12 Agosto 2020
Em seu recente livro, Marcher la vie. Un art tranquille du bonheur, (Métailié), o sociólogo e antropólogo David Le Breton mostra que a arte de mudar de lugar possibilita uma reinvenção de si e desperta para o “surgimento do sagrado”. Encontro com um caminheiro inveterado.
Como esporte individual ao ar livre, a caminhada parece reencontrar, nos meses de verão, toda sua legitimidade. Em algumas semanas, os caminheiros, sacola nas costas, ocuparam em grande número as trilhas, tanto pelo litoral como nas montanhas. Caminhando, eles sentem o gosto da liberdade de movimento reencontrada durante estes dias de confinamento, e redescobrem as virtudes dessa “presença no mundo” que entretém e restaura o gosto pela vida. Um esclarecimento com o sociólogo e antropólogo David Le Breton, autor do recente livro Marcher la vie. Un art tranquille du bonheur (Métailié).
A entrevista é de Élisabeth Marshall, publicada por La Vie, 31-07-2020. A tradução é de Benno Brod.
É o seu terceiro livro sobre a caminhada. Por que essa assiduidade?
Porque não paro de caminhar pela Lorena, nos Montes Vosges, onde vivo, neste verão na Bretanha pela GR 34, mas também em todos os lugares aonde meus passos me levam. Adoro apropriar-me de uma cidade pelo corpo, caminhar à vontade, ao acaso... A caminhada anda parelha com a escritura: traz a mesma satisfação ao imaginário, uma relação intensa com o mundo, mobiliza todas as nossas emoções. Meu Éloge de la marche foi um dos primeiros livros que apareceu, nos anos 1990, sobre essa paixão, um tanto insólita, que é caminhar: era para mim como uma bela escapada, em meio ao meu trabalho de sociólogo mais regrado.
Uma dezena de anos depois, com Marcher. Éloge des chemins et de la lenteur, tive vontade de registrar o crescimento de um fenômeno tornado mundial e que abrangia todas as gerações e classes sociais, aprofundando, ao mesmo tempo, minhas próprias sensações de caminheiro. No meu último livro, meu ponto de inspiração foi a caminhada, desta vez como cura e redescoberta do gosto de viver.
Eu chamo a atenção como, através de todos os laços que se formam nas trilhas, mulheres e homens, por vezes cheios de amargura ou desânimo, vítimas de alguma doença ou prestes a se separarem, redescobrem, no fim do caminho, todo o sabor do mundo. As caminhadas que exigem longo fôlego proporcionam a possibilidade de se reconciliar com os outros e com a existência. E de descobrir que se está bem vivo!
Qual é o sentimento de presença no mundo que as caminhadas nos fazem experimentar?
A caminhada tem a faculdade de nos libertar de todas as rotinas e familiaridades. Quando nos metemos nas trilhas, deixamos nossas seguranças e partimos em direção a um mundo desconhecido. Que homem vamos ser, ou que mulher? Iguais a crianças, somos invadidos pelo espírito de aventura, acordados, e em alerta. Os reflexos não são mais os mesmos. Sem preocupação com viaturas, a gente pode se abrir à contemplação da beleza do mundo, deixar-se envolver por uma paisagem, uma tonalidade de luz, por uma floresta.
A caminhada nos confronta permanentemente com o surgimento do sagrado. Ao contrário do religioso que nos “relaciona”, nos “religa” - como indica sua etimologia - a uma comunidade ou a um ritual coletivo, o sentimento do sagrado é da ordem da experiência pessoal. Aliás, é difícil partilhar com outros essa experiência interna.
A gente caminha por nada; tem-se a eternidade diante de si, e nosso espírito percorre as campinas, libertado das rotinas de cada dia.
Arrancados do cotidiano do mundo, experimentamos como que um sentimento de elevação, que pode estar, ou não, associado a uma crença. Para muitos, será simplesmente a emoção de se sentir ligado ao cosmos, a um mundo mais vasto, que os ultrapassa. Todos os sentidos são atingidos: a vista, é claro, mas também o ouvido, com um banho de silêncio num mundo de sons: o canto das aves, o deslizar da água. Também os cheiros da floresta e da terra, do musgo, das flores. Dá vontade de apalpar as árvores, colher uma pedra, mergulhar as mãos na água fresca. Na cidade não há nada para tocar – é esse, aliás, o drama que vivem as crianças. Caminhando, reencontramos, nessa celebração de sentidos, um universo que desapareceu da vida corrente.
Como perdemos esse contato?
Os franceses caminhavam 7 km por dia nos anos 1960, e hoje somente algumas centenas de metros, em média. É por isso que eu falo de uma “humanidade sentada”, diante do volante ou do televisor. Perdemos o laço físico com o real, essa encarnação que a gente sente no exercício. Um mundo, sentido “pelo corpo”, é necessário para se ter de novo “os pés na terra”, ou para “tomar de novo pé” – nossa linguagem é rica de expressões eloquentes que convidam a voltar ao corpo.
As paisagens são vivas, escreve o senhor. A caminhada, por isso, nos faz reencontrar uma forma de fraternidade com a natureza!
Caminhando, sempre senti a vida que emana do mundo vegetal e animal, como um sentimento de aliança e de proteção. A gente se sente “Um” numa imensidão. Essa experiência um pouco animista de um mundo vivo, onde os deuses acompanham você através de todas as civilizações, da Grécia de Homero aos Ameríndios, das culturas asiáticas aos aborígenes da Oceania. De certa forma intuitiva, nós caminheiros reatamos, com essa noção do espírito dos lugares, o sentimento de estar ligados a um universo, do qual o nosso mundo, cada dia mais individualista, se separou pouco a pouco.
As sociedades ocidentais vivem três separações fundamentais: a do corpo e espírito; a do homem e natureza; a do indivíduo e mundo. Ora, a caminhada faz você reencontrar a unidade com você mesmo, a fraternidade com a natureza e a amizade com os outros: no fim da etapa percorrida, a gente reencontra os caminhantes que se saudou ao longo do percurso. Caminhar é também a maneira mais direta de iniciar as crianças na ecologia, numa conivência com o mundo em volta delas.
Para o senhor, toda caminhada de longo percurso se torna enfim uma forma de peregrinação?
Sim, porque ela nos arranca do materialismo e nos confronta com um “além” um pouco enigmático. Caminhar é largar de mão todas as imposições consumistas de rendimentos, de eficiência, de utilidade. Caminha-se por nada, tem-se a eternidade diante de si, e nosso espírito percorre os campos, libertado de suas rotinas ordinárias. A gente ergue os olhos ao céu, e nos perguntamos sobre o lugar da gente na terra, a proveniência deste mundo que herdamos. A gente entra, após algumas horas, numa dimensão espiritual.
Pode-se redescobrir também essa dimensão sagrada caminhando perto de casa, usando itinerários familiares?
Sem dúvida alguma. O filósofo naturalista e poeta americano Henry David Thoreau lembrava, em seu diário, a fazenda diante da qual passou um número incalculável de vezes e que ele não viu jamais com a mesma luz, com o mesmo olhar, com o mesmo humor. O mundo é um eterno recomeço, e ele não se esgota com a repetição. Pessoas idosas, que dão alguns passos, vivem seu passeio do dia como uma respiração necessária. Pode-se viajar caminhando na própria memória, na sua história, no humor do momento. Não há nunca banalidade, nem puro profano.
Quando deixamos nossas “ruminações” e vamos para a estrada, acontece uma alquimia e aparecem de repente as soluções que há pouco nos escapavam: o músico encontra sua nota, o poeta sua inspiração, o jornalista o início de seu artigo. Tirar os olhos do próprio país permite abrir-se ao mundo e achar a solução que no demasiado familiar nos escapava. A caminhada, fazendo-nos perder as próprias referências, abre a chance de nos reinventar a nós mesmos. Os caminhantes são artistas de ocasião, que reconquistam uma soberania sobre o tempo. Podemos perder longos minutos contemplando uma fila de formigas carregando folhas...
O espírito da caminhada será compatível com o GPS e demais marcos tecnológicos?
Não, com certeza. Isso seria contra sua filosofia! Numerosos escritores já fizeram o elogio do “caminhar à toa”, do desviar por esses caminhos secundários que permitem fazer as mais belas descobertas. A sabedoria judaica diz que nunca se deve pedir por seu caminho a alguém que o conhece. Uma enquete, realizada em Tóquio, fez a comparação entre dois grupos de caminheiros, um com mapa e outro com um GPS, pedindo que se encontrassem em certo ponto da cidade. No ponto da chegada, o grupo dos mapas tinha chegado antes e, principalmente, tinham guardado uma memória mais precisa do caminho, ao contrário dos que, olhos fixos em seu GPS, não tinham memorizado nenhum detalhe do seu percurso.
Melhor é entrar por uma floresta não tendo nada nas mãos... E na cidade, tal monumento ou tal lugar lhe dão a confirmação de que você está na direção certa: você avança, seguindo a afetividade! Isso faz lembrar uma anedota: eu estava participando de um colóquio sobre caminhada, e minha intervenção teve lugar justamente depois de uma apresentação sobre todos os novos meios tecnológicos dos caminheiros; o encontro era diante de um público sobretudo de idade madura: eles me aplaudiram calorosamente... felizes por ouvirem finalmente alguém falar das sensações verdadeiras de um caminheiro.
Pode a crise sanitária nos levar a modelos de cidades mais verdes, mais arejadas, onde a vida ao ar livre contribuirá para a coesão social, onde será bom caminhar e encontrar os outros?
O confinamento da pandemia nos fez descobrir cidades sem carros, silenciosas, menos prejudiciais do que elas costumam ser; e faz pensar em mobilidades partilhadas entre pedestres, ciclistas e automobilistas. A cidade dos anos 1960 foi organizada tendo em vista o automóvel, a se encontrar por toda parte. Quando olhamos filmes dos anos 1950, mesmo em Paris, vemos espaços por toda parte. Ora, chegamos a uma situação de saturação absoluta das zonas urbanas. Para que a cidade volte a ser um lugar de convivialidade para todos, é necessário inventar um novo código de rua. Isso supõe dar um lugar mais modesto ao carro e restaurar espaços para pessoas que andam a pé e para ciclistas. A maior parte dos deslocamentos em carro – os estudos o mostram – são feitos por pessoas que têm menos de 3 km a percorrer!
É questão de cultura. Se você for para a Suíça ou para a Alemanha, você verá mais pessoas fazendo suas caminhadas, ou pessoas levando, a pé, suas crianças para a escola. Em Estrasburgo, por exemplo, trechos de ruas foram adaptados, dando preferência para pessoas que andam a pé e de bicicleta; o futuro aponta para essas mobilidades partilhadas. As cidades canadenses, como as da Alemanha, são cidades onde a mobilidade foi organizada, ao contrário das cidades do Sul, onde os carros invadem muito do espaço comum.
Eu diria, antes, de civilidade. Civilidade é algo que se inscreve nos comportamentos, na conduta das pessoas, como também nas concepções de espaço; em outras palavras, isso passa pela maneira como se vive em comum a responsabilidade partilhada numa cidade. Isso exige um reconhecimento de si e dos outros; numa palavra, a criação de um “estar juntos”. As futuras políticas urbanas passarão por esse planejamento. No Brasil, as cidades são densas. Por exemplo, no Rio, onde as ruas não são um modelo de fácil circulação, o percurso dos que andam a pé é bem demarcado, porque uma inteligente sinalização permite de a gente se orientar. Em numerosas cidades do mundo, percursos para pedestres já estão adaptados, e isso logo se sente.
De que a caminhada nos pode curar?
De tudo! Muitos caminhantes que fazem longos percursos buscam um sentido para sua vida, seja que passem por um sofrimento pessoal ou precisem superar um dano. Muitas vezes os filhos se reaproximam numa estrada. Penso no caso de uma mulher atingida por uma dor crônica que reencontrou uma saúde maravilhosa, e penso em pessoas depressivas que reencontraram o gosto de viver, ou outros que superaram uma difícil etapa de vida em seu luto. Uma longa caminhada contém, dentro dela, um renascimento, como uma possibilidade de lançar novamente os dados e recomeçar sua existência.
Vi muitos caminheiros tomar decisões importantes no fim de uma caminhada feita: uma mudança de moradia, uma mudança de vida etc. Como se a pessoa reencontrasse seu centro de gravidade. Quem caminha dezenas de quilômetros por dia melhora de forma natural sua saúde. Isso não tem nada a ver com a fadiga nervosa diária da vida profissional... A fadiga física é sempre jubilosa, como o é a sensação de ter fome ou de ter sono. A caminhada faz você redescobrir com felicidade o elementar da condição humana!
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“Caminhar restaura o gosto de viver”. Entrevista com David Le Breton - Instituto Humanitas Unisinos - IHU