24 Abril 2020
O encontro com o Senhor, se não pode ser garantido pela reunião do povo, pode sê-lo na forma doméstica, caseira e econômica da Igreja. Assim, até mesmo o Tríduo Pascal, coração pulsante da assembleia eclesial, tomou forma em casa, com uma criatividade, uma pertinência e uma intensidade que talvez ninguém esperava.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Il Regno Attualità, n. 8, 15-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Se a Igreja não pode se reunir, é inevitável que entre em crise. Um dos modos históricos para lutar contra as Igrejas foi o de impedir o seu ato elementar, que está claramente escrito em seu nome. Ecclesia é assembleia, ser convocado, chamado, reunido. Sem reunião, não há Igreja. Quem impede a reunião é inimigo.
Esse imaginário está presente em muitos corações, não só nos sombriamente reacionários. Mas se a reunião é proibida não para prejudicar a Igreja, mas pelo bem comum dos cidadãos, então as coisas mudam e as práticas se complicam. A reunião é um bem, e a sua proibição é um bem maior para se sacrificar a assembleia. Entre os dois bens, não são possíveis espaços de mediação. Isso abre um leque de questões e oportunidades que são efetivamente novas e, como tais, devem ser abordadas, sabendo que as precedentes são poucas, ou diferentes demais ou pouco relevantes demais. Tentemos, então, fazer uma resenha delas.
Se os corpos ficam em casa, pelo menos os olhos, os ouvidos, as mentes e os corações tentam sair, tentam se encontrar, não tardam em se conectar. Através das telas dos computadores, dos tablets, dos celulares ou dos televisores, tentamos compensar isso.
E essa via encontrou fácil reconhecimento, acima de tudo oficial, mas também particular, pessoal, pastoral. Muitíssimas paróquias ativaram transmissões ao vivo, outras se apoiaram em TVs locais. Isso, porém, é um canal que facilmente espetaculariza o rito.
Você não “faz a Páscoa”, mas olha para outro que, pouco mais do que sozinho, faz a Páscoa. Isso não é apenas triste, mas vai contra a ideia, profética, de que o povo de Deus não é um “espectador mudo”, ainda mais se estiver acomodado no sofá de casa. Nem tudo, porém, foi conduzido dessa maneira.
Vimos o menino que acompanha a missa em casa, mas vestido como coroinha. Ouvimos falar de formas de participação mais intensa, mais ativa e interativa. Também encontramos a força para “fazer comunhão” não visual, mas corporal e prática.
O encontro com o Senhor, se não pode ser garantido pela reunião do povo, pode sê-lo na forma doméstica, caseira e econômica da Igreja. Assim, até mesmo o Tríduo Pascal, coração pulsante da assembleia eclesial, tomou forma em casa, com uma criatividade, uma pertinência e uma intensidade que talvez ninguém esperava.
Um segundo ponto, mais delicado, parece ser, até agora, o complexo percurso de justificação da renúncia à reunião e de uma teologia capaz de elaborá-la de modo significativo. Ambas as passagens não foram indolores.
Por um lado, de fato, pelo menos no início da epidemia, havia corrido no corpo da Igreja a percepção de que fechar, renunciar, seria trair a Tradição, a missão, o testemunho, a caridade... Mas, assim que o fenômeno assumiu toda a sua tragicidade de sofrimento e de morte, quem hesitou foram somente ou os fidelíssimos sem coração ou os comunicadores com coração de chacal.
Porém, a questão não foi resolvida, apenas se deslocou. Assim, adquirida a condição de fechamento, entrou-se no túnel escuro das justificações. E aqui, infelizmente, viu-se muito claramente uma cisão dramática entre a iniciativa louvável de diversos ministros e fiéis, e a leitura fria, burocrática, distante, puramente normativa de uma parte não irrelevante do corpo episcopal.
Se, diante da dura necessidade de renunciar à reunião, desencadeia-se imediatamente, quase como um reflexo condicionado, a leitura eucarística centrada no padre, que, portanto, até mesmo sozinho, constituiria um “sujeito suficiente” para a celebração, tudo isso parece uma mensagem muito dissonante em relação à sensibilidade amadurecida após o Vaticano II.
Pareceu que a razão teológica da emergência veio improvisada com os retalhos mal compostos de uma teologia velha e sem coração. Além disso, isso deve ser somado a circulares e decretos, emitidos em nível universal ou particular, nos quais, quase como se estivéssemos em uma Igreja-navio surpreendido por uma forte tempestade que alterava gravemente a estrutura de flutuabilidade, todas as instruções fossem dedicadas à tripulação, enquanto os passageiros acabavam como que deixados sozinhos ou enviados de volta ao sofá com vista da TV.
Um aspecto que não foi fácil de focar é a complexa correlação entre a imposição do “estado de exceção civil” – com o distanciamento, a contenção e proibição de aglomeração – e o “estado de exceção litúrgica”, que causa na Igreja, já há 13 anos, a aceitação de um distanciamento, de uma reunião paralela que ameaça a qualidade da vida eclesial.
Em certo sentido, os dois estados de exceção se sustentam; em outro sentido, eles se opõem. Por um lado, de fato, discute-se sobre a “exceção litúrgica”, ou seja, sobre um regime estranho e pouco transparente, com o qual a Igreja, para responder a uma contingência de 13 anos atrás, tomou um caminho do qual não consegue mais sair.
Mas, ao lado disso, há a pressão de um momento totalmente excepcional, no qual somos obrigados pelos cuidados de saúde a renunciar a muitas práticas consolidadas e a inventar novas.
Se considerarmos que, no meio da pandemia, a Congregação para a Doutrina da Fé apresentou dois decretos (Quo magis e Cum sanctissima) com os quais modificou o Ordo missae de 1962, para evitar o escândalo, é preciso especificar que:
- a legitimidade de um ato não implica a sua oportunidade ou justiça;
- a trama institucional da Igreja torna-se opaca quando afirma, acima de tudo, a repetição inercial de si mesma;
- as transformações de um procedimento devem ser controladas e verificadas com muita atenção.
Assim, se um procedimento, que havia sido pensado para uma comissão especial – como era a Ecclesia Dei – e que agora é realizada por uma seção da Congregação para a Doutrina da Fé, que se ocupa de “reformar o rito de 1962”, o efeito eclesial desse ato parece ter mudado de sinal. E a Congregação, quase automaticamente e sem combate, torna-se o lugar de uma dissidência entre formas concorrenciais do próprio rito romano. Esse é um sinal extremamente negativo para a comunhão eclesial.
Um sistema excepcional desejado pelo Papa Bento XVI, em vista e na esperança de uma reconciliação, em vez disso, gera continuamente divisão, separação, para não dizer sedição. Justificar tudo isso dizendo que “a lei permite” não é uma solução, mas, pelo contrário, arrasta até a lei para o escândalo que devia ser evitado.
A diferença entre a lei de 2007 (Summorum pontificum) e o desígnio do Concílio Vaticano II nos permite dizer que “o estado de exceção acabou”. Podemos voltar à lógica conciliar. Por isso, a contenção civil faz explodir duas lógicas opostas e antitéticas. Corrobora uma Igreja só de padres (e de padres sós) e relança a iniciativa dos fiéis não clérigos e não masculinos. Em particular, emerge disso, ao mesmo tempo:
- a tentativa de valorizar uma Igreja de emergência só de padres celebrantes, que recorre a léxicos e a cânones primo-modernos e pré-conciliares;
- a tentativa de justificar o papel da assembleia, de uma ministerialidade ampliada e do papel feminino, que implica a retomada de discursos fortes e decisivos sobre essas questões.
Tudo isso impõe uma desclericalização radical e urgente, que possa dizer três coisas decisivas, embora nem um pouco novas.
1. A assembleia celebrante é o corpo de Cristo ressuscitado (e, portanto, não pode, de forma alguma, ser pensado ou tornado acessório);
2. a assembleia precisa de mais ministérios, não só do presbítero;
3. as mulheres podem exercer funções de autoridade, porque podem e devem ser reconhecidas como titulares de um ministério em sentido forte e pleno. Nas mulheres, está implicado e se expressa o anúncio apostólico, do qual depende a própria tradição eclesial na sua plena verdade.
Essa passagem é difícil e é também teologicamente muito exigente. Poderão ser definitivamente arquivados os discursinhos clericais que se contentam em citar frases de homens geniais, mas que viveram em um tempo completamente diferente, e que confundem as estruturas institucionais nas quais se encontram sem as terem escolhido com o Evangelho, como se fossem de direito divino.
São os truques típicos de uma Igreja que não existem mais e que parecem boa apenas de portas fechadas. Porque existe uma Igreja que sempre esteve de portas fechadas, mesmo quando as portas estavam abertas, que permaneceu presa em papéis velhos, que tem palavras e formas velhas. E precisamente agora se vê isso melhor, porque ela realiza plenamente a si mesma, graças à epidemia. E tem a ingenuidade simples e, às vezes, uma arrogância despudorada em dizer isso abertamente.
Mas não há apenas isso. Existe também, e muito viva, uma Igreja que precisa urgentemente relançar os grandes discursos, que a oficialidade eclesial teve a força de fazer aberta e solenemente apenas 60 anos atrás e que hoje parece tão confusa quando deve repeti-los de maneira credível. Mas há quem sabe fazer isso. E se encontra precisamente naquele vértice da pirâmide que é invertida.
Precisamente por essa condição invertida, bem antes da pandemia de hoje que desertifica o mundo, mesmo quando saía em uma Praça de São Pedro aberta, no meio da multidão festiva, Francisco já parecia tremendamente sozinho, pelo fato de viver de portas abertas em uma Igreja que as preferia fechadas, já então.
É aquela mesma Igreja que se revitaliza hoje quando pode abrir mão do povo, se pode substituí-lo totalmente, com um selo ou com um decreto. Se tivermos a paciência para ler os discursos escritos nas últimas semanas por muitos que estão em estreito contato com esse vértice da pirâmide invertida, não é preciso muito esforço para reconhecer essa condição paradoxal de solidão duplicada: do fechamento civil que reduplica o fechamento eclesial.
As portas fechadas, portanto, abrem uma tarefa dupla, maravilhosamente complicada: para aqueles que podem estar na igreja, que nela estejam diversamente. Para aqueles que não podem estar na igreja, que saibam ser Igreja em outro lugar e diversamente.
O retorno a uma das fontes decisivas do saber eucarístico comum não prejudica essas duas categorias de sujeitos. O uso dos termos mais adequados muitas vezes é o primeiro sinal de um estilo eclesial e de um método idôneos. O texto normativo oficial, ao descrever a experiência da “celebração eucarística”, nunca usa o termo “missa sem povo”. A grade que é usada pela Instrução Geral do Missal Romano (IGMR, III edição), para falar das diversas formas de celebração eucarística, diz: “Missa com o povo”, “missa concelebrada”, “missa com a assistência de um só ministro”.
Isso ocorre porque a IGMR sabe que não se pode celebrar “privadamente”, nem mesmo se você for o papa. A missa é, antropológica e eclesialmente, um fenômeno plural. Humanamente, ela nunca inicia com o indivíduo, mas com uma comunidade. Essa é a mesma sabedoria que permanece escrita também no Direito Canônico, quando, no cânone 906, afirma: “A não ser por causa justa e razoável, o sacerdote não celebre o Sacrifício eucarístico sem a participação ao menos de algum fiel”.
No topo, está o “celebrar comum”, e o “caso de necessidade” é uma dolorosa e pesada exceção. A sabedoria teológica está em perceber e comunicar essas diferenças, tão sutis quanto um fio de cabelo, mas decisivas.
A plena compreensão de um estilo litúrgico e pastoral necessário pode ser lida nos números 91-96 da IGMR. O primeiro número declara:
91. A celebração eucarística é ação de Cristo e da Igreja, que é “sacramento de unidade”, ou seja povo santo reunido e ordenado sob a orientação do bispo. Por isso pertence a todo o Corpo da Igreja, manifesta-o e afeta-o; no entanto, envolve cada membro de modo diverso, segundo a diversidade das ordens, das funções e da efetiva participação. Deste modo, o povo cristão, “geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo resgatado” manifesta o seu ordenamento coerente e hierárquico. Por conseguinte, todos, ministros ordenados ou fiéis cristãos leigos, ao desempenharem a sua função ou ofício, façam tudo e só o que lhes compete.
Dizer que a missa “pertence a todo o Corpo da Igreja” é a visão de fundo na qual não há concorrência entre sujeitos, algo que subverteria o próprio sentido da eucaristia. Cada um é sujeito. A lógica nunca é aquela que distingue entre autônomo/dependente. Cometer-se-ia um erro no uso das categorias. É como se se aceitasse a lógica do “jogo da torre”, clássico e perverso: na missa, quem você joga de cima da torre? O padre ou a assembleia?
A mesma lógica inclusiva pode ser lida na passagem dedicada ao presbítero (IGMR 93), na qual a autoridade da presidência está correlacionada ao serviço a Deus e ao povo, sem usar categorias de objetivo/subjetivo. Tal serviço não pode ser dividido, no sentido de que, assim como não se pode servir ao povo sem servir a Deus, assim também não se pode servir a Deus sem servir ao povo: a “oferta do sacrifício” está em “presidir o povo reunido”.
Isso também se reflete na rica e articulada leitura do “ministério da assembleia”. Aqui seria muito oportuno recuperar, por parte de todos os fiéis e ministros eclesiais, a força desses textos, sem se deixar distrair por documentos gravemente enganosos que tiveram a desfaçatez de convidar à “cautela” no uso da categoria de “assembleia celebrante”.
Às vezes, de modo repentino, essas lógicas apologéticas de “luta contra os abusos” impedem de raciocinar com ternura sobre as dinâmicas eclesiais. Deveria sempre ficar claro que o bispo e o presbítero “presidem uma assembleia que celebra”. O ato de celebrar é constitutivamente plural.
Por isso, a IGMR 95-96 lembra:
95. Na celebração da Missa, os fiéis constituem a nação santa, o povo resgatado, o sacerdócio real, para dar graças a Deus e oferecer a hóstia imaculada, não só pelas mãos do sacerdote, mas também juntamente com ele, e para aprenderem a oferecer-se a si mesmos. Procurem manifestar tudo isso com um profundo sentido religioso e com a caridade para com os irmãos que participam na mesma celebração. Evitem, portanto, tudo quanto signifique singularidade ou divisão, tendo presente que são todos filhos do mesmo Pai que está nos Céus e, consequentemente, irmãos todos uns dos outros.
96. Portanto, formem todos um só corpo, quer ouvindo a palavra de Deus, quer participando nas orações e no canto, quer sobretudo na comum oblação do sacrifício e na comum participação da mesa do Senhor. Esta unidade manifesta-se em beleza nos gestos e atitudes corporais que os fiéis observam todos juntamente.
Aqui é evidente e tocante o “fôlego eclesial” dessa arejada apresentação da experiência eucarística. Nesse horizonte de “comum oblação do sacrifício e na comum participação da mesa do Senhor”, com a comunhão na palavra e no sacramento, toma forma a experiência da Igreja, que não se deixar encerrar em uma prática de funcionários sitiados, que trairia não só o múnus episcopal, mas também o próprio sentido do ministério ordenado.
Não descer abaixo do tom da IGMR – para enfrentar o desafio de um tempo tão surpreendente e tão desorientador – me parece ser o único modo de realmente ter acesso tanto a um mínimo de ternura eclesial, quanto a um mínimo episcopal de competência eucarística.
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Liturgia e Covid-19: diversamente Igreja. Como ser assembleia celebrante em tempos de pandemia. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU