02 Junho 2020
Como católicos se enervaram contra a gripe espanhola.
O artigo é de Paul Moses, escreve regularmente para a revista Commonweal e autor de The Saint and the Sultan: The Crusades, Islam and Francis of Assisi’s Mission of Peace (Doubleday, 2009) e An Unlikely Union: The Love-Hate Story of New York’s Irish and Italians (NYU Press, 2015), publicado por La Croix International, 30-05-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quando a epidemia de gripe espanhola chegava ao seu pico na cidade de Nova York, no outono de 1918, o editor-chefe do jornal da Diocese do Brooklyn observou, em sua coluna semanal, que “as igrejas católicas estiveram fechadas no domingo em 21 Estados pela primeira vez desde os Estados Unidos foram descobertos”.
Em seguida, ele reproduziu a conversa que teve com uma mulher local neste mesmo dia:
Perguntamos a uma senhora se ela foi à minha de manhã; ela prontamente respondeu que sim; mas, dissemos, “a senhora não estava com medo de pegar a gripe?” “Não”, disse ela, “agora, mas se ficar longe da igreja, daí eu teria medo de pegar”. Uma filosofia católica prudente.
Aos 51 anos de idade, Patrick Scanlan estava pelo segundo ano dirigindo a Tablet, jornal diocesano do Brooklyn que construiu um público nacional ávido por seu estilo combativo.
Scanlan acabaria sendo o decano da imprensa católica nos EUA – o mais alto defensor do Pe. Charles Coughlin, quando este pregador destilou o seu antissemitismo no final da década de 1930, e também do senador Joseph McCarthy durante sua ascensão e queda nos anos de 1950.
Ou seja, Scanlan fez carreira trafegando no meio da política de ressentimento.
Há um exemplo disso na objeção que ele fez ao fechamento temporário de igrejas durante o surto de gripe espanhola: “Proibir que as pessoas se reúnam por meia hora no domingo é classificar as igrejas como um setor não essencial”, escreveu em uma coluna de 19-10-1918.
Um século depois, o presidente Donald Trump falaria de modo semelhante quando disse que iria pressionar para que os governadores reabram as igrejas imediatamente: “Estou corrigindo essa injustiça e considerando essenciais as casas de cultos”.
Essa ideia de que a pandemia de coronavírus e suas restrições às liberdades individuais fazem parte de uma conspiração para minar a crença religiosa pode ser vista entre os herdeiros de Scanlan atuantes na imprensa católica conservadora, na direita alternativa (alt-right) e em figuras eclesiásticas como o Cardeal Raymond Burke, o Cardeal Gerhard Müller e em um arcebispo de tendência conspiratória, Dom Carlo Maria Viganò.
Felizmente, a diocese de Scanlan não seguiu o seu exemplo na pandemia de coronavírus. Os representantes da Diocese do Brooklyn dizem que o fechamento temporário da igreja é inevitável.
“Embora existam muitos que duvidam e até se manifestam publicamente contra as decisões tomadas de fechamento das igrejas e de manutenção do distanciamento social, saibam que decisões como essas não são tomadas levianamente”, escreveu Dom Nicholas DiMarzio em sua coluna no Tablet.
Isto se aplica especialmente à Diocese do Brooklyn-Queens, que está “literalmente no epicentro da crise na cidade de Nova York, epicentro dos Estados Unidos. Tivemos que recorrer a essas medidas desesperadas para impedir mais perdas de vida e a propagação da doença. A vida é o dom maior de Deus e devemos protegê-lo”.
Aqui encontramos o cerne do problema. Trata-se de uma questão pró-vida. Ninguém nega a necessidade de religião. Milhares de nova-iorquinos buscaram consolo na celebração religiosa após o ataque terrorista de 11 de Setembro de 2001, e as paróquias católicas desempenharam um papel admirável nisso.
Mas, por mais que precisemos também da missa e dos sacramentos no meio da pandemia de coronavírus, bem como do senso de comunidade e conexão que a liturgia incorpora, não seria bíblico arriscar a vida de outras pessoas por ela.
“Na pandemia de 1918 e de agora, usaram-se conselhos médicos duvidosos para reforçar o argumento de que a vida poderia prosseguir sem fecharmos os ambientes onde grandes quantidades de pessoas se reuniam”.
“O modo de não pegarmos a doença é nos mantendo forma, indo dormir cedo e acordando cedo, dormindo com as janelas abertas, levando uma vida regular, comendo com regularidade e, simplesmente, usando água fria externa e internamente várias vezes durante o dia e, acima de tudo, fazendo longas caminhadas”, escreveu Scanlan em sua coluna no citado jornal diocesano, baseando-se no trabalho do padre alemão do século XIX Sebastian Kneipp, precursor do movimento de cura naturopata.
Mas, apesar de longas caminhadas e de uma boa hidratação, até jovens saudáveis, como soldados, estiveram vulneráveis àquela epidemia que matou 675 mil pessoas nos EUA. O antecessor de Scanlan na editoria da revista diocesana morreu de pneumonia induzida por influenza durante o serviço militar.
Como não havia vacina contra a gripe ou antibiótico para tratar das infecções secundárias, o isolamento e a quarentena eram fundamentais na resposta dada pela a maioria das autoridades de saúde.
Duas semanas após o artigo de Scanlan, a publicação diocesana contaria uma outra história em um editorial não assinado:
Pode ser que o nosso povo católico não esteja de fato ciente do terrível flagelo que recai sobre nós. Um motivo do nosso estado abençoado de ignorância reside no fato da atitude prudente de ação das nossas autoridades católicas (...) Reduziram-se as missas – hoje não há missas em nossas escolas – e outros serviços foram cancelados. As autoridades têm agido com cautela, prudência e com medo de alarmar indevidamente. Nos cemitérios, vemos atrasos nos enterros sem serem informados, o que é inteligente. O sentimento de lealdade é admirável. No entanto, o flagelo recai sobre nós. Padres e freiras estão morrendo.
Ainda assim, a publicação denunciava o fechamento temporário de igrejas em Islip, comunidade em Long Island pertencente à Diocese do Brooklyn, como “uma transação vergonhosa”.
Em 1918, como hoje, havia diferentes opiniões sobre se as igrejas precisavam ser fechadas.
“A ordem do Departamento de Saúde de fechamento das portas das igrejas já criou muitos alarmes desnecessários entre as pessoas”, disse o Cardeal James Gibbons, da Arquidiocese de Baltimore, ao jornal Baltimore Sun. “Foi errado fechar estes templos. Ir à igreja acalma os fiéis e, ao mesmo tempo, lhes traz um sentimento de tranquilidade”.
Dom Thomas F. Hickey, da Diocese de Rochester, no estado de Nova York, escreveu em uma carta pastoral que “em reconhecimento à palavra da autoridade devidamente constituída, nós obedecemos” e observou que “segundo reportagens, a nossa própria cidade sofreu muito menos que outras comunidades”.
As notícias da epidemia eram subestimadas na maioria dos jornais, onde a cobertura das semanas finais frenéticas da Primeira Guerra Mundial dominava as primeiras páginas.
No jornal Boston Globe, a decisão da cidade de fechar igrejas ressoou entre as notícias de que os bares não podiam oferecer os seus serviços. Foi dito: “igrejas e casas de boliche também estão fechados pela epidemia”.
Um jornal católico em Los Angeles, The Tidings, declarou que a decisão de fechar as igrejas “era inteiramente desnecessária equivocada (...) Por mais grave que seja, a angústia aguda sentida em outras cidades não se mostrou aqui”.
Obviamente, é bem provável que as medidas tomadas pelas autoridades da Califórnia tenham salvado vidas. Um estudo de 2007 descobriu que o fechamento de igrejas, teatros, escolas e outros locais de reunião, no início da pandemia de 1918, reduziu pela metade o pico de mortalidade.
O estudo mostrou que o fechamento de igrejas foi ordenado em muitas cidades, incluindo Washington DC, St. Louis, Seattle, Pittsburgh, Cincinnati, Cleveland, Indianápolis, Newark, Nova Orleans e Filadélfia.
Curiosamente a cidade de Nova York está ausente dessa lista. Para o prazer de Patrick Scanlan, o Conselho de Saúde municipal decidiu-se contra o fechamento de escolas e igrejas. O encarregado para a área da saúde, Royal S. Copeland, concentrou-se no problema do horário comercial, com os seus movimentos impressionantes, para buscar reduzir o número de pessoas que usavam o metrô.
Oponentes do fechamento em outras partes do país apontavam com frequência para esse fato, já que Nova York era conhecida por ter o melhor programa de saúde pública.
As 30 mil mortes havidas em Nova York ficaram longe de uma medida de sucesso, mas não muito distantes em comparação com outras cidades costeiras. Talvez o mais importante foi que a cidade agiu cedo no controle no tráfego marítimo.
Quando a segunda fase da pandemia de gripe terminou em Nova York e a Grande Guerra chegou ao fim na Europa, foi preciso que as religiosas avisassem os leitores do jornal diocesano que mais estava por vir.
“Durante a epidemia da gripe espanhola, testemunhamos cenas em nosso hospital como nunca antes”, escreveram as religiosas do Instituto das Irmãs de São José na cidade de Long Island.
“Os médicos nos alertaram, dizendo que poderemos ter uma nova epidemia após a chegada de muitos navios vindos da zona marcada pela guerra na Europa. Temos de fazer tudo o que estiver ao nosso poder para aprontarmos os nossos hospitais”.
Era uma filosofia católica prudente.
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