”.
A experiência de capelania – junto com o cuidado de uma congregação duramente atingida pela covid-19 e agora sofre com o impacto econômico – mudou sua visão pastoral e trouxe novas abordagens para ir até seu rebanho.
“Tem sido tempos difíceis”, disse Zúñiga, referindo-se à perseguição anterior à Igreja no México – que antecedeu seu nascimento. “Mas ver a igreja ter que fechar as portas para o contato presencial foi, para mim, um choque. Fui ordenado para atender as pessoas, para celebrar a missa, para falar com as pessoas, mas já faz seis meses e a situação já mudou completamente”.
Zúñiga chamou sua própria experiência da covid-19 de “preparação” para seu eventual trabalho como capelão. Mas não foi uma experiência fácil. Ele passou duas semanas acamado em casa com febre, diarreia e outros sintomas, e levou mais três semanas para se recuperar totalmente.
Mesmo acamado e doente, fica online para orar o rosário com sua congregação. Ele também aproveitou o tempo em isolamento para assumir novas atividades como pintar, cozinhar e até mesmo escrever um livro de meditações sobre o rosário.
Com apenas 31 anos, Zúñiga falou seriamente sobre sua fé e trabalho como padre – “Não finjo ser legal ou amigável”, disse ele sobre sua abordagem à capelania – ao mesmo tempo em que fazia observações sinceras sobre a pandemia e a comunidade em que é pároco, a Paróquia Nossa Senhora da Assunção.
A sua paróquia inclui principalmente operários, que trabalham por baixos salários nas muitas maquiladoras (fábricas de exportação) que operam nas zonas fronteiriças. As fábricas reabriram no início de junho, após pressão dos EUA para manter as cadeias de abastecimento continentais operando.
Os paroquianos em Matamoros, como muitos mexicanos, suspeitaram sobre a covid-19. Também surgiram conversas sobre conspirações – um velho hábito no México, onde as pessoas estão acostumadas a ter políticos e a mídia espalhando histórias assustadoras.
Muitos diriam a Zúñiga: “É uma invenção do governo. É uma mentira. É uma conspiração política”. Então eles começaram a adoecer.
Quezada viu algo semelhante na cidade de Reynosa, 90 quilômetros a oeste de Matamoros. Ele contou 10 mortes em sua congregação na paróquia de San Martin de Porres, que também inclui uma população de operários e pequenos comerciantes.
Quezada aconselhou os paroquianos com sintomas a irem para o hospital. Mas muitos responderam: “Se eu pisar em um hospital, vou morrer”.
À medida que a pandemia se instalou, as autoridades nacionais e estaduais recomendaram medidas como quarentenas, fechamento de shopping centers e cinemas, suspensão do serviço de ônibus e retirada de circulação dos carros em determinados dias. Os governos locais impuseram proibições à venda de álcool, enquanto a proibição de atividades não essenciais interrompeu a produção de cerveja – gerando um robusto mercado negro.
Mas manter a covid-19 afastada provou ser impossível. As pessoas demoraram para prestar atenção ao que estava acontecendo, disseram os padres. E muitos mexicanos saíram para o Dia das Mães – um dos maiores dias do calendário para as famílias.
“As pessoas começaram a sair no dia 10 de maio, dia das mães... tendo festas, mariachis em suas casas”, disse Quezada, “e isso desencadeou outra onda de contágio”.
Depois, no vizinho Texas, onde o governador Greg Abbott afrouxou as restrições à pandemia na primavera, desencadeou um surto no Vale do Rio Grande (do outro lado da fronteira de Reynosa e Matamoros).
Os médicos em Matamoros dizem que a população binacional cruzaria a fronteira com relativa facilidade, embora as autoridades estaduais de Tamaulipas instalassem um posto de controle de saúde para os viajantes que se dirigiam ao sul. As pessoas sem seguro de saúde ainda viajavam para o sul em busca de serviços médicos e para preencher prescrições a baixo custo. Os médicos também relataram um aumento no número de casos quando a South Padre Island (Texas) foi aberta e as pessoas foram para o norte nas férias.
O presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador também veio à cidade no final de agosto. Milhares compareceram para inaugurar um projeto de renovação urbana – embora ele lhes tenha dito para ficarem distanciados – desencadeando outro aumento nas infecções, segundo a secretária de saúde de Tamaulipas, Gloria Molina.
López Obrador minimizou amplamente a pandemia nos primeiros dias. Em seguida, ele enviou uma série de mensagens positivas – “Fomos capazes de controlar a epidemia”, disse ele em abril – mesmo com o acúmulo de mortes.
O presidente, como seu homólogo americano, não usa máscara, a menos onde é obrigatório. Ele também falou sobre a virtude moral de manter a covid-19 longe – enquanto o czar do coronavírus do país, Hugo López-Gatell, falou em março sobre a reticência do presidente em parar de realizar comícios: “A força do presidente é moral, não uma força de contágio”.
López Obrador também sacou um par de cartões de oração com imagens do Sagrado Coração de Jesus, que ele chamou de seus “guarda-costas”.
Os bispos do México promoveram a ciência e o espiritual, ao mesmo tempo em que atendiam às necessidades materiais e emocionais. A Caritas distribuiu milhares de pacotes de cuidados e estabeleceu uma linha de escuta composta por profissionais. Posteriormente, iniciou um serviço para ajudar as pessoas a encontrar empregos ou reciclagem – útil em um país onde a economia encolheu 17,3% no segundo trimestre e o governo gastou menos de 1% do PIB em assistência à pandemia.
Zúñiga viu as consequências em seu bairro, onde quarentenas, fechamentos de fábricas e doenças – junto com custos inflacionados com remédios e tanques de oxigênio – levaram muitos à ruína financeira.
“Eles perderam suas economias”, disse ele. “Muitas pessoas tiveram que fechar suas microempresas. Outras pessoas tiveram que penhorar coisas. Por quê? Para poder vencer essa doença”.
Os hospitais em Matamoros e Reynosa ainda estão recebendo pacientes com covid-19, embora os médicos digam que o número de casos locais está diminuindo.
Zúñiga iniciou seu trabalho de capelania em agosto. Ele e Quezada receberam equipamento de proteção individual e treinamento para usá-lo adequadamente e operar em ambiente hospitalar.
Os capelães rezam pelos pacientes, oferecem bênçãos e o sacramento da absolvição “da porta” sem tocar em ninguém.
Eles também atendem ao pessoal médico – a maioria dos que morreram no México durante a pandemia, e mais do que em qualquer outro país – se solicitado.
“Há muita incerteza por parte dos pacientes”, disse Quezada. “Mas eu olho para eles com olhos de fé, olhos de esperança. E meu trabalho é encorajá-los, dar-lhes alguma esperança”.
Os capelães nunca eram muito presentes em hospitais, e Zúñiga diz ter encontrado “locais em que os padres nem sempre são bem-vindos” pelos funcionários. Pacientes e suas famílias também têm reações mistas, diz ele – embora ele persista e pareça ter encontrado uma vocação.
“Obviamente, muitos capelães vão falar sobre o que é bonito: as conversas, aqueles que choram, aqueles que dizem, ‘Padre, reze por mim’”, disse ele.
“Como padre, não se procura isso, mas me deparei com outra face: a face da indiferença”, disse Zúñiga. “As pessoas têm que se abrir para a graça. Deus estará lá de uma forma ou de outra, mas se a pessoa for fechada, se a pessoa rejeitar Deus... não terão a experiência de Deus”.
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Pastor, paciente, capelão: padre mexicano vê pandemia de todos os lados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU