24 Mai 2020
“Transmidiatizar” a Boa Nova envolve uma ação de partilha ativa, criativa e expansiva dessa mensagem com outras pessoas, “em todas as épocas, com todas as linguagens, por todos os meios”, como diz Francisco. Com isso, realiza-se também uma reconstrução colaborativa e participativa do universo narrativo-existencial do Evangelho, a partir da realidade de vida dessas pessoas, em seus tempos e lugares específicos.
A opinião é de Moisés Sbardelotto, jornalista e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Seu livro mais recente é "Comunicar a fé: por quê? Para quê? Com quem?" (Ed. Vozes, 2020).
“O ser humano é um ser narrador.” Esse fato embasa a reflexão proposta pelo Papa Francisco em sua mensagem para o 54º Dia Mundial das Comunicações Sociais, celebrado neste domingo, 24 de maio, intitulada “‘Para que possas contar e fixar na memória’ (Ex 10, 2). A vida faz-se história”.
No texto, Francisco convida principalmente a contar “boas histórias”, um convite desafiador “no meio da confusão das vozes e mensagens que nos rodeiam”. E é um desafio ainda maior para a Igreja hoje, chamada a comunicar a Boa Nova por excelência “pelo mundo inteiro” e “a toda a criatura” (cf. Mc 16,15). Mas o ambiente comunicacional contemporâneo também apresenta algumas potencialidades que podem contribuir nesse sentido.
A “narratividade original” do ser humano, resgatada por Francisco, reforça a ideia de que, assim como somos seres que pensam (Homo sapiens) e seres que fazem (Homo faber), somos mais ainda seres que contam, relatam, narram aos outros aquilo que pensam e aquilo que fazem (Homo fabulator). Essa humana narratividade se expressa desde os primórdios da espécie, passando por toda a história oral, escrita, audiovisual e digital, “em forma de conto, de romances, de filmes, de canções, de notícias”, como exemplifica o papa.
As histórias e as narrativas são também alimento e vestuário do ser humano. “Desde a infância, temos fome de histórias, assim como temos fome de alimento”, diz Francisco. E, assim como o ser humano precisa de vestes “para cobrir a própria vulnerabilidade”, ele também precisa se “revestir” de histórias.
E não é por acaso que a própria palavra “texto” vem do latim “textum”, ou seja, teia, tecido. “Tecendo” os fios das nossas relações, vamos compondo o tecido da nossa própria vida. Por isso, o ser humano “é um ser em realização”, afirma o papa, porque “descobre-se e enriquece-se nas tramas dos seus dias”.
A narratividade, portanto, é constitutiva do nosso húmus, da nossa humanidade, e revela “o entrelaçamento dos fios pelos quais estamos unidos uns aos outros”. Fazemos parte de um “tecido vivo”, diz Francisco, em que “as histórias influenciam a nossa vida, mesmo sem termos consciência disso”, e os relatos “moldam as nossas convicções e os nossos comportamentos, podem ajudar-nos a entender e a dizer quem somos”.
Nos últimos anos, com o processo de digitalização, a narração de fatos e histórias vem ganhando desdobramentos significativos. Em culturas cada vez mais digitais, essas práticas se complexificam ainda mais. Os meios tecnológicos de acesso, produção, distribuição e consumo de sentido hoje (às vezes em um único aparelho físico, como o smartphone) estão ao alcance da imensa maioria da população. A “tecelagem dos fios” relacionais e simbólicos ocorre, cada vez mais, na trama das “redes de redes” sociais e tecnológicas, em um processo crescente de conectivização. Pessoas, textos, imagens, sons, vídeos tornam-se potencialmente “conectáveis” à distância de um clique (ou de um toque na tela).
A internet, pela sua facilidade de acesso e de uso, e pela expansão do alcance e da abrangência das interações sociais, possibilita, assim, que as pessoas “comuns” comuniquem uma “palavra pública” – especialmente aquelas que historicamente não tinham acesso aos artefatos tecnológicos industriais ou empresariais de comunicação. O ambiente digital torna-se um espaço de autonomia, para além do controle das instituições sociais, políticas ou econômicas que, ao longo da história, monopolizaram o processo de produção da informação.
Trata-se de uma autonomização que aponta, justamente, para a “mutação nas condições de acesso dos atores individuais à discursividade midiática, produzindo transformações inéditas nas condições de circulação”, como já afirmava Eliseo Verón (1935-2014), professor da Universidade de Buenos Aires. Autonomamente, qualquer pessoa hoje pode decidir os conteúdos que quer comunicar e os interagentes com os quais quer se comunicar, com um simples toque de dedo na tela de seu celular. Com a comunicação digital, “é o homem comum, sem qualquer visibilidade corporativa, que dá à ambiência da comunicação e da informação generalizadas o estatuto de nova esfera existencial”, segundo Muniz Sodré, professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.
Contudo, em meio a essa facilidade da comunicação atual, em que qualquer pessoa pode se comunicar potencialmente com o mundo, vai se constituindo nos últimos anos uma verdadeira “desordem informacional”, como já apontava um relatório do Conselho da Europa em 2017, um fenômeno em que a falsidade e a nocividade se alimentam reciprocamente. Ou, nas recentes palavras da Organização Mundial da Saúde, trata-se de uma verdadeira “infodemia”, diante das inúmeras falsidades, boatos e mentiras compartilhadas, por exemplo, durante a pandemia do coronavírus, produzindo uma grande desinformação médica e sanitária. Como se não bastassem as fake news, já analisadas e denunciadas por Francisco em sua mensagem de 2018, tudo isso alcança hoje “níveis exponenciais”, como no caso das deepfakes, mencionadas pelo papa na mensagem deste ano.
Nesses processos, quase não nos damos conta da quantidade de “fofocas e intrigas”, “violência e falsidade”, “histórias destrutivas e provocatórias, que corroem e rompem os fios frágeis da convivência”, “informações não verificadas”, discursos banais e falsamente persuasivos”, “proclamações de ódio”, como aponta Francisco, que consumimos a todo instante na nossa dieta midiática cotidiana.
Junto a isso soma-se a “guerra de narrativas” que marca o jogo político-midiático contemporâneo. A verdade dos fatos – ou mesmo apenas a sua veracidade – não tem mais valor algum: interessa apenas a “minha” versão, a “minha” opinião. “Minha versão é melhor do que a sua! Minha mentira é maior do que a sua!” Fenômeno que, por exemplo no Brasil, produziu a situação cada vez mais bizarra e surreal, infelizmente, em que o país se encontra do ponto de vista político, desfiando e rasgando crescentemente o tecido social.
Diante de todo esse fenômeno de “falsificação cada vez mais sofisticada”, Francisco destaca quatro antídotos principais: sabedoria, coragem, paciência e discernimento. São eles que permitem “receber e criar relatos belos, verdadeiros e bons” e rejeitar os falsos e malvados. Com eles, é possível redescobrir “histórias que tragam à luz a verdade daquilo que somos” e, por sua vez, contar “histórias que edifiquem, e não as que destruam; histórias que ajudem a reencontrar as raízes e a força para avançar juntos”.
Em meio a tais luzes e sombras do cenário atual, surgem também novas experiências narrativas. Hoje, fala-se de “narrativas transmídia”, ou seja, narrativas que são construídas utilizando-se os recursos e as potencialidades das várias mídias. Estas se articulam para contar uma mesma história, que, ao mesmo tempo, se desdobra em diversas histórias paralelas, seja por meio de livros, filmes, jogos, histórias em quadrinhos, vídeos, sites, blogs, redes sociais digitais, aplicativos etc.
Trata-se de um processo em que “cada meio [mídia] dá uma contribuição à construção do mundo narrativo; evidentemente, as contribuições de cada meio ou plataforma de comunicação diferem entre si (...) As narrativas transmídia não são simplesmente uma adaptação de uma linguagem a outra”, como afirma Carlos Scolari, professor de Comunicação da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, em seu livro “Narrativas transmedia: Cuando todos los medios cuentan” (p. 24, trad. livre). Cada meio acionado é chamado a fazer aquilo que pode fazer de melhor para ajudar a contar uma “boa história”, que é aquela “capaz de transcender os limites do espaço e do tempo” e que, mesmo à distância de séculos, “continua sendo atual, porque alimenta a vida”, como afirma Francisco na mensagem.
Sinal disso são, por exemplo, fenômenos do entretenimento como as sagas Star Wars, Matrix, Harry Potter, Walking Dead, entre outras, cujas narrativas não se restringem a uma única linguagem nem a uma única mídia, mas, justamente, “transpassam” as fronteiras midiáticas, “transmidiatizam-se”, desdobrando-se de formas inovadoras em cada mídia. Assim, a própria ideia de narrativa se desvincula cada vez mais de uma certa “matriz escritural”, reinventando-se nas diversas linguagens e potencialidades abertas pela digitalização e pela conectivização.
Do ponto de vista religioso, podemos dizer que a própria Bíblia é um dos maiores exemplos de “narrativa transmídia” em toda a história. Primeiro, a Escritura é multimídia: trata-se de um “livro de livros”, com diversos gêneros literários. Como diz Francisco, “a Sagrada Escritura é uma História de histórias. Quantas vivências, povos, pessoas nos apresenta!”. Mas é também transmídia, ao ser uma mesma “história da salvação” desdobrada em incontáveis leituras, releituras, lugares, tempos, contextos etc. ao longo da história.
Portanto, a Bíblia não é apenas uma “coleção de textos”, mas sim um grande e complexo “tecido de textos”, um magistral intertexto, que, ao longo da história, se “transmidiatizou” em novos textos, códices, livros, panfletos, mosaicos, afrescos, pinturas, esculturas, vitrais, construções arquitetônicas, teatros, cantos, músicas, fotografias, filmes, programas de TV e de rádio, sites, aplicativos... em uma circulação incomensurável de sentidos construídos a incontáveis mãos de inúmeros homens e mulheres de diversas épocas e regiões.
Além disso, o principal diferencial das narrativas transmídia é que elas dão “espaço e voz” ao leitor/espectador para que possa participar criativa e colaborativamente do desdobramento e expansão de sentidos em torno da história. Esse processo envolve uma “estratégia narrativa que, além de expandir os mundos de ficção em diferentes meios e plataformas, também dá importância à participação dos fãs nessa expansão”, como afirma Scolari.
Se a sociedade é formada por diferentes “públicos”, cada um com seus gostos e interesses, as narrativas transmídia podem favorecer com que uma mesma história seja “desfrutada” pelos mais diversos públicos, nas suas linguagens e nos meios que mais favoreçam a sua experiência comunicacional. Isso é potencializado pela circulação comunicacional em rede, por meio de uma grande complexidade de interações igualmente transmidiáticas. Mas, mais importante em tudo isso é que os leitores e espectadores também colaboram para a expansão e o desdobramento criativo dos enredos, das histórias e dos universos narrativos, a partir de suas próprias reconstruções de sentido publicizadas em rede.
O mesmo ocorre com o texto bíblico. A rede inter e multitextual da Bíblia só ganha sentido a partir da leitura, meditação, oração e contemplação pessoal e comunitária. A experiência interpretativa dessas pessoas concretas, ao ser compartilhada com outros, “reescreve” o texto bíblico e seu universo de sentido em novos tempos e lugares, ampliando-o e complexificando-o
O problema da comunicação contemporânea, muitas vezes, é justamente uma forma de narração que se crê autônoma e independente, autocentrada e autossuficiente, “narcísica”. A outra pessoa – o leitor/espectador – não é sequer levada em consideração, é mero objeto apassivado e meio coisificado para alcançar determinados fins (econômicos, principalmente). Ou, no pior dos casos, é narrativamente assassinada, simbolicamente aniquilada em nome de tais fins, como no caso dos discursos de ódio.
Para superar isso, Francisco apresenta como exemplo o “Narrador por excelência”, Jesus. Nele, “o Deus da vida comunica-se contando a vida”, diz o papa, seja por meio das conversas pessoais em torno da mesa ou a caminho para outra localidade, seja por meio dos discursos na montanha, à margem do lago ou no meio da multidão. Nas parábolas de Jesus, narrações breves, tiradas da vida cotidiana, afirma o papa, “a vida faz-se história, e depois, para o ouvinte, a história faz-se vida: essa narração entra na vida de quem a escuta e a transforma”.
Em Jesus, portanto, temos um narrador transmídia primordial, pois, como afirma Francisco, o Evangelho “pede ao leitor que participe da mesma fé para partilhar a mesma vida. (...) Deus se entreteceu pessoalmente na nossa humanidade, dando-nos assim uma nova forma de tecer as nossas histórias”. Estabelece-se um tecido relacional entre Jesus, a sua narrativa e o leitor/ouvinte, que não para por aí, mas pede para se entrelaçar com outros fios relacionais. “Por obra do Espírito Santo – diz o papa –, cada história, até mesmo a mais esquecida, até mesmo aquela que parece escrita nas linhas mais tortas pode tornar-se inspirada, pode renascer como uma obra-prima, tornando-se um apêndice do Evangelho.”
Nesse sentido, “transmidiatizar” o Evangelho, por um lado, significa dar origem a “uma particular forma narrativa que se expande através de diferentes sistemas de significação (verbal, icônico, audiovisual, interativo etc.) e meios (cinema, histórias em quadrinhos, televisão, videogames, teatro etc.)”, como afirma Scolari. Ao longo da história, a Igreja soube fazer isso com grande originalidade, mas hoje é preciso ser ainda mais “ousados e criativos” (Evangelii gaudium, n. 33). Para isso, é preciso seguir um duplo “fio da meada”: primeiro, a pessoa de Jesus, eixo em torno do qual gira não apenas o Evangelho; e, em segundo lugar, o “universo narrativo-existencial” onde Jesus se encarna: “A sua história leva à perfeição o amor de Deus pelo ser humano e, ao mesmo tempo, a história de amor do ser humano por Deus”, afirma Francisco. A partir desses dois fios narrativo-existenciais entrelaçados, é possível se entregar à “liberdade incontrolável da Palavra, que é eficaz a seu modo e sob formas tão variadas que muitas vezes nos escapam, superando as nossas previsões e quebrando os nossos esquemas” (EG, n. 22).
Por outro lado, e principalmente, “transmidiatizar” a Boa Nova envolve uma ação de partilha ativa, criativa e expansiva dessa mensagem com outras pessoas, “em todas as épocas, com todas as linguagens, por todos os meios”, como afirma o papa na mensagem. Com isso, realiza-se também uma reconstrução colaborativa e participativa do universo narrativo-existencial do Evangelho, a partir da realidade de vida dessas pessoas, em seus tempos e lugares específicos.
Toda pessoa que ouve, vê, lê, recebe o Evangelho, portanto, é chamada a “transmidiatizar” essa Boa Nova em sua vida e em sua comunicação, prolongando-a e expandindo-a no aqui-agora da história. Afinal, a verdadeira narrativa cristã – transmídia ou não – é aquela que, segundo Francisco, “cheira a Evangelho e dá testemunho do Amor que transforma a vida”.
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Transmidiatizar as narrativas da vida e do Evangelho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU