29 Mai 2020
A pandemia da Covid-19 terá repercussões duradouras para a Igreja. O catolicismo que emergirá da crise sob a liderança do Papa Francisco será mais enxuto e mais claro em sua missão
A reportagem é de Christopher Lamb, publicada em The Tablet, 28-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma pandemia virulenta pode ter forçado os edifícios da Igreja ao redor do mundo a fecharem, mas a própria Igreja nunca fecha. Como Jesus nos diz em Mateus 24,35, “o céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão”.
O Pentecostes, o aniversário da Igreja, é um momento apropriado para refletir sobre que tipo de missão e testemunho surgirá da crise e sobre como o Papa Francisco avançará a sua visão para a evangelização missionária quando a tempestade da Covid-19 começar a enfraquecer.
“O que estamos vivendo agora é uma espécie de metanoia e temos a chance de começar. Então, não deixemos que ela escape de nós. Sigamos em frente”, disse Francisco em entrevista à The Tablet no mês passado.
Em dois documentos proféticos, seu manifesto para este papado, Evangelii gaudium, publicado em 2013, seguido dois anos depois pela sua encíclica Laudato si’, um poderoso chamado a proteger o mundo natural, o papa oferece um mapa para atravessar a crise e rumo ao futuro.
O coronavírus suspendeu a vida “normal’ da Igreja, com muitas pessoas ainda privadas de acesso aos sacramentos. Foi uma prova de fé que alguns países não viam há séculos. Após semanas de confinamento, os católicos agora estão gradualmente retornando às igrejas, participando da missa e recebendo os sacramentos, mas apenas de uma forma altamente restrita. É improvável que isso mude em breve, e a Igreja deve se adaptar à nova situação. As coisas não voltarão facilmente a como eram antes.
“Este é um momento para reiniciar”, diz Augusto Zampini-Davies, padre argentino que o papa pediu para desempenhar um papel de liderança na Comissão Covid-19 do Vaticano, acrescentando: “O que é essencial? Essa é a questão. O que é essencial que a Igreja retome, regenere e permita que o Espírito Santo acenda, como dimensão essencial do cristianismo? Se Cristo está caminhando conosco neste momento trágico, aonde Ele quer nos levar?”
As dioceses e as paróquias têm visto sua renda cair em queda livre, o que está levando à perda de empregos e a algumas instituições a enfrentar o fechamento. Como escreveu Stephen Bullivant no início deste mês na The Tablet, é provável que o declínio de longo prazo na participação nas missas na Europa e nos Estados Unidos seja acelerado pela pandemia.
Mas também há razões de esperança. O coronavírus revelou uma fome de fé e mostrou que a Igreja atende a uma necessidade essencial. Uma recente pesquisa da ComRes apontou para isso, quando constatou que um quarto dos adultos no Reino Unido havia assistido ou ouvido um rito religioso durante o confinamento. Mas a medida da saúde da Igreja nunca pode se basear apenas nos números do comparecimento à missa ou em uma grande presença institucional. “Não somos chamados a ter sucesso, mas a ser fiéis”, costumava dizer a Madre Teresa de Calcutá.
Outro líder profético do século XX, o falecido cardeal Carlo Maria Martini, dizia desta maneira: “Jesus pergunta: será que o Filho do Homem, quando voltar, encontrará fé? Ele não pergunta: ‘Encontrarei uma Igreja grande e bem organizada?’”.
Para Francisco, a crise não é uma oportunidade para reestruturar as instituições. É um momento para refletir e perguntar o que pode ser feito para garantir que todos os aspectos da vida eclesial se concentrem na evangelização missionária, para que ela se aproxime da Igreja dos primeiros séculos.
O derrotismo, declara Francisco na Evangelii gaudium, “nos transforma em pessimistas lamurientos e desencantados com cara de vinagre” [n. 85]. O papa quer uma Igreja voltada para fora, em permanente estado de missão e focada nos pobres, em vez de ter um olhar voltado para dentro e autorreferencial.
“Não gastem tempo e recursos demais olhando-se no espelho, elaborando planos autocentrados nos mecanismos internos, em funcionalidades e competências do próprio aparato. Olhem para fora”, disse o papa em uma mensagem enviada às Pontifícias Obras Missionárias na semana passada. “Quebrem todos os espelhos de casa!”
Então, como a Igreja emergirá da pandemia e como será? Eu sugiro que haverá quatro “marcas” da Igreja no mundo pós-Covid-19.
A primeira é a simplicidade missionária. O coronavírus está forçando a Igreja a se concentrar em sua mensagem principal. Ao longo do seu pontificado, a mensagem do papa à Igreja tem sido simples: concentrar-se em levar as Boas Novas de Jesus Cristo às “periferias”, aos lugares onde se encontram os mais vulneráveis, os mais pobres e os esquecidos.
Uma Igreja de discípulos missionários será marcada pela sua simplicidade. Não “erigirá obstáculos” para as pessoas que buscam a fé. “Por que complicar algo tão simples?”, pergunta o papa na Evangelii gaudium ao falar sobre o clamor dos pobres e a necessidade da misericórdia de Deus. “Jesus nos ensinou este caminho de reconhecimento do outro, com as suas palavras e com os seus gestos. Para que ofuscar o que é tão claro?” [n. 194]. Essa Igreja da simplicidade missionária também será caracterizada pela alegria em meio às dificuldades e por uma abertura ao Espírito Santo, o agente da verdadeira reforma. “A alegria se adapta e se transforma, mas sempre permanece”, enfatiza o papa.
A segunda “marca” da Igreja emergente será que, embora possa ser menor, será mais focada nos pobres. É inevitável que a crise econômica global causada pelo confinamento levará a uma “peneiração” de certos órgãos e instituições da Igreja e o fechamento de algumas paróquias e atividades, por causa da queda na renda e nos números.
Mas, ao longo da história da Igreja, houve uma “poda” seguida por um novo crescimento. Agora é a hora de discernir quais estruturas “podem chegar a condicionar um dinamismo evangelizador”, como Francisco afirma, e quais o servem [n. 26].
Se a Igreja for menor, será caracterizada pelo serviço: da ajuda aos destituídos até a educação dos mais necessitados, passando pelo fato de estar ao lado daqueles que lidam com a sua saúde mental. O desemprego e as dificuldades financeiras que ocorrerão por causa da Covid-19 e que afetarão mais os mais pobres tornarão a missão social da Igreja mais vital do que nunca.
Uma instituição mais ágil, mais clara em suas prioridades, mais capaz de responder às necessidades maiores pode agir como fermento na sociedade. Jesus, disse o papa à comunidade católica de Marrocos no ano passado, “colocou-nos no meio da sociedade como um punhado de fermento: o fermento das Bem-aventuranças e do amor fraterno, pelo qual, como cristãos, todos podemos nos unir para tornar presentes o seu Reino”.
A terceira marca que caracterizará a Igreja no mundo pós-Covid-19 será uma relação renovada com o mundo natural e com a ciência. Ao fechar os edifícios da igreja e suspender suas liturgias, as lideranças da Igreja estavam respondendo a conselhos científicos.
A fé não se opõe à razão ou à ciência. A relação entre fé e ciência é de enriquecimento mútuo. Francisco já demonstrou isso com a Laudato si’, que reúne a espiritualidade de Francisco de Assis e a melhor ciência sobre a proteção do ambiente.
E funciona nos dois sentidos. Brune Poirson, ministro da Ecologia da França e não crente, elogiou a Laudato si’ – que neste mês completou seu quinto aniversário – dizendo à publicação francesa La Vie na semana passada que não pode haver “transição ecológica” sem uma compreensão do transcendente.
“Desde o início, a resposta pastoral de Francisco à pandemia levou em consideração as recomendações de cientistas e especialistas médicos”, apontou Richard Galliardetz, presidente do Departamento de Teologia do Boston College. “Uma das características mais notáveis da encíclica Laudato si’ do Papa Francisco foi a atenção que ela dedicou às ideias da ciência moderna.”
Galliardetz levanta uma pergunta surpreendente: “O catolicismo poderia sair da pandemia, sob a liderança de Francisco, situado de forma singular para demonstrar ao mundo moderno que a crença na ciência moderna não precisa ser sacrificada sobre o altar da crença religiosa?”
A quarta característica, e talvez a mais delicada, será a criatividade litúrgica e pastoral. A Igreja já está encontrando novas formas de levar os sacramentos e a mensagem do Evangelho aos fiéis no contexto das restrições à saúde pública.
“O desafio mais difícil é a liturgia: tudo parece estar focado na missa e não em outras experiências litúrgicas possíveis”, explicou Massimo Faggioli, historiador da Igreja e professor de teologia na Villanova University. "Isso mostra os limites da recepção dos ensinamentos do Vaticano II sobre as Escrituras.”
É provável que os ritos virtuais continuem sendo populares, e, à medida que as restrições forem levantadas, as pessoas poderão ir à missa com menos frequência. O mundo pós-Covid-19 exigirá que os católicos assumam mais responsabilidade pela própria fé, exigindo uma mudança para um discipulado ativo em vez de serem meramente “consumidores religiosos” passivos.
A criatividade será mais importante, como o surgimento de missas ao ar livre, liturgias domésticas, orientação espiritual via Zoom e outras inovações. Como ressalta o Pe. Zampini-Davies, “nós não somos os donos da graça de Deus”.
Há um perigo, segundo Faggioli, de que a pandemia não apenas acelere as tendências secularizantes, mas também force uma desaceleração de uma das principais maneiras pelas quais o Papa Francisco espera dar vida à Igreja prevista pelo Concílio Vaticano II: a sinodalidade.
Grandes reuniões da Igreja, como os sínodos, não serão possíveis em curto prazo. A Igreja australiana já suspendeu por 12 meses o Concílio Plenário que estava preparando para realizar em outubro deste ano. “Roma e as Igrejas locais devem encontrar uma forma de manter a sinodalidade”, diz Faggioli.
O mundo está olhando para o cristianismo em busca de liderança, para nos ajudar a entender a espiritualidade da tragédia da Covid-19. Galliardetz sugere que o Papa Francisco pode sair da pandemia com uma reputação de líder pastoral aumentada, em contraste com “alguns prelados que agiram como se o batismo cristão oferecesse a sua própria inoculação contra as doenças”.
A Covid-19 atingiu duramente os cristãos e os seguidores de todas as religiões. O confinamento coincidiu com a Páscoa, afastando as pessoas da preciosa força vital dos sacramentos no ponto alto do ano litúrgico. No entanto, também há sinais de uma vida nova – e da possibilidade de uma Igreja emergir da crise mais focada em sua missão principal e em confiar na promessa deixada por Jesus de “fazer obras ainda maiores do que estas” (João 14,12).
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Quatro características do catolicismo pós-pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU