05 Março 2020
"Continuar chamando Deus Pai significa perpetuar a cultura patriarcal que, no tempo de Jesus, era a cultura predominante, mas que hoje é conscientemente considerada como limitada e imperfeita", escreve Carlo Molari, teólogo italiano, padre e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana de Roma, em artigo publicado por Oreundici, fevereiro de 2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Antes de mais nada, gostaria de fazer uma reflexão sobre método e linguagem. Recentemente ressurgiu a discussão sobre a contraposição entre o antigo testamento e o novo testamento, ou seja, entre o mundo judaico e Jesus. Mas a discussão está mal orientada, porque Jesus é o fruto do mundo judaico. Devemos ter presente que o que Jesus realiza deriva do judaísmo e é uma riqueza para o judaísmo, é uma expressão de fidelidade a uma história e a uma cultura que ele aprofundou. Quando Jesus foi encontrado por Maria e José no templo, Jesus estava ouvindo os doutores da lei que estavam explicando e lhes fazia perguntas, ou seja, ele queria aprofundar os problemas religiosos - por isso havia permanecido em Jerusalém. “Por que você fez isso conosco?”, pergunta Maria a Jesus: “Seu pai e eu estávamos aflitos à sua procura”. E Jesus pede desculpas dizendo que ele havia avisado, talvez eles não tivessem dado importância à sua palavra, mas tinha permanecido ali para aprofundar os problemas religiosos.
Aqui surge uma pergunta que nos fazemos hoje e é o fato de nos referirmos à experiência de Jesus em relação a Deus-pai, com um termo que é de uma familiaridade e ternura maior, Abbá, que é como se estivéssemos dizendo "papai". No entanto, para a sensibilidade atual, o termo é imperfeito porque Deus não é pai, ou seja, ele não tem uma característica de gênero sexual que indicamos com o termo pai. Quando João Paulo I disse publicamente que Deus também é mãe, alguns ficaram escandalizados, mas ele estava ressaltando esse fato real. Devemos estar cientes de que não temos as categorias para expressar a realidade de Deus, por isso acredito que um dos problemas que a Igreja terá que enfrentar é precisamente o de adequar a terminologia com a qual se expressa. Agora, não quero aprofundar esse problema, simplesmente me limito a apontá-lo.
Continuar chamando Deus Pai significa perpetuar a cultura patriarcal que, no tempo de Jesus, era a cultura predominante, mas que hoje é conscientemente considerada como limitada e imperfeita. Então, qual terminologia usar? Poderíamos usar uma terminologia mais genérica - princípio, fonte -, mas, ao fazê-lo, não se aprofunda, se permanece na superfície. Se usarmos uma terminologia mais determinada, mais específica, ela deve compreender, assumir e aprofundar os aspectos que a tradição indicou com os termos atenção, amor, misericórdia. Mas percebemos que não temos uma terminologia adequada; por esse motivo, por si só, o caminho teológico leva ao silêncio, ou seja, à consciência de que não podemos expressar adequadamente a realidade de Deus, toda a terminologia que usamos é inadequada.
Portanto, é compreensível o que aconteceu com Tomás de Aquino, que nos últimos meses de sua vida - de 6 de dezembro de 1273 a 7 de março de 1274 - não quis mais falar, não quis mais fazer discursos ou homilias, não quis mais escrever, e se retirou no silêncio mais absoluto. E quando perguntado: por quê? Tomás reconheceu: "tudo o que escrevi é palha".
É importante compreender nessa decisão uma meta à qual tinha chegado e a que permaneceu fiel até a morte, ou seja, sua fidelidade em refletir em silêncio, sem pretender dizer algo sobre Deus. Por outro lado, para nos entendermos e expressarmos, tudo o que podemos fazer é usar os termos que conhecemos e que derivam de nossa experiência.
Este é outro ponto sobre o qual é necessário refletir. Não existe uma terminologia transcendente, todas as palavras que usamos derivam de nossa experiência, portanto têm os limites de nossa reflexão e de nossa experiência com que não podemos pretender esgotar a realidade de Deus. Por isso a meta do silêncio é necessária para uma verdadeira reflexão teológica.
A reflexão teológica deve levar ao silêncio, cada palavra tende ao silêncio como realização. Mas deve ser a exigência de um silêncio pleno e não vazio, ou seja, não pelo esgotamento, mas pela superabundância da realidade que experimentamos, não pelo nada de Deus, mas pelo nada de nossas palavras relativas a Deus. À medida que prosseguimos, as palavras faltam porque descobrimos que a realidade é mais rica e profunda do que somos capazes de expressar. Não podemos dizer nada sobre Deus, apenas podemos expressar o que vivemos em relação a Ele, se o vivemos. Existem dois tipos de silêncio: um silêncio que deriva da consciência da transcendência de Deus, que as nossas palavras não podem dizer, e um silêncio que deriva da nossa incapacidade de viver a relação com Deus.
O segundo aspecto que quero destacar está ligado à tradição cristã em relação à manifestação de Deus. Dizemos que Cristo é testemunha do amor de Deus, isto é, manifestação humana do amor de Deus. Mas, ao dizer "humana", limitamos o aspecto revelador de Deus, porque nos referimos apenas à humanidade presente na nossa terra, quando hoje sabemos que o universo é muito maior do que nossa pequena terra. A terra é um pequeno grão de poeira em uma imensidão extraordinária. Então, quando falamos de "Cristo cósmico", isto é, da ação de Cristo em relação ao universo, a que âmbito nos referimos? Os antigos se referiam à humanidade pensando que fosse a única espécie inteligente, livre, existente no universo, a mais alta expressão da vida como a conhecemos.
Agora sabemos que isso não é verdade, há uma enorme quantidade de situações que são reconhecidas como desenvolvimento real da vida no universo. Então, quando falamos de "Cristo cósmico" a quem estamos nos referindo? À humanidade ou a todas as espécies viventes do universo? Pessoalmente, acredito que nos referimos apenas à humanidade, de modo que o que os antigos expressavam ao dizer "Cristo cósmico" - como nas epístolas aos colossenses ou aos efésios - ou seja, a universalidade da ação de Cristo, não pode ser hoje atribuído a todos os seres viventes presentes no universo, mas apenas à humanidade. Jesus veio para salvar os homens, a nossa espécie: somos chamados a ser testemunhas do amor de Deus pela humanidade. Não podemos dizer nada sobre o futuro do universo, por enquanto não sabemos nada sobre outros seres viventes.
Continuando nesta linha, uma segunda reflexão deve ser feita. A ação de Deus é expressa ao longo da história através das criaturas, à medida que as criaturas humanas crescem e conseguem expressar a ação de Deus de uma nova maneira. Há uma tarefa específica que nossa geração precisa realizar e que as gerações anteriores não foram capazes de realizar. A fase atual está em condições de propor à humanidade novas metas de reconciliação, de capacidade de misericórdia, de perdão, de fraternidade, de sororidade. As formas de amor que somos chamados a manifestar, as formas de acolhimento recíproco, de misericórdia que somos chamados a expressar hoje em nome de Deus, têm profundidades e especificidades que em outros tempos não podiam ser reconhecidas nem exercitadas.
Hoje somos chamados a vivê-las para sermos testemunhas do amor de Deus. A ação de Deus na história se desenvolve não porque Deus se torna maior, mas porque nós, como criaturas, somos capazes de acolher a ação de Deus e expressá-la de uma maneira nova. É por isso que, ao longo da história, a ação de Deus pode crescer se nós crescermos, se a acolhermos de uma nova maneira e formos capazes de alcançar uma meta que os antigos nem poderiam pensar. Essa é a tarefa que nos foi confiada, por isso Jesus dizia: "O Espírito virá e o conduzirá a toda a verdade".
Cada geração tem uma meta de verdade a perseguir e alcançar. Por isso, quando celebramos a Eucaristia, não apenas fazemos memória do que aconteceu no passado, mas renovamos nosso compromisso de acolher a ação de Deus de uma maneira inédita e de traduzi-la em nossa vida como forma de misericórdia recíproca, de perdão, de fraternidade, de sororidade, de uma comunhão de vida nova.
Toda vez que celebramos a Eucaristia, renovamos nosso empenho, que é inédito em relação àquele que celebramos o outro dia ou o ano passado ou alguns anos atrás, porque seremos convidados a trocar dons de vida reais, ajudar uns aos outros a crescer como filhos de Deus. Quando dizemos que a existência humana é um dom de Deus, queremos expressar a riqueza que é renovada no mundo de geração em geração e cresce à medida que o tempo passa, de modo que possamos alcançar formas de humanidade que antes não podiam ser alcançados, mas que nós podemos alcançar só se nos abandonarmos com confiança à ação de Deus, a vivenciarmos na nossa carne dia após dia, criando novas formas de relações entre nós.
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Como falar de Deus hoje? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU