11 Dezembro 2019
Senhores a quem entregamos a riqueza de nossos dados. Programas e objetos “encantados” que comandam nossas vidas. O conhecimento comum controlado, como na Inquisição. “Novas” tecnologias ameaçam conjurar vasto retrocesso.
O artigo é de por Max Read, publicado por New York Magazine e reproduzido por Outras Palavras, 09/12/2019. A tradução é de Antonio Martins.
No final de agosto, um barco de velas pretas apareceu no porto, carregando uma visionária de 16 anos, uma garota que navegara do norte distante através de um grande oceano. Uma multidão de moradores e viajantes, encantados por suas profecias, reuniu-se para lhe dar boas vindas. Ela viera para falar às nações da Terra, para advertir-nos de nossas vaidades e da catástrofe que se aproxima. “Havia quatro gerações saudando-a e dizendo, em cânticos, que a amavam”, observou o escritor Dean Kissick. “Quando ela pisou em terra, pareceu algo messiânico”.
Não posso ter sido a única pessoa a sentir que estava vivendo, estranhamente, nas páginas de um épico fantástico, no momento em que Greta Thunberg desceu em Nova York. Durante a maior parte de minha vida, o paradigma para imaginar o futuro foi a ficção científica distópica. Em cada foto de uma cidade reluzente de neon, em cada história de ciberguerra sem regras e limites, refletiam-se as visões ultramodernas e hipercapitalistas de escritores cyberpunk como Wiliam Gibson, cujo trabalho foi tão influente que moldou a forma como os primeiros arquitetos da internet compreenderam sua criação. Mas onde se encaixaria, no futuro noir e high-tech que me ensinaram a esperar, uma menina profetisa navegando do norte gelado para confrontar os reis e rainhas do planeta? Que conto de ciber intriga corporativa incluiria uma visionária liderando um exército de crianças em marchas pelo globo?
Refletindo depois, percebi que a história lembra menos o futuro cyberpunk de Gibson que o passado fantástico de J.R.R. Tolkien; menos tecnologia e cibernética que mágica e apocalipse. A internet não parece estar nos transformando em sofisticados ciborgues, e sim em camponeses medievais rudes, extasiados por um sempre presente reino de espíritos e cativos de senhores autocráticos e distantes. E se não estivermos sendo impulsionados rumo a um futuro cyberpunk, e sim atirados em algum passado pré-moderno fantástico?
Em minha própria vida quotidiana, eu já me relaciono constantemente com forças mágicas ao mesmo tempo sinistras e benevolentes. Observo de longe, através do cristal, os movimentos de meus inimigos. (Ou seja, eu odeio-e-sigo pessoas no Instagram ou Facebook). Leio histórias sobre símbolos amaldiçoados tão poderosos que tornam incomunicativo qualquer um que os contemple (Ou seja, glifos Unicode que paralisam seu iPhone). Recuso-me a escrever os nomes de inimigos míticos por temer trazê-los a minha presença, assim como os membros de tribos proto-germânicas usavam o termo eufemístico marrom, em vem de urso, para não invocar um deles. (Ou seja, intencionalmente altero palavras como Gamergate quando as escrevo). Realizo rituais supersticiosos para obter a aprovação dos demônios (Ou seja, daemons, os programas autônomos de retaguarda sobre os quais a computação moderna se desenvolve).
Esta estranha dança de rituais e superstições irá se tornar ainda mais intensa na próxima década. Graças a smartphones ubíquos e ao cellular data, a internet tornou-se uma espécie de camada sobrenatural instalada no topo de vida quotidiana, um reino facilmente acessível de poder temível, visões febris e batalhas espirituais apocalípticas. O medievalista Richard Wunderli descreveu o mundo dos camponeses do século XV como algo “encantado” – “limitado apenas por uma barreira translúcida e porosa, que levava ao reino mais poderoso dos espíritos, demônios, anjos e santos”. Não soa tão diferente de um mundo em que barreiras literalmente translúcidas separam-nos dos trolls, demônios e ícones pop-star a cujas menções no Twitter, e comentários no Instagram, eu deveria fazer uma peregrinação quase religiosa.
A estrutura da internet aponta para um arranjo que Bruce Schneider, um especialista em cibersegurança, chama de “feudalismo digital”. Por meio dele, os grandes proprietários – plataformas como o Google e o Facebook – estão se tornando nossos senhores feudais, e estamos nos reduzindo a seus vassalos. “Nós vamos abastecê-los com o dados que emanam de nossa navegação, em troca de vaga proteção contra saqueadores que buscam brechas de segurança”. O senso de impotência que podemos sentir diante da justiça algorítmica opaca das megaplataformas – e o senso de mistério que tais mecanismos deveriam engendrar – não teriam parecido estranhos para um camponês medieval. (Uma vez que você tenha explicado, é claro, o que significa um algoritmo).
E à medida em que a internet enfeitice cada vez mais objetos – “smart” TVs, “smart” fornos, “smart” alto-falantes, “smart” vibradores – sua lógica feudal abarcará também o mundo material. Você não possui mais o programa de seu telefone, assim como um camponês não possuía seu lote de terra. E quando seu carro ou fechadura de casa forem igualmente encantados, um senhor distante poderá expulsá-lo fácil e arbitrariamente. Os robôs de assistência ao consumidor aos quais você entregou seu caso serão tão impiedosos e incapazes de perdão como um xerife medieval. Izabella Kaminska sugere, no Financial Times, que no âmbito do controle quase feudal do capitalismo de compartilhamento por seus contratantes, há “potencial para o retorno da estrutura de guildas”. Motoristas de aplicativos, por exemplo, podem, em algum momento, criar um corpo independente credenciador, para garantir a portabilidade dos dados e da reputação entre as “fronteiras” dos “senhores” (ou seja, Uber, 99 ou Lyft), assim como os artesãos usavam o pertencimento a uma guilda como credenciais, no início do milênio passado.
Para onde esta camada de mágica, carregada espiritualmente e organizada à moda feudal, levaria nossa política e cultura? Poderíamos olhar para governantes como Donald Trump, que manejam o poder como um rei absolutista ou um papa caviloso e que fala, como diversos observadores notaram, como um herói grego ou um senhor de guerra anglo-saxão. Ou seja, no estilo fanfarrão e altamente repetitivo da poesia época, característica das culturas orais.
Paradoxalmente, o caráter efêmero e a densidade rala dos textos nas mídias sociais estão recriando as circunstâncias de uma sociedade pré-letrada: um mundo em que a informação é rapidamente esquecida e nada pode ser facilmente consultado. (Como os monges medievais copiando Aristótoles, o Google e o Facebook coletarão e ordenarão o conhecimento do mundo; como a igreja católica medieval, controlarão rigorosamente sua apresentação e acessibilidade). Sob tais condições, a memorabilidade e a concisão – as mesmas qualidades que podem fazer alguém hábil no Twitter – serão mais valorizadas que a força do argumento; e líderes políticos bem-sucedidos, para os quais a verdade factual é menos importante que a perpétua repetição de um mito duradouro, focarão no auto-engrandecimento repetitivo.
Tudo isso, é claro, ocorrerá diante de um pano de fundo de desastre: um mundo natural volátil, em ruínas, estranho e imprevisível em sua força e violência. Está ficando cada vez mais difícil prever o tempo, e os efeitos da mudança climática atiraram no território das dúvidas o vasto conhecimento que tornava o mundo familiar e governável. A natureza aparece para nós como tempestades aniquiladoras, incêndios furiosos, enchentes épicas, uma manifestação literal de nossos pecados terrestres. Presos numa cena pré-letramento, governados por ilusionistas e nepotistas, cativos de senhores feudais, circundados por ritual e magia – é de surpreender que nos voltemos a uma garota visionária, para nos salvar do apocalipse que se aproxima?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A deriva medieval da Internet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU