08 Janeiro 2020
Com licença, desculpe a invasão... "Fique a vontade, sente-se". Ainda é cedo, mas Silvano já está deitado em sua cama, em um quarto no terceiro andar, do cobertor emergem um tufo de cabelos ralos e um bigode esticado em um sorriso plácido. Ele está lendo à luz da mesinha de cabeceira, blusão e calça apoiados no aquecedor embaixo da janela, do outro lado do vidro a vista a Colunata do Bernini, um vai-vem de pessoas que indo ver o presépio na praça São Pedro. "Lindo, hein? Imagine você que eu costumava passar a noite embaixo das arcadas, em frente à livraria. Aquele foi o meu lugar por oito anos. Úmido e frio, como esta noite. Mas agora acabei de tomar um banho quente e amanhã de manhã vou descer para tomar o café da manhã, imagine como estou feliz, o que poderia querer mais?”.
A reportagem é de Gian Guido Vecchi, publicada por Corriere della Sera, 07-01-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Bem-vindos ao Palazzo Migliori, o nome da família que a construiu no final do século XVIII e que em 1930 doou a nobre residência à Santa Sé. Até um ano atrás abrigava um alojamento para mães solteiras das freiras calasanzianas, que agora se mudaram para outro lugar. O edifício permaneceu vazio, com seus forros de madeira em caixotes, paredes com afrescos, pisos policromos. Um palácio muito cobiçado, na avenida dos Alicorni 28, um dos locais mais bonitos do mundo.
Área extraterritorial, estado do Vaticano. Do terraço, além da Colunata, podem ser admiradas a praça, o Palácio Apostólico e a Basílica, dando a sensação que é só esticar a mão para tocar a Cúpula de Michelangelo. Parecia destinado a se tornar um hotel de luxo, mas o Papa Francisco decidiu o contrário e o doou aos mais pobres através da Esmolaria apostólica, confiando sua administração à Comunidade de Santo Egídio. Se alguém disser que uma vista semelhante, em Roma, só o papa tem, Silvano sacode a mão com tranquilidade: "Eu já almocei quatro vezes com o Papa, graças ao padre Corrado!". "Padre Corrado" seria o cardeal polonês Konrad Krajewski, o Esmoleiro de Francisco que percorre Roma à noite com comida e cobertores, e todos os clochards da cidade o cumprimentam. Toda terça-feira ele vem aqui com os voluntários e, na cozinha do Palácio, prepara a comida quente que à noite leva aos sem-teto em torno das estações Termini e Tiburtina: a chamam de "a sopa do Papa", contém todos os tipos de legumes frescos. "Você viu como o Palácio é lindo, hein?"
O cardeal fala ao Corriere como se fosse uma coisa normal: “Mas é normal! Quando você está apaixonado, o que o faz? Tenta encontrar e presentear com as flores mais bonitas do mundo. Queremos fazer o mesmo com os pobres. E isso é o Evangelho puro. Através da beleza queremos restituir-lhes a dignidade”. Como quando reuniu os clochards em torno de São Pedro e os levou para ver os afrescos de Michelangelo ... “Sim, é a mesma coisa, com uma diferença: a Capela Sistina pode ser admirada por um dia, mas aqui é uma questão de viver, de retornar a uma existência normal, inclusive através de um lugar como este. O Santo Padre mora em um quarto de hotel em Santa Marta e oferece aos pobres um palácio, um verdadeiro palácio. Quando um novo hóspede entra, ele às vezes olha à sua volta e hesita, tem medo de ter-se enganado! Isso significa restituir a dignidade”.
Hoje à noite, estão hospedadas vinte e cinco pessoas, estrangeiros e italianos, "a capacidade é de cerca de trinta, mas estamos nos preparando para receber mais nos dias de emergência pelo frio", explica Carlo Santoro, 57 anos, enquanto circula pelos quartos no terceiro e quarto andares para verificar se os aquecedores estão funcionando corretamente. Ele é funcionário do Palazzo Chigi, faz parte da secretaria do Comitê Nacional de Bioética. "Depois que encerro meu expediente, tiro a gravata e venho para cá", explica sorrindo. Está na comunidade de Santo Egídio desde garoto, "lembro que em 1984 a gente vinha aqui para distribuir sanduíches", e ele é quem dirige o palácio: "O chamamos assim por vontade do Papa. Não quer ser um dormitório - conseguimos trazer para cá pessoas que diziam: eu nunca colocaria os pés em um dormitório, mas em uma casa para quem não tem casa. Uma casa linda, muito linda. Francisco nos disse quando chegou para inaugurá-lo: a beleza cura”. Quartos separados, com duas ou três camas, no máximo quatro. Treze novos banheiros, cada um com um chuveiro. Paredes recém pintadas. Máquinas de lavar. Elevador. E o refeitório no segundo andar, não um salão, mas várias salas com poucas mesas perto da grande cozinha. Em alguns meses, conseguiram ajeitar o palácio a tempo para a estação fria.
Nas paredes, pinturas e obras doadas ao longo dos anos ao Papa e que Francisco doou ao palácio. Tudo se mantém graças a doações. “Em primeiro lugar, cuidamos de dar-lhes uma casa. No futuro, queremos abrir um centro diurno no térreo e no primeiro andar”. Já estão sendo preparados as salas com televisões, computadores, livros, jornais.
Tem uma capela para a oração. O diretor sobe para cumprimentar os convidados que estão jantando, "pela manhã, tomamos café da manhã das sete às oito, à noite jantamos a partir das 19", ele os cumprimenta um por um, pergunta sobre as diversas necessidades. Uma voluntária passa, Maria Grazia, "Carlo, você sabe se Elena tomou o antibiótico?". Elena é uma das hóspedes mais velhas, 76 anos e a voluntária é médica, as pessoas de Santo Egídio dedicam aos pobres e idosos as horas livres de trabalho.
"O essencial é o acompanhamento pessoal, cuidando de cada um", explica Santoro. “Muitos descobriram que estavam doentes, até graves, e não sabiam disso. Gostaríamos que este fosse um local de passagem, para ajudar as pessoas a transitar para uma nova vida, se reerguerem e encontrarem uma situação estável, um emprego”.
Quem morou nas ruas não gosta de falar sobre sua história. É para esquecê-la que acabou na calçada. Fragmentos de confidências compõem vislumbres de vidas destruídas pela dor. Antes da perda do trabalho ou do colapso econômico, existem separações, luto, pais, maridos, esposas ou filhos que de repente deixam o vazio. Muitos homens nunca se recuperaram da morte da própria mãe. Muitos se tornaram alcoolistas. "Há algum tempo, nas ruas, encontramos cada vez mais mulheres".
Acolher, acompanhar, oferecer outra possibilidade. Entre os muitos voluntários de Santo Egídio, o único funcionário com salário é Marco, o zelador, que cuida um pouco de tudo e fica também durante a noite. Na entrada do palácio, tem uma foto mais antiga, que mostra o almoço para os sem-teto que a Comunidade organiza todo Natal, desde 1982 em Santa Maria in Trastevere, e entre os hóspedes daquele almoço agora já tão distante, ele também pode ser visto.
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Os nobres moradores de rua encontram morada no palácio do papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU