08 Agosto 2019
No MT, a coleta de sementes é fundamental para repor áreas devastadas do Xingu ao Araguaia. Encabeçada pelo Movimento das Mulheres Yarang, atividade gera renda e resultou no plantio de cerca de 1 milhão de árvores em dez anos.
A reportagem é de Roberto Almeida, publicada por Instituto Socioambiental, 06-08-2019.
Nas trilhas, unidas como formigas cortadeiras: o trabalho em conjunto é a marca das mulheres Yarang, que coletam sementes para reflorestar a bacia do rio Xingu. (Foto: Carol Quintanilha)
Mulheres e jovens enfileiradas saem em caminhada da aldeia Arayó. A tiracolo levam cestos, facões, beijus, água, crianças pequenas. O passo é tranquilo, pressa para quê, mesmo com o sol de fim de maio torrando a poeira da pista de pouso do pólo Pavuru, Território Indígena do Xingu (MT).
A conversa entre elas é constante. O assunto: sementes.
Quais vamos coletar? Onde? Uma trilha à esquerda e a mata se encerra, abrindo frestas só para roças de mandioca, cercadas contra ataques de porcos do mato. Por ali ficava a antiga aldeia Moygu, abandonada em 2011. Pequizeiros enormes vibram com a brisa na luz da manhã.
Meio caminho andado e uma criança aponta para um pequeno buraco no chão da trilha. Em um instante, ela traz, grande e potente, uma formiga cortadeira que parece entorpecida entre seus dedos. Na língua Ikpeng, uma Yarang.
Yarang é símbolo e nome do movimento de mulheres Ikpeng que, há 10 anos, coleta sementes para reflorestar as nascentes dos rio Xingu e Araguaia, no Mato Grosso, e onde mais o branco tiver desmatado no Cerrado e na Amazônia.
Adiante em passo firme, formiga cortadeira devolvida ao chão, as Yarang buscam nesse trecho específico de mata sementes de jatobá, leiteiro, carvoeiro, cafezinho do pasto, mamoninha, lobeira e outras dezenas de espécies.
Em parada repentina, todas se sentam no chão. Com as mãos ou com os facões, começam a limpar a camada de folhas secas para descobrir muricis-da-mata, quase invisíveis de tão pequeninos. A dinâmica muda. Agora é hora de coletar.
Mulheres, jovens e crianças conversam, riem, brincam, sob a sombra do muricizeiro. Recolhem as frutinhas amarelas e agridoces, chupam a polpa com caras contentes e põem as sementes nos cestos, com cuidado.
(Fotos: Carol Quintanilha)
“O movimento das mulheres é um conjunto”, reflete Koré Ikpeng, liderança Yarang da aldeia Arayó. “Convidei todas as Yarang para coletar sementes, tomamos banho cedo e viemos. Viemos para conversar, trocar ideias. É uma atividade coletiva, de união das mulheres.”
“A gente incentiva, ensina os conhecimentos sobre sementes para os jovens”, continua. “E não é só as meninas que trabalham. Os meninos também. Meus netos estão aí. A gente orienta, a gente convida, eles vão aprendendo.”
Veloz como as formigas cortadeiras, o grupo termina a jornada com cestos cheios em menos de uma hora. Agora é hora de voltar.
Chega ao fim mais uma coleta entre tantas que, ao longo de 10 anos, totalizaram 3,2 toneladas de sementes florestais e geraram R$ 105 mil em renda direta para as 65 mulheres participantes do Movimento das Mulheres Yarang, parte da Associação Rede de Sementes do Xingu (ARSX).
Trabalho duro de mulheres fortes que já resultou em um plantio aproximado de 1 milhão de árvores.
Assista ao vídeo que conta essa história:
Primeiro dia de festa, 24 de maio, e o tempo fecha rápido, com chuva forte. Magaró Ikpeng, liderança Yarang da aldeia Moygu, explica: é a chegada do espírito que acompanha as mulheres na coleta de sementes.
As comitivas Wauja, Kawaiweté, Matipu, todas do Território Indígena do Xingu, e Xavante, da Terra Indígena Pimentel Barbosa (MT), são recebidas pelo aguaceiro, bem como os coletores de sementes dos assentamentos de Bordolândia, São Félix do Araguaia e Canabrava do Norte (MT).
O mïnge (lê-se menhê), Casa dos Homens no centro da aldeia Moygu, é ocupado pela força das Yarang, suas falas potentes e seus cantos. Com microfone na mão, lideranças de dentro e fora do Território Indígena do Xingu exaltam o jeito de trabalhar das mulheres, e a franqueza para cumprir (ou não) a entrega prevista de sementes.
(Foto: Carol Quintanilha)
“A gente é assim. Tem que combinar, tem que fazer, tem que entregar. Se a gente encontrar dificuldade, a gente avisa. Quando não dá, não dá. O que for de nosso alcance, vamos fazer ao máximo para cumprir com a nossa palavra”, diz Makawa Ikpeng, liderança Yarang da aldeia Moygu.
“Gostamos de falar sobre as sementes. A gente não espera ninguém falar para a gente fazer. Nós, mulheres Ikpeng, somos de grupo. Somos um movimento. Estamos em movimento”, complementa Koré Ikpeng.
A entrada das mulheres Ikpeng na Casa dos Homens. (Foto: Carol Quintanilha)
“O fato é que são mulheres fortes, que honram seus compromissos”, explica Bruna Dayanna Ferreira de Souza, diretora da Associação Rede de Sementes do Xingu, que gere e comercializa as sementes coletadas pelo Movimento das Mulheres Yarang.
Com Magaró, Makawa e Koré à frente, as Yarang são motivo de orgulho na aldeia e fora dela, entre homens e mulheres. “Minhas filhas estão coletando sementes para plantar e recuperar o que está destruído em nosso território”, afirma o cacique Kampot Ikpeng. “Precisamos nos unir. Hoje somos parentes, parceiros, e a floresta depende da gente”, continua.
Watatakalu Yawalapiti, coordenadora do departamento de mulheres da Associação Terra Indígena Xingu (Atix), reforça: “Seja com a comercialização de sementes, artesanato, pimenta, sal de aguapé ou pequi, o objetivo é o fortalecimento das mulheres”, reforça.
Makawa Ikpeng celebra os 10 anos do movimento. No quadro, os dizeres: “As mulheres Yarang reflorestando o mundo”. (Foto: Carol Quintanilha)
Se tem uma história que Magaró Ikpeng gosta de contar é sobre sua participação na 3ª Expedição da Restauração Ecológica e da Rede de Sementes, realizada em outubro de 2018.
Indígenas, agricultores familiares, produtores rurais, pesquisadores, representantes do governo, de empresas e de organizações do terceiro setor percorreram mais de mil quilômetros no noroeste do Mato Grosso e viram o caminho da sementes, desde a coleta até as áreas reflorestadas em propriedades rurais da região.
Magaró esteve lá. Foi a primeira Yarang a deixar sua aldeia no Território Indígena do Xingu para ver com os próprios olhos os resultados do trabalho de suas companheiras de coleta. Antes, a ideia de “plantar floresta” causava estranhamento. Agora, não mais.
“Nosso esforço todo está brotando”, resume a liderança Yarang. “Eles reflorestam as nascentes dos rios. Fiquei emocionada ao ver o fruto do trabalho. Preciso andar mais para conhecer tudo. A gente está coletando e as pessoas estão plantando mesmo”, conta.
“Você só vai valorizar a floresta se olhar para ela como algo bom. Se não fizer sentido, não vai dar valor. A floresta oferece o abrigo, a roça, a caça. Eu sonho em oferecer aos meus netos e netas o que eu tenho agora, e que no futuro eles não percam essa riqueza”, continua Magaró.
A ideia de que “brancos destroem”, porém, continua firme. O trabalho do Movimento das Mulheres Yarang é um respiro em meio à devastação que corrói o que resta de floresta. Nos últimos 10 anos, mais de 1 milhão de hectares foram desmatados na bacia do rio Xingu.
Como contraponto, a Associação Rede de Sementes do Xingu promoveu em mais de 10 anos a recuperação de quase seis mil hectares de áreas degradadas na bacia do Xingu e Araguaia e outras regiões de Cerrado e Amazônia. Para isso, foram utilizadas mais de 220 toneladas de sementes de 220 espécies nativas.
As Yarang contribuem com esse trabalho desde o início. E querem fazer mais, com a ajuda dos homens e da juventude Ikpeng.
Yarang, em Ikpeng, quer dizer formiga cortadeira. Rere quer dizer morcego. A escolha do nome do movimento de mulheres ficou entre estas duas opções até que Airé Ikpeng, liderança antiga da comunidade, decidiu por adotar Yarang como nome oficial. Assim nasceu o Movimento das Mulheres Yarang.
Os homens Ikpeng, porém, não quiseram ficar para trás e de pronto adotaram o morcego, ou Rere, para designar o próprio grupo, o grupo masculino.
Desde então, os posicionamentos de formigas e morcegos, mulheres e homens Ikpeng, parecem ser complementares na divisão do trabalho e nas decisões conjuntas sobre o uso do dinheiro proveniente da venda de sementes florestais.
Wakunapu Wauja, pajé da aldeia Moygu e marido de Magaró Ikpeng, explica como as decisões são tomadas em sua família.
“Quando vem o pagamento, minha esposa pergunta o que podemos fazer com o dinheiro. Eu digo que é ela quem deve decidir. Se deve comprar panelas, rede, ou outras coisas. Ela entrega o dinheiro para meus filhos, porque eles sabem usar o dinheiro para fazer as compras na cidade”, afirma.
Como pajé, Wakunapu desempenha ainda outro papel na coleta de sementes: a de guardião espiritual do trabalho das Yarang.
“As árvores e as sementes têm espírito. Quando um grupo de coletoras vai trabalhar, eu vou como guardião para conversar com os espíritos para dizer que não queremos fazer mal a eles”, detalha o pajé. “Assim, os espíritos permitem que a gente trabalhe com eles. Pedimos permissão. Por isso, as mulheres que trabalham na coleta não ficam doentes”, explica.
Da mesma forma, Arinka Ikpeng, marido de Yawala Ikpeng, outra coletora Yarang, diz que gosta de ajudar. Em suas saídas para caçar e pescar, ele, conhecedor da mata, ajuda a identificar novas áreas de coleta de sementes. “Tenho conhecimento da floresta, sei quando acontecem a floração e frutificação. E gosto de ajudar a coletar”, afirma.
Porém, quando os homens Ikpeng clamam alguma autoria na coleta de sementes, as Yarang imediatamente se posicionam. “Os homens começaram o trabalho [com as sementes], mas não têm habilidade para coletar e beneficiar as sementes. Os homens não davam conta”, relembra Magaró.
Segundo ela, todos os seus gastos com a renda das sementes são planejados em família. E a maior parte vai para objetos de uso coletivo para aumentar a produtividade. “Eu não compro coisa pequena”, diz. “Comprei um barco, porque todo mundo pode aproveitar. A coleta é feita longe, e precisa ir de barco.”
“Quando tem floração das árvores, nós limpamos o entorno. Vou com o marido e já mapeio os pontos de coleta. Assim, já sabemos onde vai cair a fruta e vamos coletar”, relata.
O planejamento financeiro também está presente em outras famílias do Movimento das Mulheres Yarang. “É um gasto planejado. A cada ano vamos planejando uma meta. Se vai comprar tal coisa, quando chega o dinheiro a gente compra o que combinou”, explica Makawa Ikpeng.
Suas compras, por exemplo, foram desde um fogão até uma nova dentadura — com manutenção — passando por uma bicicleta com carreta para transportar produtos da roça até a aldeia.
Após uma hora de coleta, com seus cestos cheios de sementes de murici-da-mata, o destino final do grupo de coletoras lideradas por Koré Ikpeng é a Casa de Sementes do Movimento das Mulheres Yarang, no pólo Pavuru, entre as aldeias Arayó e Moygu.
Ali, elas usam uma peneira para terminar de beneficiar as sementes, que serão secas ao sol e armazenadas até a chegada dos próximos pedidos de produtores rurais.
Quando chegam os pedidos, as sementes são enviadas para que o plantio seja realizado com uma “muvuca” (saiba mais), técnica que consiste em uma mistura de sementes nativas e de adubação verde para a formação da estrutura da floresta.
(Fotos: Carol Quintanilha)
Para Koré Ikpeng, e para todos os outros 567 coletores que fazem parte da Rede de Sementes do Xingu, a atividade só faz sentido com a união das Yarang, dos povos indígenas, dos extrativistas, dos assentados e dos coletores urbanos.
“Você nunca vai encontrar Yarang sozinha. Estamos sempre juntas. Como vamos ser Yarang e andar sozinhas? O nome diz tudo: é um movimento de formigas. Como liderança acho muito importante essa união. Se eu for coletar sozinha, fico triste”, afirma.
Depois da festa de 10 anos do Movimento das Mulheres Yarang, com tanta gente de fora abraçando esse trabalho, é difícil imaginar que algum dia as Yarang andem sozinhas. Quem entende o valor da união e das florestas não vai deixar.
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A jornada das mulheres que reflorestam a Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU