19 Junho 2020
"Parar os migrantes é nosso imperativo em nome de uma pura abstração que afirma a si mesma como essencial e rejeita todos os homens em carne e osso. Dizemos ainda agora: o fim justifica os meios. Mas são os meios que definem o fim".
O comentário é de Domenico Quirico, jornalista italiano, publicado por La Stampa, 18-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Não desanimem. O abismo negro e escancarado de último verão com migrantes nas praias, barcaças e botes, o fantasma desgastado de mais uma "emergência", não vai acontecer. Adiada a necessidade de retomar exaustivos exames de consciência, de trazer de volta personagens que ficaram fora de moda, que a nossa atualidade política virtuosamente trancou em um museu. Sim, é verdade: na beira nua das praias de Sabratha e Surman, lugares que imaginávamos irreparavelmente secundários, a milícia rastreia "candidatos à emigração", "imigrantes irregulares" (como a burocracia líbico-humanitária os define pudicamente), retomando o trabalho com toda a força.
Mapa de Sabratha e Surman, Líbia (Foto: Reprodução Twitter)
Os centros estão lotados, os barcos estão sendo preparados e, acima de tudo, se arrecada o dinheiro. Trabalha-se duro para explorar esse momentâneo pós-guerra. Eles, os migrantes, estão lá: aqueles que participam da vida sem poder, necessitados de proteção, doente, vidas instáveis que se entregam à deusa da Misericórdia, carinhosa, mas fraca com seus inúmeros braços. Derrotados, indeléveis, cansados, desgastados, mandam buscar de mil maneiras o dinheiro necessário para o embarque. De novo. Como sempre. Desenvolvimento previsível que certamente não exigia análises proféticas.
A guerra civil para os escravagistas de Trípoli, cruéis e furtivos, agora corre bem, o inimigo cirenaico, general Haftar, está em fuga do deserto. Reconquistada a parte oeste, expulsos os rivais que por algum tempo trancaram o tráfico, retomaram seus negócios. Não é por acaso que a contraofensiva não partiu em Trípoli, mas justamente dessa nova versão da costa dos escravos que vai da capital à fronteira com a Tunísia. No entanto, não veremos esses migrantes. Porque a maioria deles nunca chegará ao seu destino.
Há uma novidade no tráfico que servirá para manter as estatísticas europeias baixas. Existem gangues que cuidam dos embarques e outras que tratam de logo recuperar, em alto mar, os preciosos motores, o único investimento que reduz o lucro líquido desse crime milionário. Os barcos-sucata são abandonados à deriva e à sua sorte. Se Alá for misericordioso, eles chegarão. Os motores serão reutilizados para outras viagens e mais outras ainda. Os cadáveres. A última foto do horror líbio mostrou os corpos de crianças que parecem ter sido depositados pelo mar em um leito de seixos, outras existências que o naufrágio cravou para sempre no ainda não, felicidades que não têm tempo para viver. Preparem-se para muitas cenas desse tipo. Eles quase certamente estavam viajando em um barco do qual o motor havia sido retomado. A mais recente invenção do contrabando. A ressaca levará os cadáveres para a costa líbia do mar. Algo que vai acalmar muitas ansiedades.
Parar os migrantes é nosso imperativo em nome de uma pura abstração que afirma a si mesma como essencial e rejeita todos os homens em carne e osso. Dizemos ainda agora: o fim justifica os meios. Mas são os meios que definem o fim. Era uma suspeita que colocamos de lado porque levantava questões embaraçosas: os escravistas líbios são modernos, contemporâneos. Afinal, como os fundamentalistas.
Barbáries autóctones conferem-lhes um viés pitoresco tosco muito folclórico, mas a patente que guia sua atividade foi, infelizmente, registrada em nosso querido velho continente. E chamam isso de espírito empreendedor: líderes de gangues, passeur, contrabandistas são empreendedores com o Kalashnikov, gerentes de operários-milicianos.
Capazes de crueldade tão gratuitas e sem limites, tão loucas e tão frias. Eles se renovam sob a insígnia de alguns pontos firmes: lucro máximo, multiplicação da demanda, redução dos custos, divisão de trabalho, opção por lidar com as mercadorias perecíveis das quais ninguém jamais solicitará reembolso. A mercadoria perecível. E o que poderia ser mais perecível que seres humanos?
Estranho que a intellighentsia europeia não tire nenhuma lição dos fatos e volte a capinar seus confortáveis canteiros de flores: falando de primitivos reciclados, bandidos do deserto. Com os quais depois assina muitos acordos colocando-se no mesmo nível. Estamos na perene busca de uma fácil linha divisória entre anjos e demônios. E talvez aqui não exista.
A contabilidade moral, entre nós, é um assunto realmente fascinante. Além disso, há outro lugar: Tarhuna, ainda na Tripolitânia. Seus quilômetros de edifícios emitem um ar de prostração, esmagados no chão como se eles estivessem tentando se esconder. Somente as cúpulas das mesquitas se sobressaem como divinas distribuidoras de santidade. Lugar sinistro: marcado por duras e recentes batalhas, por valas comuns, por contêineres com cadáveres queimados. Antigo hábito dessa guerra civil, já em 2011, quando Kadafi ainda existia e resistia em Trípoli, eram usados para apagar as evidências dos massacres.
Após o domínio da famigerada "Nona Brigada" dos sombrios e criminosos quatro irmãos Kaniat, que Haftar havia alistado para ganhar números e peso, foi reconquistada pela milícia de Misurata. Outros predadores eficientes e duros, verdadeiro bastião do governo de Al Serraij, a quem confiamos a nossa política externa nessa zona, o petróleo e os imigrantes. Eles aproveitam o momento do sucesso. Eles sabem que uma grande parte da população em Trípoli não sonha outra coisa que atirar-se sobre Misurata para destruí-la e recuperar tudo o que roubaram.
As milícias vitoriosas. Um vídeo mostra as milícias vitoriosas, os milicianos nossos aliados, enquanto martirizam um migrante egípcio que pede misericórdia: primeiro chicoteadas e depois queimam seu bigode e a cabeça, e a carne solta fumaça e queima como uma folha de cobre. Pode-se quase sentir o cheiro.
Em Tarhuna, as milícias vitoriosas acertam as contas, a vingança dos massacres atribuídos aos outros, e não só, já tem seus líderes. Entre eles, agora sem nem se preocupar em se esconder, dão ordens alguns dos líderes mais famosos do califado na Síria, trazidos aqui pelos turcos. É a caçada ao egípcio, acusado de ser um mercenário do general de Bengasi.
O ódio e a vingança são desencadeados contra Al Sisi, um dos aliados mais poderosos de Haftar. Filas longas de homens com os braços levantados, um atrás do outro, são retiradas das cabanas da periferia, miserável acrópole da miséria. Eles têm roupas sujas, olhares de animais levados para o matadouro. Os mercenários, aqueles verdadeiros, fugiram para a Cirenaica, protegidos em sua retirada dos aviões russos.
Esses são outros migrantes, vindos para a Líbia para encontrar trabalho. O ministério de Trípoli promete, incomodado, que investigará eventuais abusos. Promete, meio zombando, ressarcimentos. Testemunhas dizem que "os mercenários" foram fuzilados aos gritos de "Alá é grande".
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A ‘caça ao egípcio’ e o naufrágio das crianças. Líbia, terra dos horrores - Instituto Humanitas Unisinos - IHU