22 Janeiro 2020
"O Roda Viva desta semana. Ele foi desenhado, e quase todos os entrevistadores, com uma ou duas exceções se prestaram para afastar o foco do juiz Moro, limitando-se a discutir os atos do ministro Moro. Tão diferente daqueles Roda Vivas em que os entrevistadores caíram como aves de rapina sobre uma digna e valente Manuela d’Ávila; ou diante do próprio Glenn, onde o interesse não eram os fatos, mas saber como foram obtidos. Glenn também deu uma lição de bom jornalismo, no seu português especial, calando perguntadores de segunda categoria", escreve Luiz Alberto Gomez de Souza, sociólogo.
O resultado do Roda Viva de 20 de janeiro de 2020 era esperado. Foi uma entrevista ao Ministro da Justiça e as perguntas se reduziam a sua relação com Bolsonaro, sua opinião a projetos em curso e sobre o futuro: um posto ao STF ou candidatura eleitoral em 2020 (presidente ou vice). Sabendo da volatilidade das políticas do governo, era um debate inútil sobre posições em mudança permanente.
Mas o mais importante não era discutir o ministro, mas situar o juiz curitibano Moro. Este, numa declaração inicial, adiantando-se antes de ser perguntado declarou, sem justificar, não se importar com os vazamentos publicados pela Intercept, afastando-os com uma palavra definitiva e sem explicações: uma bobajada. Só uma última pergunta, nos minutos finais, tocava novamente no VazaJato e a resposta era a mesma: tratavam-se de fatos difundidos de maneira fraudulenta sem nenhum valor. Na verdade não afirmava ou negava os vazamentos, apenas contestava o fato de serem obtidos por fontes anônimas e por isso sem credibilidade.
Isso nos remete ao caso Watergate, de 1974, que levou à queda de Richard Nixon. Dois jornalistas do Washington Post, Bob Woodward e Carl Berstein, publicaram conversas gravadas no salão oval a partir de um informante também anônimo, o “garganta profunda”, só revelado muitos anos depois. Mas, no meio tempo, os jornalistas puderam publicar os dados sem identificação do informante, em nome da liberdade de informar, princípio claro na liberdade americana. Isso levou à abertura de um processo de impeachment, superado pela renúncia do presidente, que se adiantou, como entre nós Collor o faria mais tarde.
O fato das informações terem origem anônima não impediu os jornalistas de publicá-las em nome da liberdade de informar e com o apoio da diretora do jornal americano. Aqueles apenas informaram terem concluído, numa pesquisa interna, pela veracidade dos fatos. Algo semelhante ocorreu com a VazaJato de Glenn e equipe. A equipe Intercept Brasil, tendo à frente Glenn Greenwald, fez cuidadosa análise, logo compartida pela Folha de São Paulo e pela revista Veja.
Nos últimos anos, dois casos chamaram a atenção. Um, Edward Snowden, ex-CIA e ex-analista da Agência de Segurança Nacional Americana (NSA), que vazou milhares de papeis secretos com a divulgação de diálogos entre juízes e procuradores e o sistema de vigilância global da NSA. Contatou Glenn Greenwald, que ajudou a dar publicidade aos documentos e hoje, depois de uma ida rocambolesca à China, Snowden vive agora possivelmente na Rússia.
O outro caso é o de Julian Assange, australiano, que criou o Wikileads, difundindo documentos confidenciais de governos e empresas, refugiado por muitos anos na embaixada equatoriana em Londres, afinal capturado pela Scotland Yard, com pedidos de extradição dos Estados Unidos e da Suécia.
Para entender o que está por trás do Intercept Brasil, temos de conhecer melhor o papel de Glenn Greenwald, jornalista, escritor e advogado americano, com 52 anos. Como jornalista, desde um começo centrou sua crítica nos aparelhos de poder e nos setores dominantes, tratando de desvendar seus interesses ocultos. Escreveu livros entre os mais vendidos, de acordo com o New York Times, sobre política e direito. Um dos seus livros, de 2014, No place to hide (sem lugar para esconder), foi publicado aqui creio que pela Sextante. Com uma equipe criou um periódico virtual, Intercept e antes, no The Guardian publicou reportagens sobre a NSA, tendo recebido na ocasião o cobiçado prêmio Pulitzer. A Foreign Policy, em 2013, indicou Glenn como um dos cem pensadores globais. Recebeu muitos prêmios internacionais, como o Prêmio de Jornalismo Independente em 2008.
Em julho de 2019 começou a publicar matéria com vazamentos de fonte anônima, cuidadosamente analisada antes de publicar. Surgiram então conversas no aplicativo Telegram, entre o juiz Sérgio Moro e vários procuradores, em especial Deltan Dallagnol. Ali se via o juiz Sérgio Moro cedendo informações privilegiadas, sugerindo modificações nos processos, exigindo celeridade. Ficava evidente que a promotoria estava consciente da fragilidade das acusações que levaram Moro, ao final do processo, à condenação de Lula. Para Glenn, estas revelações foram as reportagens mais importante de suas carreira. Com isso recebeu ameaças. Já políticos e juristas defenderam seu direito constitucional à liberdade de imprensa, a começar pelo presidente da câmara de deputados Rodrigo Maia. Em agosto de 2019, o ministro Gilmar Mendes, do STF, determinou liminarmente que as autoridades públicas não deveriam responsabilizar Glenn pela recepção e transmissão de informações, em nome do direito à informação.
Glenn chegou ao Brasil em 2005 e, desde então, está casado com o atual deputado federal Davi Miranda pelo PSOL, com dois filhos.
Seu esposo, Davi, em agosto de 2013, foi detido em Londres por nove horas, duramente interrogado, tendo-lhe sido retirados todos seus aparelhos eletrônicos. Para Anistia Internacional foi claramente vítima de uma injustificada tática de vinganças a Glenn.
Voltando à Roda Viva, os jornalistas se reduziram, muito comodamente, a entrevistar o ministro, sem chegar até às ações do juiz curitibano . Isso já era previsível quando foi vetada a presença, entre os entrevistadores, de alguém da Intercept.
O fato central e relevante era analisar as mensagens que saíam aos poucos, sobre a relação promíscua, e portanto criminosa, entre um juiz que iria julgar ao final de um processo e, já desde o início, orientava os procuradores sobre onde e como investigar. Assim, ele indicava que não seria conveniente, por exemplo, investigar o período FHC. São especialmente significativas as trocas de ideias de Moro com Dallagnol. Elas se centravam principalmente no caso do triplex de Guarujá, quando ambos reconheciam a fragilidade das acusações, que se baseavam mais em indícios do que em provas. E a troca de ideias de Moro com procuradores se fazia num ambiente de cumplicidade e mesmo de falta de seriedade. Isso inclusive fez com que uma procuradora da força-tarefa da Lava Jato, Jerusa Viecilie, flagrada numa mensagem em que debochava da morte de familiares de Lula, viesse a público, em 27 de agosto, a pedir desculpas pela maneira como tinha tratado sem respeito o então processado Lula. Isso acabou confirmando a autenticidade de mensagens reveladas naquela manhã pela UOL em parceria com a Intercept Brasil.
Aliás, tudo estava dirigido para impedir a candidatura Lula, naquele momento praticamente imbatível, desenterrando fatos irrelevantes, como um triplex que aquele visitou uma só vez e descartou logo seu interesse pelo mesmo. Tinham na manga outro caso, o sítio de Atibaia, que possivelmente fora frequentado por familiares de Lula, tendo como indício insignificante, pedalinhos com os nomes de seus netos.
Baseados na fragilidade desses indícios, Dallagnol com outros procuradores curitibanos, armaram processos que não se mantinham em pé, pela fragilidade dos dados. Fazia lembrar aquela apresentação teatral de Dallagnol para a imprensa, tempo antes, com um organograma totalmente arbitrário e sem base fática, onde Lula estava no centro como chefe de uma banda criminosa. Evidências, nenhuma. Todo o processo da Lava Jato era acompanhado de perto por Moro, que deveria ter se resguardado para o momento final da sentença. Na verdade, ele agia como assessor jurídico de fato, de uma das partes. Uma justiça séria deveria declarar nulos processos como estes.
A farsa continuaria adiante, no recurso para a segunda instância do tribunal em Porto Alegre. Em caso de recurso, cabe ouvir as partes cuidadosamente, antes de proferir a sentença. O que se viu foi inacreditável, que como gaúcho me envergonho. Os desembargadores já traziam escritas longas sentenças, recheadas de erudição, antes de ouvir as partes. E inclusive foram mais longe, aumentando o tempo da pena.
Assim, as sentenças, nos dois níveis, deveriam ser anuladas por ilegais no mérito e no procedimento.
Claro que a operação Lava Jato não se reduzia a isso e levou a desocultar uma enorme quantidade de malfeitos, que se mantiveram por anos, como a rapinagem na Petrobras, que apesar dos crimes de seus dirigentes, que vinham de mais atrás, já nos períodos FHC, Lula e Dilma, continuou como uma empresa robusta. Esses escândalos serviriam como pano de fundo para reforçar a política de privatização da empresa, apostando no possível apetite voraz das grandes petroleiras, especialmente depois da descoberta do pré-sal. Houve uma decepção por parte da equipe de Guedes quando, dois leilões, atraíram a própria Petrobras e pequenas empresas chinesas. Acabou sendo a Petrobras comprando dela mesma.
Haveria que distinguir entre dirigentes corruptos da Petrobras e a importância desta como empresa. Corrupta não era a empresa, mas muitos de seus dirigentes. A deslegitimação do parque empresarial levianamente acusado de corrupção, caso de grandes empreiteiras, serviria como uma luva para as privatizações sonhadas por Guedes. Aí o PT perdeu uma oportunidade, como sugeriram Tarso Genro, Olívio Dutra e Gilberto Carvalho, de fazer uma valente autocrítica, desvinculando o partido daqueles membros que sucumbiram à corrupção.
As denúncias de corrupção costumam ser seletivas, a partir de opções ideológicas, como quando Carlos Lacerda apenas via um mar de lama nos porões da guarda do presidente ou Jânio e sua vassoura se contentavam em denunciar operações ilícitas na construção de Brasília. Há um falso moralismo que podemos chamar udenista, nas mãos da chamada banda de música desse partido. O clube da Lanterna de Lacerda e de Amaral Netto circunscrevia as denúncias a interesses de alguns agentes.
No caso atual, onde estão os nove processos contra o senador Aécio Neves, empapado de rancor ao ser derrotado pela presidente Dilma, e pego, adiante, com a boca na botija com milhões de dólares? O PSDB tratou de isolá-lo, como corrupto contaminado e contaminador. Na última eleição, concorreu a deputado, certo que seu lugar no senado estaria fora de cogitação. Hoje o vemos deambular solitário pelos longos corredores do parlamento.
Onde está a investigação sobre Flávio Bolsonaro e o amigo de seu pai, o semi invisível Queiroz, no caso dos laranjas no gabinete da Alerj, quando o filho maior era deputado estadual? Ou nos outros laranjas do atual ministro do turismo, Marcelo Álvaro Antônio, então presidente do PSL de Minas Gerais. O presidente indicou que não toleraria corruptos no governo, mas blindou até agora este seu ministro.
Voltemos finalmente ao Roda Viva desta semana. Ele foi desenhado, e quase todos os entrevistadores, com uma ou duas exceções se prestaram para afastar o foco do juiz Moro, limitando-se a discutir os atos do ministro Moro. Tão diferente daqueles Roda Vivas em que os entrevistadores caíram como aves de rapina sobre uma digna e valente Manuela d’Ávila ; ou diante do próprio Glenn, onde o interesse não eram os fatos, mas saber como foram obtidos. Glenn também deu uma lição de bom jornalismo, no seu português especial, calando perguntadores de segunda categoria.
Para mim vai ficando cada vez mais claro o papel de Moro, preparado cuidadosamente desde bem atrás, para evitar a volta do chamado lulo-petismo, intolerável para elites atrasadas e para setores antinacionais. A toga escondia um personagem com uma missão bem clara de perpetuar uma sociedade com marcas escravagistas e um complexo vira-lata diante do poder imperial.
O que preocupa é ver setores progressistas incapazes de construir alianças, perdendo seu tempo em denunciar um ministro nazista que caiu ou a chegada de uma dondoca conservadora.
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O ministro esconde a toga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU