25 Março 2020
Dizer que Jair Bolsonaro passou dos limites virou lugar comum, mas faltam adjetivos para qualificar o pronunciamento de ontem à noite. A verdade é que não há limite possível para o delírio do presidente que conseguiu, em cinco minutos, usar três vezes a palavra "histeria", mentir sobre a covid-19, contrariar especialistas do mundo todo, fazer pouco caso dos idosos e doentes crônicos que morrerão e ainda fazer suas típicas provocações infantis a quem o contraria.
A informação é publicada por Outra Saúde, 25-03-2020.
O medo das pessoas, para ele, se deve à cobertura midiática que espalhou "a sensação de pavor" – e não ao fato de que já há quase 400 mil casos no mundo com mais de 16 mil mortes, e de que tudo isso cresça exponencialmente.
Num ataque direto aos governadores – com quem parecia ter dado uma trégua ao fazer videoconferência com adversários e anunciar ajuda financeira – disse que "algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa".
"Devemos, sim, voltar à normalidade", completou ele, no momento em que os casos no Brasil ainda estão começando a crescer e quando o próprio ministro da Saúde prevê o colapso do SUS em breve. "Por que fechar escolas?", perguntou, na contramão de mais de 150 países que já fecharam todos os seus estabelecimentos de ensino. "O grupo de risco é o das pessoas acima de 60 anos", justificou, insensível, antes de se gabar do seu "histórico de atleta". "No meu caso particular (...) nada sentiria, ou sentiria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho". O que é mentira – que o digam os atletas que já relataram seus maus bocados com a covid-19.
Para completar, numa rara menção à ciência, ainda colocou "Deus" como encarregado por capacitar pesquisadores no Brasil – que têm mostrado, o tempo todo, a gravidade da situação. Subfinanciados, por sinal. Em O Globo, o infectologista da UFRJ Edimilson Migowski comentou: "A covid-19 é uma doença contagiosa e toda a população está vulnerável, já que não existe uma vacina ou um antiviral licenciado para este fim. Por isso há um grande potencial de que muitas pessoas adoeçam ao mesmo tempo. Imagine, por exemplo, que 100 mil pessoas adoeçam na Rocinha. Sabemos que 20% delas terão uma doença moderada e 5%, grave. Isso significa que 5 mil pessoas precisarão de suporte de terapia intensiva. Isso tudo considerando apenas um bairro do Rio".
Falando em ciência... Um grupo de entidades que reúnem pesquisadores de saúde coletiva e bioética, como a Abrasco, assinaram juntas uma nota em que classificam como criminoso o "discurso de morte" do presidente: ele "nega o conjunto de evidências científicas que vem pautando o combate à pandemia em todo o mundo", dizem.
As panelas soaram pela oitava noite seguida. E está sendo preparado o "maior panelaço da quarentena" no próximo dia 31, em "defesa do SUS e da democracia".
O discurso pareceria uma alucinação absoluta se não estivesse óbvio o fato de que foi preparado de antemão. Segundo o Estadão, a fala foi escrita "no gabinete do presidente com a participação de poucas pessoas e em segredo". Teve, como era de se esperar, o dedo de Carlos Bolsonaro e de integrantes do "gabinete do ódio", onde atuam os assessores responsáveis pelas redes sociais do presidente. A matéria diz que até o fim da tarde poucos assessores sabiam que Bolsonaro preparava uma declaração.
Os ministros Luiz Eduardo Ramos, Onyx Lorenzoni, Ricardo Salles e Walter Braga Netto participaram; Flavio Bolsonaro e o ex-jogador de futebol Paulo César Tinga também. "A estratégia, segundo assessores presidenciais, é a de tentar polarizar o debate no esforço de municiar o eleitorado bolsonarista a voltar a sair em defesa do governo", completa a reportagem da Folha. Isso porque o núcleo digital da Presidência constatou uma "desmobilização" de perfis de direita nas redes sociais.
A aposta, alta, não foi consensual dentro do governo. O núcleo militar foi contra, com o medo (nem um pouco infundado) de que o efeito seja o oposto. A ala vem se dedicando, segundo O Globo, a "tentar aplicar um freio de arrumação na gestão da crise do coronavírus". Meia hora antes do pronunciamento, o general Edson Leal Pujol publicou um vídeo no Twitter do Exército pedindo seriedade.
Tudo isso vem junto com uma dúvida cruel: estaria o presidente infectado? Depois de uma determinação da Justiça, o Hospital das Forças Armadas, onde ele fez o teste para o coronavírus, apresentou uma lista de 17 pessoas que receberam resultado positivo. Mas... omitiu o nome de duas. E a lista com os 15 identificados não vai ser publicada. O governo do Distrito Federal diz, porém, que há "alguns" integrantes do governo entre os 15.
Segundo o jornalista Vicente Nunes, do Correio Brazilliense, servidores do Planalto admitem que os nomes ocultos podem ser os do presidente e da primeira-dama. "Esses servidores dizem que a lista do HFA virou tabu dentro do Planalto", escreve ele. E lembra que, logo neste momento, o governo restringiu o acesso a dados públicos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Se a estratégia do pronunciamento aberrante funcionou para movimentar apoiadores nas redes sociais ainda não sabemos. Mas no Congresso a resposta veio rápido. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, lançou logo uma nota afirmando que o Brasil precisa de uma "liderança séria, responsável e comprometida com a vida e a saúde da sua população". Diz ainda que a "nação espera do líder do Executivo mais do que nunca, transparência, seriedade e responsabilidade". Rodrigo Maia, da Câmara, bem mais sutil, tuitou que o discurso foi "equivocado" e pediu "paz".
Entre os demais parlamentares, as críticas vieram obviamente da oposição e de ex-apoiadores como Joice Hasselmann. Mas também de aliados: Três congressistas relataram anonimamente à colunista Bela Megale, do Globo, que a fala foi "um banho de água fria" e "fora do tom". Segundo a Folha, líderes do centrão "questionam a capacidade do presidente de continuar governando". Mas dizem que não é a hora de levantar a bandeira do impeachment...
Enquanto isso, alguns governadores falam, sim, em impeachment – e até em demissão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, cuja posição estaria deslegitimada depois de o presidente ir contra as recomendações da Pasta. "Confesso que depois da iniciativa do presidente, de ter atendido os governadores, achei que fosse mudar. E aí hoje ele vem com essa postura e com esse conteúdo, totalmente na contramão de todas as medidas que, com tanto esforço e responsabilidade, os governadores e prefeitos vêm enfrentando a pandemia?", disse a petista Fátima Bezerra, do Rio Grande do Norte.
Segundo o Globo, governadores de todo o país imediatamente começaram a trocar mensagens de WhatsApp e a preparar uma reação ao presidente – e vão manter as restrições impostas até agora. Ex-aliados e agora rivais, Wilson Witzel (Rio) e João Doria (SP) ganham palco.
Aliás, a crise do coronavírus fez com que o governador de São Paulo antecipasse em dois anos a sua estratégia de se apresentar abertamente como "o anti-Bolsonaro", diz a Folha. Henrique Meirelles, hoje à frente da Secretaria da Fazenda do estado, já se opôs a Paulo Guedes: "Primeiro tem que preservar a vida, depois a economia", disse ao Valor. Mas sem exageros: ele segue na defesa da austeridade fiscal e do teto de gastos (do qual foi grande articulador em 2016), e nega que a tese do Estado mínimo tenha caído por terra.
E os secretários estaduais de saúde divulgaram uma carta em que se dizem "estarrecidos" com o pronunciamento. "Ao invés de desfazer todo o esforço e sacrifício que temos feito junto com o povo brasileiro, negando todas as recomendações tecnicamente embasadas e defendidas, inclusive, pelo seu Ministério da Saúde, deveríamos ver o Presidente da República liderando a luta, contribuindo para este esforço e conduzindo a nação para onde se espera de seu principal governante: um lugar seguro para se viver, com saúde e bem estar". escreveram.
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Pronunciamento de Bolsonaro repete conteúdo de redes bolsonaristas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU