Deuses estranhos. A idolatria no século XXI

Parte do afresco "A Criação de Adão", de Michelangelo | Arte: IHU

10 Janeiro 2020

"Weber explica a necessidade básica humana de adorar em termos da necessidade de significado, uma necessidade que nos leva inevitavelmente a fazer deuses. Ele é pessimista na ideia de que podemos superar esta situação. Por outro lado, Marx está convencido de que as pessoas cessarão de fazer deuses após a revolução", escreve William T. Cavanaugh, em artigo publicado por Commonweal e reproduzido por La Croix International, 08-01-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

William T. Cavanaugh é professor de estudos católicos e diretor do Centro de Catolicismo Mundial e Teologia Intercultural da Universidade DePaul, em Chicago. O presente artigo foi adaptado de uma palestra proferida por ele em 2019 sobre fé e cultura, em evento organizado pelo Centro Cultural Crossroads e pelo Fórum Albacete. 

 

Eis o artigo. 

Há cem anos, o famoso sociólogo alemão Max Weber publicava uma edição revisada de sua obra clássica. Inseridos na nova edição estavam alguns poucos usos da palavra Entzauberung, termo que não aparecia na primeira edição. Essa palavra procurava descrever a condição geral do mundo ocidental moderno. Zauber é a palavra para “magia”; Entzauberung significa algo como o “desfazer a magia”. Normalmente é traduzida por “desencantamento”.

Mesmo o próprio Weber empregando-o com moderação, o termo acabou ganhando vida própria. Muitos acreditam que ele captura algo essencial da nossa tradição presente. Na investigação que faz das causas da secularização no Ocidente, o filósofo Charles Taylor escreve: “Todos podemos concordar que uma das grandes diferenças entre nós e os nossos ancestrais de cinco séculos atrás é que eles viviam em um mundo ‘encantado’ e nós não”. Os nossos ancestrais viviam em um mundo habitado por deuses e demônios, fantasmas e anjos, duendes e santos. As fronteiras entre o material e o espiritual eram permeáveis, e o mundo imanente era feito de contato frequente com o transcendente.

O mundo pré-moderno era cheio daquilo que Taylor chama “objetos carregados”, tais como relíquias dos santos, que tinham o poder de alterar a realidade. Hoje, vivemos em um mundo desencantado, desprovido de espíritos divinos ou demoníacos, desprovido de mistério, um mundo sem um significado ordenado. Ou assim nos dizem.

Na opinião de Weber, o desencantamento era o resultado final de um longo processo de racionalização, do qual a ciência e o capitalismo eram os principais impulsionadores. O próprio Weber se considerava um racionalista, alguém que se descrevia como não tendo “ouvido musical para a religião”.

Mas ele não celebrava simplesmente o processo de racionalização e desencantamento. Achava que os avanços técnicos da modernidade tinham um preço e temia que as pessoas modernas se tornassem “especialistas sem espírito, gozadores sem coração: esse Nada imagina ter chegado a um grau de humanidade nunca antes alcançado”.

O livro A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo conclui com uma descrição melancólica da “crosta de aço” da modernidade, máquina sem coração eficiente a partir da qual todo o encantamento fora impiedosamente eliminado, para melhor ou para pior.

Um exemplo de como esta máquina funciona na prática: consideremos um “centro de atendimento”, ou armazém, da Amazon. Nem mesmo Weber poderia prever a extensão a que a Amazon tem levado a racionalização.

Em um centro de atendimento da Amazon, “associados” mal remunerados, que muitas vezes são trabalhadores temporários sem benefícios, apressam-se entre caixas pegando e empacotando praticamente tudo o que podemos imaginar. Um dispositivo portátil mantém o registro dos movimentos que fazem. Depois que ele direciona um funcionário para o próximo item de mercadoria, um marcador de tempo começa a marcar: 27 segundos para escanear o próximo item a quatro corredores adiante, por exemplo.

O dispositivo adverte os trabalhadores se eles estiverem se atrasando e mantém um registro de seus desempenhos. Ficar para trás, ligar avisando que adoeceu e outros delitos podem custar a vaga de emprego dessas pessoas. Alguns “associados” recorrem à prática de urinar em garrafas de forma a não precisar ir até o banheiro nos intervalos.

Em janeiro de 2018, a Amazon recebeu as patentes de uma pulseira que pode rastrear os movimentos do braço de um trabalhador no armazém. Um porta-voz da empresa apresentou a pulseira como um benefício aos associados: “Essa ideia, se implementada no futuro, melhoraria o processo dos nossos associados. Ao movermos o equipamento para o pulso dos associados, estaríamos liberando suas mãos dos escâneres e seus olhos das telas dos computadores”.

Mas segundo James Bloodworth, que trabalhou em um centro de atendimento da Amazon por seis meses e descreveu suas experiências em “Hired: Six Months Undercover in Low-Wage Britain” (2018), o verdadeiro objetivo da empresa não era facilitar a vida dos trabalhadores. “A obsessão toda tinha a ver com produtividade. (…) Eles começaram a tratar os seres humanos como máquinas, essencialmente. Se se mostrar mais barato substituir os humanos por máquinas, suponho que farão”. No armazém da Amazon, a descrição de Weber sobre a “crosta de aço” parece plenamente justificada.

Mas esse é só um lado da história. Para o consumidor, a compra de praticamente tudo via Amazon não deixa de ser mágico. Imagens de milhões de produtos podem ser invocadas em uma tela. Podemos passar horas perdidos em um ambiente virtual de abundância infinita. Uns poucos cliques depois e o produto desejado aparece em nossa porta, como mágica.

Se temos dinheiro, ou pelo menos acesso ao crédito, podemos solicitar quase tudo em qualquer lugar do mundo. Abracadabra.

O processo inteiro de produção – o fornecimento de matéria-prima, a manufatura e produção, o empacotamento e entrega – está invisível ao consumidor, como estão as pessoas envolvidas nesse processo. Tudo o que vemos são imagens de produtos brilhantes finalizados em uma tela, e então os próprios produtos em nossos endereços.

Portanto parece que existem dois lados em nossa economia: um lado racionalizado, desencantado, tipificado por uma eficiência sem coração, e um lado encantado ainda preenchido com objetos carregados e de magia. Na verdade, estes são realmente dois lados de uma mesma moeda. Cada um deles implica o outro.

 

Existem dois lados em nossa economia

Weber argumentava que a religião é o agente original da racionalização, mas também que a racionalização acabaria retirando a religião da esfera pública. Muitos resumos do argumento weberiano param aí, no desencantamento do mundo. Mas Weber também sugeriu que a racionalização produz uma nova forma de encantamento, uma espécie de “politeísmode deuses impessoais, que inclui o Estado e o mercado.

Comecemos com a primeira parte do que ele diz. Weber considera a magia como uma forma primitiva de religião.

As culturas primitivas praticavam a magia para tentar controlar a natureza e mitigar os seus variados perigos; se realizarmos uma certa dança, choverá em nossas lavouras. A magia era isto: mundano – não ético, mas transacional. Ela tentava coagir ou subornar os espíritos que viviam nas coisas materiais.

Há uma espécie de racionalidade nesta troca de favores. No entanto, quando as grandes religiões salvacionistas surgiram na era axial, elas introduziram um tipo novo de racionalização. Os deuses eram agora pessoais e de um outro mundo, transcendendo o mundo material e, assim, as interações com eles assumiram um aspecto ético.

Tais deuses eram universais ao invés de locais, e isso fez surgir a noção de leis estáveis e universais que governam a natureza e a sociedade. Uma ordem social racional era complementada por uma ordem intelectual que respondia à necessidade humana de significado coerente.

As pessoas necessitavam de uma forma de lidar com o sofrimento sem sentido. Portanto as religiões salvacionistas desenvolveram o mito de um salvador e um sistema ético em que os deuses poderiam punir os injustos e recompensar os justos.

Dado que os justos frequentemente sofrem nesta vida, enquanto os injustos muitas vezes prosperam, as explicações foram buscadas do lado de fora do presente mundo. Explicava-se sofrimento presente pelos pecados de uma vida anterior ou pelos ancestrais da pessoa, ou se postulava uma pós-vida para garantir que os culpados fossem punidos e os justos recompensados após a morte.

Para Weber, isso põe as religiões salvacionistas em estado de tensão permanente com o mundo, o que leva à segunda parte de sua discussão: quanto mais a religião torna-se racionalizada, mais ela se torna uma religião de um outro mundo, enquanto as esferas mundanas da política, da economia, da família, do sexo, etc., assumem uma autonomia cada vez maior.
As atividades mundanas como os negócios e a guerra não conseguem satisfazer os altos padrões éticos das grandes religiões salvacionistas; então a pessoa religiosa ou foge do mundo para dentro de um misticismo, ou se torna um asceta mundano, como os puritanos.

De acordo com Weber, os puritanos aceitam a inexistência ulterior de significado deste mundo, mas tentam conseguir a salvação em um diálogo interno com Deus enquanto seguem suas vocações mundanas como homens de negócio. É assim que o protestantismo levou ao capitalismo. Para os puritanos, os sacramentos católicos eram simples magias, tentativas de manipular a Deus. A Reforma varreu do mundo tais ídolos, para que Deus fosse tudo em todos.

Mas remover Deus do mundo material para proteger a santidade divina acabaria levando a um desencantamento de todas as atividades mundanas. Por exemplo, a ciência lida somente com fatos; ela não pode produzir significado. O capitalismo responde a tudo o que o mercado dita; os valores são irrelevantes para ele. A burocracia do Estado busca eficiência; ela não responde à vontade de Deus.

Para muitas pessoas, o que elas conhecem de Weber termina aí, um desencantamento. Mas o próprio Weber deu um terceiro passo, escrevendo não só sobre a ausência do divino no mundo moderno, mas também sobre o “politeísmo”.

Weber estava convencido de que os seres humanos têm uma necessidade elementar por sentido. Para ele, a divisão entre o fato, de um lado, e o significado (ou valor), de outro lado, é tanto uma realidade quanto um sério problema, porque nós ainda urgentemente queremos saber qual o sentido da vida.

Segundo Weber, “A ciência não tem sentido porque não responde à nossa pergunta, a única pergunta para nós: o que devemos fazer e como devemos viver?Weber rejeita a ideia de que podemos retornar à religião; ele considera este caminho como sendo apropriado somente para a pessoa demasiada fraca para encarar “o fato fundamental de que estamos destinados a viver numa época sem deus e sem profetas”.

Mas Weber traduz a pergunta “o que devemos fazer e como devemos viver?” na questão: “Que deuses devemos servir dentre os muitos que (combatem entre si)? Devemos, talvez, servir um outro deus, mas qual?” O politeísmo é uma consequência direta da racionalização.

O divórcio entre o fato e o valor significa que “as esferas de valor do mundo estão em conflito irreconciliável entre si”, sem base factual alguma para adjudicar as declarações rivais. Não há maneira racional de resolver tais conflitos. Devemos dar o passo irracional de simplesmente escolher alguns valores ao invés de outros. Weber escreve:

Vivemos como os antigos, quando o seu mundo ainda não havia sido desencantado de seus deuses e demônios, e apenas vivemos num sentido diferente. Tal como o homem helênico por vezes fazia sacrifícios a Afrodite e outras vezes a Apolo e, acima de tudo, como todos faziam sacrifícios aos deuses da cidade, assim fazemos nós, ainda hoje, tendo apenas a atitude do homem sido desencantada e despida de sua plasticidade mística, mas interiormente autêntica”.

Importa notar aqui que Weber parece não ver diferença entre o comportamento observável das pessoas no mundo antigo e aquele das pessoas no mundo moderno.

Ele continua: “Muitos deuses antigos ascendem de seus túmulos; desencantaram-se e tomaram, por isso, a forma de forças impessoais. Lutam para conseguir poder sobre nossa vida e retomam novamente sua luta eterna entre si”.

Na visão do sociólogo alemão, Apolo foi substituído por forças impessoais como o capitalismo, mas “deuses” não é uma metáfora casual. Como diz Weber: “[Eles] lutam para conseguir poder sobre nossa vida”.

Weber acreditava que o indivíduo tem a liberdade de escolher entre os vários deuses em oferta, mas que esta escolha é feita no contexto de restrições não escolhidas. Os novos deuses que podemos escolher devem combater não somente entre si, mas contra os deuses que não escolhemos. Weber escreve que o ascetismo puritano “contribuiu [com sua parte] para edificar esse poderoso cosmos da ordem econômica moderna ligado aos pressupostos técnicos e econômicos da produção pela máquina, que hoje determina com pressão avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa engrenagem – não só dos economicamente ativos – e talvez continue a determinar até que cesse de queimar a última porção de combustível fóssil”.

O autor conclui que “os bens materiais ganharam um poder crescente e finalmente inexorável sobre as vidas humanas como em nenhum outro período anterior da história”.

No século XIX, figuras como Karl Marx e Friedrich Nietzsche acharam que se relacionar dessa forma com Deus ou deuses levaria à libertação dos seres humanos. A humanidade finalmente tomaria as rédeas de seu próprio destino.

Weber era bem mais pessimista. Ele enfatizava a natureza fragmentada do significado humano no mundo moderno e do poder e da inércia das grandes instituições sociais. Juntos, estes impossibilitam a libertação completa.

Weber parece concordar com Marx e Nietzsche em que inexiste uma ordem pré-dada, que nós humanos criaríamos na medida em que avançamos. Para Weber, no entanto, a proeza técnica humana produz maravilhas que acabam nos dominando. Com diz o monstro ao Dr. Frankenstein: “Você é meu criador, mas eu sou seu mestre – obedeça!

Assim os deuses eliminados pela racionalização retornam sob uma forma diferente para nos governar.

Na esfera política, Weber descreve como os Estados-nação empregam a violência racionalizada para proteger as fronteiras, empurrando os escrúpulos religiosos – como o pacifismo do Sermão da Montanha – para dentro da esfera privada dos valores. Mas a guerra então põe de lado a religião, criando uma forma renovada de devoção ao Estado-nação.

A guerra, escreve Weber, “promove (…) uma comunhão incondicionalmente dedicada e pronta ao sacrifício, entre os combatentes, e libera uma compaixão de massa ativa e um amor pelos que estão sofrendo necessidades. (…) Em geral, a religião só pode mostrar realizações comparáveis nas comunidades heroicas que professam uma ética da fraternidade”.

Weber passa a argumentar que o Estado faz um melhor trabalho do que a religião em dar um significado à morte. Na esfera econômica, o autor descreve o capitalismo como o auge da racionalização, exatamente em sua despersonalização das transações.

O dinheiro é “o elemento mais abstrato e ‘impessoal’ que existe na vida humana”. Weber acrescenta: “Por esse motivo fala-se do governo do ‘capital’ e não dos capitalistas”.

Fazer dinheiro não é mais apenas um meio para servir a vida das pessoas: “O homem é dominado pela produção de dinheiro, pela aquisição encarada como finalidade última da sua vida”.

Em suma, continuamos a servir aos deuses de forma transcendente e irracional, tal qual servíamos aos deuses de antigamente. O sagrado não desapareceu, mas migrou da igreja para o Estado e o mercado

O sagrado não desapareceu, mas migrou da igreja para o Estado

E quanto aos pacotes da Amazon que chegam aos nossos endereços? Pertencem eles ao reino do desencantamento, do materialismo racionalizado? Marx achava que não.

Quando se faz uma mesa para usar, nada há de misterioso. Mas quando ela muda para mercadoria de troca, escreve Marx, “ela se transforma numa coisa sensível (suprassensível)”.

Ela se torna em uma coisa intrincada, “plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos”. Como mercadorias, as coisas flutuam livremente desde as condições materiais de produção até suas propriedades metafísicas como valores de uso:

Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias”.

Por fetichismo, Marx quer dizer mais do que a obsessão humana pelas coisas materiais. Ele quer dizer que as coisas materiais se tornam encantadas e assumem vida própria.

Quando um objeto transforma-se em mercadoria, o seu valor depende não da utilidade que tem, mas daquilo pelo qual pode ser trocado.

Um exemplo contemporâneo: apesar da fome generalizada, agricultores despejam leite fora e o governo estoca queijo visando manter o preço dos laticínios. O que importa é o valor de troca – o preço –, não o valor de uso.

O queijo não é primordialmente um alimento para as pessoas consumirem, mas uma mercadoria a ser trocada por dinheiro. Porque o valor dele é expresso relativamente a outras mercadorias, diz Marx, as mercadorias estabelecem as relações sociais entre elas.

E na medida em que as mercadorias ganham vida própria, a vida é canalizada para longe das pessoas reais. Os famintos não contam no mercado, a menos que tenham dinheiro; e os trabalhadores são considerados como “custos de mão de obra”, que precisam ser minimizados. A mercadorização também esconde as condições de trabalho.

Tudo o que o consumidor enxerga na loja ou no sítio eletrônico da Amazon é a mercadoria e seu preço. É preciso um esforço herculano para descobrir as pessoas que de fato fizeram o produto e o entregaram, e as condições nas quais trabalharam.

Antes da Revolução Industrial, as pessoas produziam quase tudo que possuíam em suas casas, e aquilo que não faziam era normalmente feito por pessoas conhecidas. As coisas estavam estreitamente ligadas a seus produtores e ao valor de uso.

Hoje fazemos quase nada por nós mesmos, e compramos quase tudo que usamos. É difícil avaliar a mudança que isso significa na maneira como nos relacionamos com o mundo material e com os outros.

Quando o volume enorme de coisas no mundo deu um passo quântico no século XIX por causa da produção em massa, as pessoas precisaram ser ensinadas, como dizia um manual publicitário em 1901, segundo o qual “as pessoas têm desejos que elas não reconheciam antes”.

Se olharmos para a história da publicidade, veremos como as mercadorias partiram do mundo material e entraram para o reino da transcendência.

No século XIX, a publicidade era grandemente informativa: Você pode comprar sapatos na loja de John H. Johnson.

No começo do século XX, a publicidade havia se tornado mais persuasiva do que informativa, mas ainda mantinha uma relação estreita com o produto físico. Um comercial poderia mostrar a foto de um sapato e, então, descrever suas virtudes. O objetivo era convencer o leitor de que o produto é um calçado confortável, com um preço razoável, bem produzido e estiloso.

Uma propaganda assim recorreria tanto ao sentido racional de valor de uso por parte do consumidor – os calçados seriam fáceis de pôr e não cairiam dos pés com facilidade – e também ao sentido mais intangível de moda dos compradores, de serem reconhecidos pelos demais como estilosos e como se tendo um bom senso para adquirir uma marca respeitável.

Em meados do século XX, houve uma mudança que se distanciou ainda mais do valor de uso e no sentido das aspirações mais intangíveis e espirituais dos consumidores por liberdade, sexo, prestígio, reconhecimento, e outras formas de transcendência.

Um sapato ainda apareceria no comercial de sapatos, mas não haveria mais menção alguma a seu valor de uso.

Com efeito, poderia não haver menção alguma ao próprio sapato. Sob a influência de Freud, Pavlov e outros psicólogos, os publicitários começaram a apelar não ao eu consciente, mas ao subconsciente. Tais comerciais não mentiam, porque não faziam nenhuma afirmação explícita. Simplesmente associavam uma mercadoria física com aspirações não físicas.

Como nos experimentos de Pavlov com cães, duas coisas completamente diferentes – carne e um sino, dominação e vestir calçados – eram associadas no subconsciente.

E da mesma forma como Pavlov teria usado um apito em lugar de um sino, o sexo podia facilmente ser associado a carros ou um xampu, um refrigerante ou calçados. Os objetos materiais reais começaram a importar menos do que o mundo fantástico associado a eles.

Na medida em que o consumismo se tornava uma aspiração, a marca passou a ter mais importância do que os objetos materiais. A partir da década de 1940, as empresas começaram a explorar aquilo que as marcas significam para uma cultura e para a vida das pessoas. Cada vez mais, as marcas se tornavam meios de marcar a identidade individual.

Profissionais de marketing corporativo como Bruce Barton passaram a buscar com que as empresas descobrissem a sua “alma”.

Cada vez mais as empresas usariam uma linguagem teológica para se descrever. Como disse certa vez um gerente empresarial: “Na realidade, as marcas corporativas têm a ver com a gestão de crenças em nível mundial”.

No começo do século XX, o produto real desapareceria completamente. Um recente comercial da Nike nada mostra senão o seu logotipo e as palavras: “Escreva o futuro”. Hoje, as principais empresas preocupam-se mais com a produção de marcas do que com a produção de produtos. Fazem-se os produtos na fábrica; fazem-se as marcas na mente.

De acordo com Naomi Klein, o momento-chave veio em 1988, quando a Philip Morris adquiriu não a empresa Kraft, mas a marca Kraft por U$ 12,6 bilhões.

No livro Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido, Klein escreve: “No novo mercado (...) o produto sempre assume uma posição secundária em relação ao produto real, a marca, e a venda da marca adquiria um componente extra que só se pode ser descrito como espiritual. As marcas, em sua encarnação mais verdadeira e avançada, têm a ver com a transcendência empresarial”. Pesquisas empíricas corroboram o que Klein diz.

Numa série de estudos publicados sob o título “Brands: The Opiate of the Nonreligious Masses?”, na revista Marketing Science, pesquisadores dos EUA e de Israel descobriram que os sujeitos com fortes laços religiosos tradicionais eram muito menos propensos a escolher marcas de nome para produtos que são usados como uma forma de autoexpressão. Os autores concluem que a lealdade a uma marca funciona como um substituto para a religião tradicional.

O fetichismo da mercadoria não é meramente uma obsessão com as coisas. Não se trata de um materialismo, e sim uma forma de desmaterialização. Quando o uso toma um lugar secundário à troca, as mercadorias se transformam em veículos para um voo em direção à transcendência.

 

As mercadorias ganham vida

Todos estes temas podem ser encontrados na crítica bíblica da idolatria. Tendemos a evitar as críticas da idolatria porque elas parecem intolerantes: “Não adoras como adoramos, és portanto um idólatra”.

E, todavia, o conceito de idolatria parece capturar algo importante a respeito do cenário contemporâneo. Muito embora seja conhecido pelo seu otimismo e amor por todos, o Papa Francisco frequentemente recorre à linguagem da idolatria.

Na sua primeira encíclica Lumen Fidei, ele afirma que o oposto da fé não é uma simples falta de crença, mas idolatria.

Quando alguém deixa de crer em Deus, a pessoa não apenas deixa de acreditar; pelo contrário, passa a acreditar em todo o tipo de coisa. Francisco descreve isso como um “movimento sem meta de um senhor para outro. (...) Quem não quer confiar-se a Deus, deve ouvir as vozes dos muitos ídolos que lhe gritam: ‘Confia-te a mim!’”. Francisco tem usado a linguagem da idolatria quando descreve o sistema econômico contemporâneo.

Em Evangelii Gaudium, declara: “Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo [na versão inglesa, ‘idolatria’] do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano”.

Conforme Francisco emprega o termo, a idolatria aqui não se refere à adoração explícita de deuses com nomes próprios.

Embora muitas vezes use o termo nesse sentido – por exemplo, em sua descrição dos sacrifícios ao deus Baal –, a Bíblia trata a idolatria principalmente como uma questão de comportamento, não de crença. A idolatria é considerada não exatamente como um erro metafísico, mas uma traição da lealdade ao Deus de Israel. Por essa razão, as principais imagens bíblicas para a idolatria são o adultério e a deslealdade política.

A imagem do adultério exemplifica-se com a história de Oseias, que é instruído a se casar com uma prostituta para simbolizar os flertes de Israel com outros deuses.

A imagem política exemplifica-se com 1 Samuel 8, quando os israelitas pedem que um rei reine sobre eles. Deus diz a Samuel: “Atenda a voz do povo em tudo o que eles pedirem, pois não é a você que eles estão rejeitando, mas a mim; não querem mais que eu reine sobre eles. Assim como eles têm feito desde o dia em que os tirei do Egito até hoje, abandonando-me e servindo outros deuses” (1 Samuel 8,7-8). Ainda que o rei não seja adorado explicitamente como um deus, os israelitas confiaram no rei e não em Deus para que os protegessem, e isso é idolatria.

Observemos, entretanto, que Deus permite que Israel tenha reis desde que eles não o substituam. Em sentido geral, a idolatria é quando as pessoas dão uma quantidade “inordinada” de confiança ou lealdade a algo outro que não Deus. Por exemplo, Isaías acusa os israelitas de idolatria por colocarem a confiança em uma aliança com o exército egípcio.

Ai daqueles que vão até o Egito em busca de ajuda e procuram apoio nos cavalos. Eles confiam nos carros porque são numerosos e nos cavaleiros porque são muito fortes, em vez de levar em consideração o Santo de Israel, em vez de consultar a Javé” (Isaías 31,1). Isaías associa este afastamento para com Deus à confiança idolátrica naquilo que se cria ao invés de se confiar no Criador: “O egípcio é um homem e não um deus, seus cavalos são carne e não espírito” (Isaías 31,3). Na visão bíblica, qualquer coisa criada pode ser um objeto de idolatria.

Assim, Paulo critica aqueles cujo “o deus deles é o ventre (...) e seus pensamentos em coisas da terra” (Filipenses 3,19), e adverte contra a “cobiça de possuir, que é uma idolatria” (Colossenses 3,5).

A ideia de Weber e Marx de que nos tornamos dominados pelas nossas próprias criações está embutida na crítica bíblica da idolatria.

Em 1 Samuel 8, quando o povo pede um rei para substituir a Deus, Samuel adverte-os de que o rei levará os seus filhos para o exército e suas filhas as tomará como servas, confiscará suas terras, cultivos e animais para o seu próprio benefício, e finalmente “vocês mesmos serão transformados em escravos dele. Quando isso acontecer, vocês se queixarão do rei que escolheram. Nesse dia, porém, Javé não dará nenhuma reposta a vocês” (1 Samuel 8,17-18).

Dessa forma, Jesus conta com uma longa tradição da idolatria como dominação ao alertar: “Vocês não podem servir a Deus e às riquezas” (Mateus 6,24). As escrituras gregas deixam aqui sem tradução o termo aramaico “mamon” para personificar o dinheiro como um deus, um deus que demanda serviço.

A ideia em Weber e Marx de que objetos inanimados se tornam vivos ao tomar a vida de nós também se encontra primeiramente na Bíblia.

O Salmo 115 diz: “Os ídolos deles são prata e ouro, obras de mãos humanas: têm boca e não falam, têm olhos e não veem (...) Aqueles que os fazem ficam como eles, todos aqueles que neles confiam!

A preocupação bíblica com a idolatria implica que os humanos são criaturas espontaneamente adoradoras. Em Êxodo, os israelitas conseguiram ficar somente um pouco menos que seis semanas com a ausência de Moisés antes de demandarem novos deuses para adorar: “Quando o povo notou que Moisés estava demorando para descer da montanha, reuniu-se em torno de Aarão, e lhe disse: ‘Vamos! Faça para nós um deus que caminhe à nossa frente’” (Êxodo 32,1).

O relato do bezerro de ouro não é apenas um relato da capacidade humana de se enganar, mas também da necessidade humana inerente de adorar. Este reconhecimento permite uma descrição simpática da idolatria. Quando Paulo está em Atenas, o Livro de Atos informa que ele “ficou revoltado ao ver a cidade cheia de ídolos” (Atos 17,16). Mas ele também reconhece a idolatria dos atenienses como prova de que estão em busca de sentido e, em última instância, do verdadeiro Deus.

Weber explica a necessidade básica humana de adorar em termos da necessidade de significado, uma necessidade que nos leva inevitavelmente a fazer deuses. Ele é pessimista na ideia de que podemos superar esta situação. Por outro lado, Marx está convencido de que as pessoas cessarão de fazer deuses após a revolução.

Uma vez que os trabalhadores controlarem os meios de produção, o trabalho não mais estará alienado de seus próprios produtos. Mas a revolução veio e fez do Estado comunista um novo deus, ao qual dezenas de milhões de vidas foram sacrificadas. Diferentemente de Weber e Marx, a Bíblia insiste que existe um Deus real, diferente de todos os deuses fabricados.

Não precisamos criar deuses porque existe um Deus que nos criou, um Deus que nos ama e que quer que construamos um reino de paz e justiça aqui na terra.

Em seu famoso discurso de 2005 proferido na Kenyon College, o romancista David Foster Wallace contou aos formandos: “Nas trincheiras diárias da vida adulta, inexiste isso que se chama ateísmo. Não há essa coisa de não adorar. Todo mundo adora. A única escolha que temos é o que adorar”. Wallace passa então a dizer que o motivo que podemos ter para adorar um Deus verdadeiro é que “praticamente todo o resto que adoramos irá nos devorar vivos”.

Adoremos o dinheiro, e jamais teremos o suficiente. Adoremos o nosso corpo, e sempre nos sentiremos feios. Adoremos o poder, e sempre estaremos receosos. E assim por diante.

Como intuem Weber, Marx e a Bíblia, evitar a idolatria não é tão simples quanto fazer uma escolha pessoal para mudar as nossas atitudes de adoração.

A idolatria está inserida nos sistemas econômicos, sociais e políticos inteiros que nos prendem. Em um sistema injusto, somos todos idólatras e é preciso haver uma transformação sistêmica para libertar as pessoas da falta de adoração.

Se não existe o Deus verdadeiro, essa tarefa parece impossível. Mas como diz Jesus aos discípulos: “Para os homens isso é impossível, mas para Deus tudo é possível” (Mateus 19,26).

 

Referências usadas pelo tradutor: 

BÍBLIA SAGRADA: Edição Pastoral. São. Paulo: Paulus, 1990.

KLEIN, Naomi. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2002.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2008.

MARX, Karl. O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.

MAX, Weber. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. 6. reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

PAPA FRANCISCO. Carta encíclica Lumen Fidei do sumo pontífice Francisco aos bispos (…). Disponível aqui. Acesso em: 9 jan. 2020.

PAPA FRANCISCO. Exortação apostólica Evangelii Gaudium do Santo Padre Francisco ao episcopado (…). Disponível aqui. Acesso em: 9 jan. 2020.

WEBER, Max. A ciência como vocação". In: Gerth, H.; MILLS, C.W. From Max to Weber. Nova York: Free Press, 1946.

WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982.

WEBER, Max. A ciência como vocação. In: WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. p. 154-83.

 

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