25 Setembro 2019
"Fixemo-nos menos numa crítica fácil de Bolsonaro e sua trupe, para costurar, numa urgência histórica inadiável, um dique democrático que nos livre do autoritarismo. Este parece querer destruir um trabalho de décadas na construção da nação. Não enfrentá-lo com valentia é uma falha pela qual as atuais gerações seremos irremediavelmente julgadas", escreve Luiz Alberto Gomez de Souza, sociólogo.
Bolsonaro, provinciano limitado, dá pouca importância para a arena internacional. Em sua fala na ONU, suas ideias rudes, agressivas e extemporâneas sobre socialismo ou ideologia, foram rapidamente vistas pela grande imprensa internacional como a fala de um dirigente primário e grotesco. Seu texto falseou dados sobre desmatamento e sobre uma derrocada econômica evidente, com a utilização grosseira de uma índia desmascarada logo depois por sua própria comunidade. Críticos diziam, antes do discurso, que ele daria um vexame internacional. E depois, já no passado, repetiam o mesmo chavão. Aliás, vexame quando, numa assembléia da ONU que o ouviu calada, onde ninguém aparentemente se retirou, com uma parte, ainda que pequena, aplaudindo timidamente ao final? Vimos um dirigente nacional – pobre Brasil - soletrar num teleprompter com dificuldade, sem entonação, como quem está aprendendo a ler. Mostrar ao cansaço quem é Bolsonaro e repetir críticas óbvias será ficar num terreno fácil e que distrai do essencial. A imprensa internacional chamou o discurso na ONU de “calamitoso”. Isso era mais do que esperado. Ficar na discussão nesse nível é permanecer em generalidades e chover no molhado.
Sua tribuna está voltada para seus seguidores no país. E quanto mais criticado lá fora, mais aparece aqui como uma vítima. Essa construção vitimista foi sendo preparada desde a misteriosa e salvadora facada em Juiz de Fora, que o livrou de participar de um debate onde mostraria uma cabeça oca e vazia de ideias. A alternativa foram agressões violentas, acalentadas pela mente doentia de Olavo de Carvalho. Assim sempre agiram os fascismos. Hitler vociferava para um público alemão abestado, embora no exterior “O Grande Ditador” de Chaplin mostrasse um líder ensandecido. Os trejeitos de Mussolini, que pareciam ridículos vistos fora da Itália, dentro empolgavam seus seguidores.
Perde-se tempo apontando falsidades totalmente previsíveis no discurso de Bolsonaro na ONU. Para seus asseclas, as críticas externas são provas de que há uma conspiração antinacional contra o líder e que é preciso sair na defesa de uma soberania ameaçada. Quanto mais críticas, maior a adesão irracional. “Batam, que isso nos fortalece”, parece-nos ouvir o truculento Carluxo.
Simplificando um pouco, o Brasil está dividido em três porções. Isso vimos acontecer, aliás, no Chile de 1970. A grande e terrível pergunta é saber por que um setor significativo de brasileiros, talvez ainda um terço, o apóia incondicionalmente. A tecla patrioteira e fanática fortalece a imagem de um líder valente em luta contra todos. Lembro, em minha infância, de um velho filme de Tarzan nessa direção (Tarzan contra o mundo).
Certamente outro terço que também votou nele está, aos poucos, em níveis diversos, perplexo ou até arrependido. Esse último é o setor da sociedade com que as forças progressistas têm de dialogar. Mas para isso há que superar um clichê antipetista e anti-Lula fortemente presente na sociedade, construído cuidadosamente nas redes sociais e por um trabalho infatigável em meios de comunicação. Ali, no centro, encontramos as organizações Globo. Bolsonaro despreza estas últimas e se rodeia das TVs rivais. Mas aquelas, como sabujos que seguem abanando o rabo, estiveram e ainda estão apoiando seu governo, um pouco desconfortáveis, termo repetido por um de seus dóceis analistas, porém seguindo fielmente orientações dos poderes a que servem. Assim, muitos dos votos bolsonarescos foram ganhos por uma propaganda permanente e insidiosa. Votaram mais contra o PT do que por Bolsonaro. Como remontar esse obstáculo?
O terço seguinte das forças progressistas, nacionais, populares e democráticas, vai além dos muros das esquerdas tradicionais e isso exige delas abrir-se a um acordo ainda mais amplo. Esquecemos que, com “a carta ao povo brasileiro”, uma aliança foi costurada, depois de três derrotas consecutivas do PT, permitindo enfim a vitória de Lula e de Dilma em 2002, 2006, 2010 e 2014, com apoios no centro, onde encontramos os indefectíveis PMDB, Sarneys, Malufs, Calheiros e o sempre presente Temer. Hoje, trata-se, na maior urgência, de um acordo de “salvação pública”, no momento em que Guedes e companhia entregam o pré-sal e querem privatizar a rodo. Atos de traição que mereceriam a cárcere e seus autores serem apontados como criminosos entreguistas.
Difícil uma aliança bastante ampla? Os setores políticos e sociais democráticos terão a grandeza para tal? Brizola deu um exemplo notável quando, em 1989, no primeiro turno das eleições, ficou atrás por pequena diferença daquele que chamara de “sapo barbudo”: 17,18% Lula, 16,51% Brizola. Este último então, num gesto patriota, descarregou seus votos no adversário da véspera (Lula subiu a 46,97, mesmo assim ficando atrás de Collor). Um exemplo extremo, lembrado na notável entrevista de Flávio Dino no Roda Viva de 23 de setembro, foi a frente ampla surpreendente de Lacerda, Jango e Juscelino, diante de um poder militar que se instalava sem prazos. Desencontros entre Lula e Ciro Gomes? Mágoas de Marina Silva? Eles e outros líderes passarão por um teste de desprendimento ou então de pequenez. E o futuro, implacável, os julgará.
Fixemo-nos menos numa crítica fácil de Bolsonaro e sua trupe, para costurar, numa urgência histórica inadiável, um dique democrático que nos livre do autoritarismo. Este parece querer destruir um trabalho de décadas na construção da nação. Não enfrentá-lo com valentia é uma falha pela qual as atuais gerações seremos irremediavelmente julgadas.
Vários de nós temos assinalado gestos crescentes e alentadores nesta direção, de lideranças como Luiza Erundina, Fernando Haddad, Guilherme Boulos, Alessandro Molon, vários outros e esse extraordinário Flávio Dino, a meu ver o mais lúcido e articulado político em nossos dias.
Em sua atuação no Roda Viva acima referido, o governador Dino, num plano bem acima de convidados raivosos e toscos, foi preciso, profundo e claro. Com poucas e esclarecedoras palavras, traçou com precisão um programa econômico oposto ao entreguismo de Guedes e botou, com elegância, num chinelo justo, um Moro que, aliás, superara tempos atrás em concurso jurídico. Um raro momento de alegria e de esperança em meio a tantas mediocridades circundantes. Nota dez, com seu sorriso simpático, aberto e confiante no futuro.
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Bolsonaro falou na ONU para seu público interno. E, diante do perigo autoritário, vem a urgência em construir uma barreira democrática - Instituto Humanitas Unisinos - IHU