08 Agosto 2019
Concentração de riquezas criou buraco negro que suga trabalho, políticas públicas e pequenos empreendimentos. Saída são impostos duros, sofisticados e fortemente redistributivos. Por isso, oligarquia financeira os estigmatiza.
O artigo é de Guillermo Sullings, economista argentino, autor de diversos livros, entre eles, "Encrucijada y Futuro del Ser Humano" e "Economía Mixta, Mas Allá del Capitalismo", publicado por Outras Palavras, 06-08-2019.
Lemos cada vez mais frequentemente estatísticas que ilustram a acelerada concentração de riqueza no mundo; poucos multimilionários acumulam maior riqueza que a metade mais pobre do planeta e o 1% mais rico da população possui mais da metade da riqueza mundial. Assistimos resignados, como meros espectadores, a um brutal e desumano processo de concentração. Essa resignação frequentemente é baseada na certeza de que existem enormes poderes capazes de resistir a qualquer tentativa de mudança, e também em que, às vezes, as populações são contraditórias e individualistas, e seu comportamento é funcional para um capitalismo consumista que conduz, inevitavelmente, para essa concentração.
Em todo caso, se houvesse a esperança de poder reverter essa tendência, a depositaríamos no Estado, porque ele é que poderia alterar a matriz distributiva. Mas duvidamos quando vemos que, frequentemente, o Estado é cooptado pelo poder econômico, e que suas políticas aprofundam o problema. Esse poder tem capacidade para dirigir os meios de comunicação que influenciam o eleitorado, tem recursos para comprar favores nos três poderes do Estado e tem a força para pressionar, chantagear e disciplinar. É evidente que essa mecânica perversa tem fissuras porque, cedo ou tarde, gera sofrimento para a população, e as crises políticas são oportunidades para uma mudança. Mas não é condição suficiente porque na história mediata e imediata há exemplos em que, ainda contando com o poder estatal, a busca por modelos alternativos fracassou, talvez porque não foram compreendidos todos os fatores que gravitam na concentração da riqueza e foram abordadas mais as consequências que as causas.
Quando Thomas Piketty publicou O capital no século XXI, explicando e fundamentando a forma como deu-se, historicamente, o processo de concentração, alguns de seus detratores, não podendo negar o substancial (a tendência à concentração), preferiram atacar as propostas redistributivas, afirmando que a concentração econômica do capitalismo não é tão nociva, mas que favorece o investimento e, consequentemente, o progresso, o que tem melhorado historicamente o nível de vida das populações.
Esquecem que o mesmo Piketty também afirma, em A economia das desigualdades que a melhora no nível de vida das populações se deve fundamentalmente ao progresso e não ao aumento da desigualdade. E esta é uma meia verdade porque, para que a acumulação se transforme em investimento e progresso, deve existir uma demanda potencial que encoraje esse investimento, e tal demanda não existiria se a população não aumentasse sua renda — algo que se relaciona mais com a oferta do que a distribuição das riquezas.
Deve haver um equilíbrio instável para que a dinâmica do desenvolvimento funcione. Até certa escala, a acumulação do capital pode favorecer o investimento e a multiplicação (e dizemos pode porque as decisões empresariais nem sempre coincidem com essa visão romântica do capitalismo liberal, segundo a qual o excedente sempre é poupado e essa poupança sempre é investida). Mas, a partir de uma escala maior, essa acumulação começa a funcionar como um buraco negro, uma enorme força gravitacional que começa a absorver empresas para dominar mercados e impor preços; começa a impor às marcas a terceirização e o deslocamento da produção, disciplinando pequenas e médias empresas que se transformam em uma espécie de “empreendedores-proletários”, obrigados a competir uns com os outros, minimizando lucros e salários (como explica Naomi Klein em Sem logo). Essa posição dominante que os capitais concentrados conquistaram permite que aumentem excessivamente sua rentabilidade sobre empresas produtivas e sobre os trabalhadores. Nesse quesito, o capitalismo deixa de “multiplicar os peixes” e passa a parir um monstruoso peixe gigante que engole os pequenos.
É que claro que, nos níveis de concentração de que estamos falando, a vasocomunicação entre grandes grupos empresariais e o setor financeiro é absoluta, e a rentabilidade crescente, produto de posições dominantes, está sendo direcionada para a especulação financeira e para o mercado de ações, ou para a usura que endivida os que estão empobrecidos para que continuem consumindo, até as bolhas estourarem e todos perderem (exceto os bancos); e assim a roda segue girando e a concentração segue aumentando. Essa roda é cada vez mais alheia a qualquer freio que tente pará-la, devido a uma globalização caracterizada pelo deslocamento produtivo, a fuga de capitais para paraísos fiscais e a conveniência de organismos internacionais, impondo regras do jogo que favorecem tal concentração. A disputa distributiva entre trabalhadores e empregadores limita-se uma parcela cada vez menor do bolo, pois os grandes lucros estão fora do alcance das demandas trabalhistas e a debilidade sindical é outro fator que alimenta esse círculo vicioso.
O que acontece, então com os governos? Já sabemos que, em muitos casos, são funcionais para a concentração; mas o que poderiam fazer se realmente quisessem trabalhar para melhor a distribuição da renda e da riqueza? É claro que mediante políticas trabalhistas adequadas se poderia melhorar um pouco a renda dos trabalhadores, mas a margem para essa manobra, em muitas empresas, é cada vez menor pelo que já foi explicado anteriormente, o que coloca, inclusive, um teto salarial para o restante dos trabalhadores. Assim, com políticas trabalhistas se poderia gerar um alívio, mas o amperímetro da distribuição de renda não se moveria muito. Seria necessário intervir fortemente a partir de uma política fiscal que equilibre os pesos.
Nesse sentido, uma das limitações que o Estado encontra, devido à concentração econômica, é a crescente dificuldade para implantar um sistema tributário progressivo, não somente porque os que concentram a riqueza têm as melhores ferramentas para a evasão fiscal, mas também porque, ao aumentar a concentração, as alíquotas tributárias deveriam ser cada vez mais elevadas para os setores concentradores. Ou seja, em exemplo de redução ao absurdo, se um pais tem o índice Gini igual a 1 [que corresponderia a total desigualdade], para se financiar o Estado deveria cobrar de uma só pessoa uma alíquota de 99,99%, o que seria ilegal por ser confiscatória e inviável na prática porque essa pessoa seria a dona do país. Sem chegar a esse extremo, podemos compreender que quanto mais desigual é uma sociedade, maior pressão tributária seria necessária exercer sobre os poucos contribuintes para financiar, de maneira equitativa, as políticas públicas. Mas, como frequentemente isso é difícil por razões legais e políticas, a pressão tributária termina recaindo sobre uma base maior de contribuintes com menor capacidade para contribuir, e o sistema se torna altamente regressivo, o que pode estimular o crescimento da informalidade.
A Previdência Social não escapa das consequências da concentração da riqueza porque, na medida em que os benefícios da revolução tecnológica são apropriados pelos empresários, aumentando sua mais-valia e reduzindo pessoal, aumenta a desocupação e, em consequência, diminui a massa de contribuintes dos sistemas de aposentadorias solidários — o que, somado ao envelhecimento da pirâmide populacional e ao aumento da informalidade já mencionado, torna o sistema inviável. A solução dos “liberais modernizadores” é aumentar a idade de aposentadoria, o que, além de atrasar o merecido retiro dos trabalhadores, também atrasa o ingresso dos jovens no mercado de trabalho. Uma solução, caso os benefícios dos avanços tecnológicos resultem em vantagens para os trabalhadores, seria reduzir a jornada de trabalho mantendo o nível da renda, ou seja, mediante a implantação de uma renda básica da cidadania. Outros dirão que não é tão ruim que os empresários tenham uma grande rentabilidade com esses avanços tecnológicos porque eles investem em novos projetos que gerarão trabalho, mas isso na prática não ocorre em suficiente medida para compensar o que é perdido. O Estado, então, para aliviar essas consequências, busca aumentar seus gastos em serviços sociais, em um contexto em que, como explicamos antes, a pressão tributária está insustentável pelo caráter regressivo do sistema.
Uma possível ruptura nesse círculo vicioso deveria ter como foco a utilização das políticas fiscais para forçar os setores de alta rentabilidade a reinvestirem seus excedentes no setor produtivo. Os impostos sobre lucros ou renda, tanto de pessoas como de empresas, deveriam contemplar alíquotas progressivas até níveis muito elevados, mas não somente em proporção à magnitude dos lucros, mas também em proporção a quantidade de trabalhadores ocupados, de modo que tal alíquota seja inversamente proporcional a quantidade de postos de trabalho gerados para obter esse lucro. Também se deveria contemplar alíquotas diferenciadas, relativas a como esse lucro será reinvestido no país onde foi gerado, ou se será remetido ao exterior ou canalizado para a especulação financeira. Dessa forma, impactaria simultaneamente no mercado de trabalho, ao reduzir a desocupação e, consequentemente, fortaleceria os assalariados na oferta distributiva, e aumentaria a arrecadação do sistema tributário. As alíquotas progressivas, que afetariam fortemente as altas rendas que não são reinvestidas, equilibrariam as cargas tributárias do conjunto, transformando o sistema tributário em menos regressivo. Em consequência, tenderiam a diminuir a sonegação e a informalidade em níveis de menor rentabilidade (sempre que isso seja acompanhado de um controle eficaz). A vocação para sonegar, com certeza, se concentraria na camada de maior rentabilidade, que estaria identificada para ter um intenso acompanhamento e controle, que minimizasse a sonegação e a fuga de capitais.
Será necessário contemplar políticas muito estritas para o sistema financeiro, evitando que prossiga a acumulação de lucros em detrimento do setor produtivo e, em consequência, de seus trabalhadores, para o qual se deverá regular toda sua operação, evitando assim que ele continue sendo o principal apoio logístico utilizado pelos grandes sonegadores para a fuga de capitais. É evidente que teremos que coexistir com algumas limitações que a globalização impõe, mas é possível, a partir de políticas nacionais, dar passos importantes para reverter ao menos parte dessa concentração de renda e de riqueza que marginaliza, cada vez mais, as pessoas. Alguns países se poderão avançar mais rápido que outros, e o escalonamento das taxas poderá adequar-se a medida do possível, mas não deve haver dúvidas de que não será o mercado, por ele mesmo, que melhorará a distribuição de renda e de riqueza, se os Estados não o forçarem uma mudança substancial na matriz distributiva.
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Tributos, antídoto para o hipercapitalismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU