25 Julho 2019
Talvez ainda, no imaginário geral, os comerciantes das bolsas de valores do mundo sejam jovens irritados que gritam loucamente a venda de ações. Na irrealidade do mundo financeiro de hoje, nada está mais longe da realidade. Embora a perturbação mental e a insanidade de propósito continuem sendo o núcleo desses locais, a maioria das transações ocorre em absoluto silêncio. Além disso, eles nem sequer são mediados pelos operadores, mas por cálculos automatizados. Os chamados algoritmos são hoje a ferramenta mais utilizada na especulação financeira com uma adição recente: o uso da inteligência artificial.
O artigo é de Javier Tolcachier, pesquisador do Centro de Estudos Humanistas de Córdoba, Argentina, e comunicador da agência internacional de notícias Pressenza, publicado por Internet Ciudadana, 22-07-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Outra falácia frequente é aquela que ignora a proporção real que a economia especulativa alcançou frente à real. Mesmo com a dificuldade de sua volatilidade, os cálculos colocam o volume global de transações financeiras em mais de cem vezes o produzido em bens e serviços (não financeiros). Essa é a primeira e mais relevante causa de desemprego e miséria.
Desemprego, porque longe de promover o investimento real, os fluxos especulativos geram “a migração de excedentes da economia produzindo bens e serviços para a economia financeira na forma de especulação ou taxa de usura. Isso produz um corte nas possibilidades de reinvestimento produtivo e redobra a pressão existente sobre o trabalho como fator de produção". [1]
Miséria porque alguns fundos de investimento gigantescos com suas empresas associadas acumulam lucros siderais, enquanto um enorme contingente humano não encontra meios de subsistência para sobreviver.
Isto é, em poucas palavras, a essência criminosa da espoliação e impotência do sistema governado pelo capital financeiro, que conseguiu superar seu antecessor, o capital produtivo e, em grande parte, livrar-se de seu principal "lastro", o trabalho assalariado. Nenhuma proclamação que não questione o poder do banco financeiro, nenhuma proposta que não conceba um antídoto para o sangramento especulativo, nenhum plano que não inclua o redirecionamento imperativo do capital à esfera produtiva e sua efetiva redistribuição social, conseguirá solucionar a raiz deste crime contra a humanidade.
Al Jwarizmi - de cujo nome derivam palavras como "guarismo" e "algoritmo" - foi um sábio muçulmano que viveu, estudou e escreveu no segundo século após o Hegira [2] na Casa da Sabedoria de Bagdá. Este polímata legou à humanidade o "Compêndio de cálculo por reintegração e comparação", que formou a base do estudo da Álgebra durante os séculos seguintes.
De difícil comprovação de autoria, porém de conteúdo significativo, se atribui a ele a seguinte parábola aritmética. Consultado sobre o valor de um ser humano, Al Juarizmi respondeu: “Se tem ética, então seu valor é igual a 1. Se ademais é inteligente, lhe agregamos um zero e seu valor será de 10. Se também é rico, adicionaremos outro zero e seu valor será de 100. Se sobretudo é ademais uma bela pessoa, agregaremos outro zero e seu valor será de 1.000. Porém, se perde o 1, que corresponde à ética, perderá todo o seu valor, pois somente lhe sobraram os zeros”.
Assim, a série de procedimentos matemáticos conhecidos como "algoritmo" hoje atende a muitas e diferentes tarefas e propósitos, inclusive para propósitos pouco elevados, como a especulação financeira.
Ao que se agrega, nos últimos tempos, a tecnologia computacional conhecida como "aprendizagem de máquina", uma técnica de autoaprendizagem do computador que otimiza a eficácia do procedimento por meio de um grande número de repetições em alta velocidade.
A Inteligência Artificial (IA) permite e precisa trabalhar com grandes volumes de dados, o que os torna sua principal matéria-prima e todo ser humano em uma mina de dados.
De acordo com a comercialização das empresas que promovem o uso da IA para atividade financeira, características como a alta velocidade de análise (já mensurada em frações de milissegundos e conhecida como HFT – trading de alta frequência, sigla em inglês), o baixo custo, a inclusão de múltiplas variáveis, a eliminação de emoções e falsas expectativas, anonimato e adaptabilidade, fazem desta tecnologia um instrumento de primeira classe para a especulação. A tudo isso é acrescentado que os algoritmos não estão fatigados e podem continuar seus cálculos enquanto (quase) todos dormem.
É por isso que hoje um grande número de transações é realizado por meio do chamado “comércio algorítmico” no jargão, que cresceu junto com a expansão e dominância do mercado de fundos de investimento nas principais bolsas de valores.
Atualmente, 75% do volume comercializado mundialmente é realizado por “algoritmos”. [3]
É previsível que os mercados emergentes sejam ainda mais incorporados a essa onda, aumentando a proporção de ativos negociados para dispositivos matemáticos. Ao qual é adicionado o crescimento de uma indústria dedicada ao seu desenvolvimento e monitoramento, estimado em bilhões de dólares.
Os analistas mais entusiastas preveem que “os futuros sistemas poderiam estudar os dados históricos que arquivamos ao longo de toda a história das operações, analisá-los facilmente para descobrir tendências, o que funcionaria e o que não funcionaria”. [4]
Simplificando (e muito), a negociação algorítmica é uma sequência que se baseia em diferentes entradas, processa possibilidades de investimento ou desinvestimento e as executa. Entre os dados que alimenta, estão a disponibilidade e característica de ativos negociáveis em diferentes bolsas ou "fóruns obscuros" fora destes, preferências e pedidos de clientes e dados de mercado atualizados e históricos de diferentes índices. O software de processamento é adaptado para diferentes diretrizes de investimento (passivos, agressividade, risco, misto, etc.), em diferentes momentos e regulamentos legais. Finalmente, na janela de “saída”, aparecem os pedidos de compra e venda.
Um mundo sigiloso e opaco, no qual milhões de atividades são processadas simultaneamente, sem que leigos ou iniciados tenham uma visão completa do que está acontecendo. Mesmo assim, ou apenas para isso, a indústria criou uma nova profissão, os "quants", que realizam análises quantitativas baseadas em fórmulas matemáticas e físicas sobre o desenvolvimento de estratégias de negociação, otimização de investimentos, precificação de derivados, gestão de riscos e análise de crédito.
No entanto, nada disso pode impedir as catástrofes financeiras periódicas e o permanente desastre da economia real.
Como flashcrash (choque violento) se conhece no mundo financeiro aqueles eventos que supõem um colapso repentino no valor de um ativo ou moeda. Mesmo que se recupere mais tarde, em poucos minutos – dada a velocidade e a simultaneidade das operações – haverá quem ganhe ou perca milhões. O maior ocorreu em 6 de maio de 2010, quando o índice Dow Jones dos EUA perdeu 9%. Outro flashcrash abalou o mercado de ações de Cingapura em outubro de 2013, quando algumas ações perderam até 87% de seu valor. Mais recentemente, em outubro de 2016, um evento similar fez com que o preço da libra caísse mais de 6% e o colocasse em seu valor mais baixo em mais de três décadas. [5]
Embora as causas desses incidentes pareçam incertas, tudo indica que uma história introduzida na matriz de um algoritmo pode ter causado esses e outros terremotos nas finanças. A única certeza é que o uso continuado e crescente da IA neste universo de especulação cada vez mais gigantesca garante um aumento na entropia. Isto é, uma grave falta de controle e crises repetitivas.
Mas que importância isso pode ter para as pessoas comuns, tão longe dessas matérias e submundos? Muito simplesmente, que nada do que acontece lá é fechado, mas tem uma poderosa influência na base de apoio econômico e ambiental da humanidade. Onde alguns veem receitas, os demais habitam ambientes vivos.
A eficiência exigida pela rapidez financeira abriu as portas para procedimentos algorítmicos que não envolvem emocionalidade humana e permitem evitar vieses comuns entre os investidores, como excesso de confiança ou aversão à ambiguidade e ao risco.
É óbvio que esses automatismos também são imunes ao enorme sofrimento social que eles produzem. Pará-los é uma questão de sobrevivência.
[1] Tolcachier, J. Tendencias. Cuadernos de capacitación política. Virtual Ediciones (2019). Santiago de Chile.
[2] Migração de Maomé de Meca a Medina, que ocorreu no ano de 622 da era cristã e é o ponto de partida da cronologia muçulmana.
[3] Citado em The Growth And Future Of Algorithmic Trading, disponível em: https://blog.quantinsti.com/growth-future-algorithmic-trading/30/06/2019
[4] Idem ao anterior
[5] Fonte: BBC. Qué son los "flash crash" y por qué ponen en jaque a los mercados. Acessado em 30/06/19, disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-37609286
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Inteligência artificial a serviço da especulação financeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU