05 Mai 2020
Biografia do filósofo alemão permite rastrear as grandes polêmicas intelectuais do último meio século. Suas críticas à amnésia a respeito do passado nazista fizeram dele uma consciência moral da Europa.
A reportagem é de Javier Rodríguez Marcos, publicado por El País, 03-05-2020.
Em novembro de 2004, Jürgen Habermas viajou ao Japão para receber o Prêmio Kyoto, convocado por uma empresa de tecnologia e dotado de 800.000 euros. Deu duas conferências lá. A primeira foi dedicada ao livre arbítrio e à responsabilidade do ser humano. Na segunda atendeu ao pedido de seus anfitriões: “Por favor, fale sobre o senhor”. Foi a primeira vez que o fez em público. Tinha 75 anos e estava a 9.000 quilômetros de casa. Lá ele se lembrou das dolorosas operações no palato que fez na infância em sua cidade, Düsseldorf, para tentar corrigir uma fissura congênita que marcou para sempre sua pronúncia. Também lembrou a “sensação de vulnerabilidade” que isso lhe causava.
Depois falou da outra grande ferida que marcou sua vida, um passado pouco exemplar do qual sua família fez parte: os pais o alistaram aos 10 anos de idade na Juventude Hitlerista e o pai, filiado ao partido nazista, acabou nas cadeias norte-americanas como prisioneiro de guerra. E claro, falou sobre o que o fez mudar da medicina, sua primeira vocação, para a filosofia: a impressão causada pelos crimes descritos nos julgamentos de Nuremberg, a falta de autocrítica de seus compatriotas e o medo de que a Alemanha recaísse no delírio que partira pela metade a história da humanidade.
Como todos os vencedores do prêmio, também coube a Habermas cunhar uma máxima para a juventude. A sua diz: “Nunca se compare com um gênio, mas tente sempre criticar a obra de um gênio”. Ele passou a vida colocando essa frase em prática. É o que se deduz da leitura da biografia que seu discípulo Stefan Müller-Doohm lhe dedicou em 2014 e que acaba de ser publicada em espanhol [não existe versão em português até o momento]. O meticuloso Müller-Doohm, que nos fala da coleção de pinturas de seu mestre ou registra a generosa dotação de cada prêmio que recebe, dá poucos detalhes sobre a intimidade do filósofo, mas em troca nos permite assistir às grandes polêmicas intelectuais do último meio século. Em quase todas Habermas teve algo a dizer. Enfrentasse o gênio que fosse.
Jürgen Habermas costuma lembrar que o que faz de um sábio um intelectual é a capacidade de se irritar. Ele foi o segundo antes de ser o primeiro. Em 1953, quando terminava sua tese de doutorado sobre Schelling na Universidade de Bonn, sob a orientação de Erich Rothacker —que em 1933 pedira o voto em Hitler—, Habermas recebeu um presente das mãos do amigo Karl-Otto Apel: o novo livro de seu pensador vivo favorito, Martin Heidegger. Era Introdução à metafísica, as aulas que o autor de Ser e tempo dera em Freiburg em 1935. A reedição não tinha notas explicativas e os apelos à “verdade e às grandezas internas deste movimento [o nacional-socialismo]” indignaram o doutorando.
Aquele “curso impregnado de fascismo” o levou a enviar um artigo ao Frankfurter Allgemeine Zeitung, cujo título diz tudo: Pensando com Heidegger contra Heidegger. Um tinha 63 anos, o outro, 24. Mais do que o desprezo do velho pensador pelo igualitarismo democrático, o que incomodava o jovem era sua recusa à autocrítica e à possibilidade de que esse silêncio contaminasse sua filosofia: “É possível interpretar também o assassinato planejado de milhões de pessoas, do qual hoje já não ignoramos nada, como um erro que nos foi apresentado como destino no contexto da história do ser? A principal tarefa dos que se dedicam ao ofício do pensamento não é lançar luz sobre os crimes cometidos no passado e manter desperta a consciência sobre eles?”.
Heidegger levou dois meses para responder. Ele o fez em uma carta ao Die Zeit para esclarecer que o movimento ao qual se referia não era o nazista, mas o encontro entre o homem e a técnica. Parecia uma saída pela tangente, mas quando nos anos 1980 e 1990 recriminar sua proximidade com o nazismo se tornou uma tendência, Habermas voltou ao combate para lembrar que sua crítica não se dirigia tanto a essa proximidade de 1933, mas à sua recusa a reconhecer seu erro a partir de 1945. “A discussão sobre o comportamento político de Martin Heidegger não pode nem deve servir ao propósito de uma difamação e desprezo sumários”, escreveu em 1991. “Como nascemos depois, não podemos saber como teríamos nos comportado nessa situação de ditadura.”
Meses depois dessa polêmica, Jürgen Habermas publicou seu primeiro artigo longo na prestigiosa revista Merkur: A dialética da racionalização. Nele analisa a alienação provocada pelo trabalho em cadeia e pelo consumo desenfreado. E avisa: da produção ao transporte, passando pela comunicação e pelo lazer, a “cultura das máquinas” acabará dominando nossa vida. A cada dia estaremos mais longe da natureza e do resto dos seres humanos. Esse aviso tem seis décadas.
O choque heideggeriano e esse artigo, a começar pelo título, provocaram uma chamada: Theodor Wiesengrund Adorno queria conhecê-lo. O coautor da Dialética do esclarecimento tinha voltado do exílio norte-americano para reconstruir o Instituto de Pesquisa Social (IIS), que entraria na história da cultura como Escola de Frankfurt e na do humor culto como Café Marx ou Grande Hotel Abismo. A primeira denominação, que brincava com a adscrição materialista de seus membros, surgiu quase simultaneamente à sua fundação, em 1923. A segunda se deve a Georg Lukács, que descreveu a influente escola como um hotel de luxo pendurado em um precipício.
Em 1956 Habermas ingressou no instituto como assistente de Adorno e sem remuneração durante os seis primeiros meses. A relação entre os dois foi cordialíssima desde o primeiro momento. Além disso, para Gretel Adorno, esposa de seu novo mentor, o jovem lembrava seu amigo Walter Benjamin, que havia se suicidado em Port Bou em 1940 enquanto fugia da Gestapo. No entanto, nem tudo era harmonia. Max Horkheimer, codiretor do IIS, se irritava de tal maneira com a militância pacifista e antinuclear do novo assistente que pediu ao colega que o demitisse. Para Adorno, que não se curvou, só se explicava tal animosidade porque o rapaz de vinte e poucos anos lembrava Horkheimer de seu próprio passado socialista, que renegava.
A sombra da República Democrática Alemã era muito longa e dificultava qualquer discussão na República Federal. Tanto que, durante a Guerra Fria, Habermas se descreveu como “antianticomunista”. “Não sou marxista”, escreveu, “no sentido de acreditar no marxismo como se fosse um certificado de patente. Mas o marxismo me deu o estímulo e os meios analíticos para investigar como se desenvolveu a relação entre democracia e capitalismo.” Seu biógrafo enfatiza que, longe de qualquer intenção revolucionária, a partir da década de 1970 ele se concentrou na necessidade de “domesticar” o capitalismo com uma democracia garantida pelo Estado de Direito com “face social”. Apesar de a relação de Habermas com Frankfurt ter sido um ir e vir — com temporadas em Berlim, em Heidelberg de Gadamer e no Instituto Max Planck de Starnberg —, sua figura marcou a segunda geração do Instituto. Foi o homem que acendeu a lanterna que o tirou de um túnel tão longo quanto fascinante: o pessimismo antropológico da primeira geração.
Em 1979, o francês Jean-François Lyotard publicou um “relatório sobre o saber” na sociedade pós-industrial, cujo título faria fortuna: A condição pós-moderna. Conceitos como conhecimento, liberdade e progresso eram estigmatizados como grandes narrativas destinadas a legitimar uma autoridade intelectual e política caduca. Por trás deles, não haveria nada além de interesse e vontade de poder. Habermas respondeu ao que qualificou de pensamento “neoconservador” com uma veemente defesa dos valores da razão ilustrada. Ele também tinha um título afortunado: Modernidade: Um projeto inacabado. Em sua opinião, na linha antimoderna “francesa” — que vai de Bataille a Derrida e passa por Foucault — “pende o espírito de um Nietzsche redescoberto nos anos 1970”.
Em 1981, o filósofo da “esfera pública” terminou, com 52 anos, sua obra mais importante, um “monstro”, em suas próprias palavras, “recalcitrantemente acadêmico”: Teoria da ação comunicativa. Sintetiza em dois volumes suas pesquisas filosóficas e sociológicas para defender os valores do acordo, do consenso e do mútuo entendimento. Não se trata, argumenta, de buscar a verdade à margem dos interesses, mas de rastrear o modo pelo qual as ideias de verdade, liberdade e justiça estão “constitutivamente inseridas” nas estruturas da linguagem. Os fundamentos de uma sociedade não podem vir de um além metafísico —religioso, político ou econômico — mas da linguagem compartilhada por seus cidadãos: “A verdade não existe no singular”. Daí a fé de Habermas na democracia deliberativa e no que mais tarde —diante da embriaguez nacionalista provocada pela reunificação alemã — denominará “patriotismo constitucional”, um conceito que acabará se espalhando por toda a Europa.
Desde a chamada “disputa do positivismo” entre Adorno e Popper, Jürgen Habermas não deixou de participar das discussões acadêmicas de sua disciplina, mas a maioria de suas intervenções públicas esteve, de uma maneira ou de outra, atravessada pela necessidade de não esquecer uma lição: a do Holocausto. Daí sua insistência na responsabilidade — e não na culpa — coletiva dos alemães durante a “disputa dos historiadores” dos anos 1980. E também suas reservas sobre a participação do Exército alemão nas missões da OTAN nos Bálcãs durante os anos noventa. “O que significa para o senhor ser alemão hoje?”, perguntou um jornalista italiano em 1995. Sua resposta: “Encarregar-me de que a instrutiva data de 1945 não caia no esquecimento por causa da data feliz de 1989”.
Inclusive quando Peter Sloterdijk deu a conhecer suas Normas para o parque humano —a superação do humanismo tradicional a partir da “antropotécnica” genética—, Habermas percebeu o que considera “o núcleo fascista de uma chamada social-darwinista à educação”. Em sua própria resposta, Sloterdijk coloca o dedo na mesma ferida: “A era dos filhos hipermoralizadores de pais nacional-socialistas está se extinguindo”. Ainda assim, o terrível para o “filho moralizador” não era que essa opinião viesse de alguém nascido em 1947, mas que alguém nascido em 1927 pudesse compartilhá-la. Foi o caso do romancista Martin Walser, amigo íntimo dele desde os tempos em que o filósofo era uma das pessoas mais influentes da editora Suhrkamp. Walser aproveitou seu discurso de recepção do grande prêmio na Feira de Frankfurt de 1998 tanto para atacar os intelectuais que continuavam agitando a “maçã moral de Auschwitz” quanto para criticar o monumento do Holocausto que Peter Eisenman projetava ao lado da Porta de Brandenburgo, elogiado por Habermas por seu caráter abstrato e antimonumental. Quando este respondeu ao já ex-amigo, o fez qualificando seus argumentos de “arrotos de um passado indigesto que brotam periodicamente das tripas da República Federal”.
Naquele discurso autobiográfico de Kyoto, Jürgen Habermas aceitou o rótulo de “filósofo intelectual”, mas rejeitou o de clássico e até a transcendência de sua biografia particular. A tarefa do intelectual, disse, nada mais é do que “melhorar o lamentável nível de discurso dos confrontos públicos” e evitar o cinismo a todo custo. Um clássico é outra coisa. “Na nossa disciplina”, explicou, “se denomina clássico aquele que com sua obra permanece como um contemporâneo. O pensamento de tais clássicos é como um vulcão em ebulição que deposita como escória as diferentes fases de sua biografia. Essa imagem nos é imposta pelos grandes pensadores do passado, cuja obra resiste à mudança dos tempos. Pelo contrário, nós, os filósofos contemporâneos, que nada mais somos que professores de filosofia, permanecemos apenas como contemporâneos dos nossos contemporâneos.”
Habermas completou 90 anos em junho passado, tornando-se um ícone da cultura mundial que as enciclopédias, como que por impulso, continuam associando ao célebre Instituto de Pesquisa Social de Horkheimer e Adorno. Talvez porque não dão crédito a uma história que corre há décadas entre os filósofos. Um professor norte-americano aterrissa na Alemanha, entra em um táxi e diz: “Para a Escola de Frankfurt”. O taxista responde: “Para qual delas?”.
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Assim argumenta Habermas, 90 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU