03 Abril 2013
Fiel ao budismo há mais de três décadas, antes de virar moda, americano Richard Gere diz que Dalai Lama não entende a arte de representação dos atores.
A entrevista é de Lucy Kellaway, publicada no jornal Financial Times e reproduzida pelo jornal Valor, 02-04-2013.
A palavra "palato" me parece um pouco sinistra, como se o astro de Hollywood gostasse de morder pedaços de seus entrevistadores, mas aguardo enquanto Gere continua a rondar pelo corredor. Consulto minhas anotações. Extraordinária beleza, escrevi. Suave opacidade. Epítome de Hollywood? Dalai Lama. Giorgio Armani. Cindy Crawford. Anúncio maluco no The Times. Envelhecimento. Gerbil.
Palato limpo, Gere faz sua entrada. Ele se move como uma pantera pelo tapete, relaxado e sorridente.
Ele é um pouco mais baixo do que você imaginaria a julgar pela cena final de A Força do Destino (1982), quando, em seu imaculado uniforme branco, ele ergue Debra Winger e a leva para fora da fábrica. E seu famoso belo rosto me parece estranhamente inexpressivo. Escrevendo isto um dia depois, fecho meus olhos e não consigo revê-lo.
Sentamo-nos em cadeiras uma defronte à outra, em uma grande sala totalmente vazia, com exceção de uma relações públicas sentada distante. Fico impressionada pela perspectiva de uma entrevista semelhante a um jogo de salão disfuncional em que tento, por quaisquer meios que eu consiga, fazer com que o entrevistado, ainda que não revele sua alma, ao menos diga algo relevante - enquanto ele tenta divulgar seu filme e nada fale sobre suas opiniões ou planos.
O relógio começa a marcar o tempo. Temos 50 minutos.
Começo, respeitando as regras, com o novo filme de Gere, A Negociação. Ele interpreta um "rei" dos fundos de hedge que acabou de perder US$ 400 milhões ao investir numa mina de cobre russa e que comete fraude para tapar o buraco no balanço. O filme começa com ele sendo entrevistado por Maria Bartiromo, âncora da CNBC na vida real, e falando fluentemente sobre "quants" [analistas quantitativos] e "estruturação de derivativos". Gere pronuncia as palavras com exímia autoconfiança, mas terá alguma ideia sobre o que elas realmente significam?
"Nem uma pista!", responde o ator. Ele se inclina para a frente e diz em tom confidencial que nenhum dos banqueiros com quem conversou também tem alguma ideia. "Observo os olhos deles, porque quero ver o processo mental. Não acho que eles sabiam do que se tratava! É tudo um blefe, mas acho que a maioria do mundo financeiro é um blefe."
Também fico de olho nos olhos de Gere. São profundos buracos castanhos por trás de seus óculos de aros de metal olhando diretamente para mim, mas não "entregam" nada.
Então, ele concluiu que os banqueiros são desprezíveis? O ator assente com a cabeça.
"E é mais desprezível que nós deixemos que eles detenham o poder. Esse é um jogo muito sutil que eles jogam. É com a nossa segurança e a de nossas famílias. E isso nos toca muito fundo, não é verdade? Esse é um lugar emocional. Imediatamente, do lado deles, eles lançam como que um feitiço: eu sou a divindade. E do nosso lado, ficamos: 'Meu Deus, gostaria que houvesse alguém em que eu pudesse confiar'. É muito simbiótico."
Está muito abafado na sala e estou sentindo a tensão. Gere já conquistou uma vantagem inicial nesse jogo, dominando o campo por um bom tempo e com convicção. Ele remove o terno, revelando uma camisa de linho azul sem vincos e ajuste perfeito.
Tento recuperar o controle, dizendo que o problema em seu desempenho excelente é que ele é bonito demais. Na vida real, os heróis do alto mundo das finanças - George Soros, Bernie Madoff, Warren Buffett - tendem a ser mais anódinos. Apenas Arki Busson contraria a regra.
"Arki! Eu o conheço", exclama Gere. "Ele é um amigo meu."
De uma leitura atenta de recortes de jornais e revistas, sei que os dois compartilhavam um interesse pela atriz Uma Thurman; estou prestes a mencioná-la, quando Gere apresenta um contraexemplo melhor para minha tese segundo a qual os financistas são feios: Jamie Dimon.
Ele me diz que vê o atraente CEO do J.P. Morgan como o modelo para seu personagem: um homem de grande talento, decente em muitos aspectos, mas que faz coisas imorais. "Quando eu o vi depondo quando eles perderam uns US$ 8 bilhões, a confiança, o orgulho e o sentido de, também, mea-culpa... O sujeito é tão envolvente. Ele quer a câmera focada nele. Confiante, mesmo no prejuízo, é um bom jogador."
Digo que o banqueiro do J.P. Morgan, diferentemente do personagem de A Negociação, não matou sua amante num acidente de carro e depois mentiu sobre isso. Gere descarta o argumento, como se fosse possível que Dimon tivesse feito exatamente isso: "Não conheço nada de sua vida interior. Francamente, não estou interessado".
Quando o filme estreou nos EUA, alguns meses atrás, Gere foi bafejado por algumas das melhores críticas que ele já recebeu. Alguns sugeriram que ele poderia finalmente ser indicado ao Oscar que ele nunca teve por seus grandes papéis em A Força do Destino, Uma Linda Mulher (1990) ou Chicago (2002). No entanto, mais uma vez, o ator foi preterido.
Pergunto se ele ficou decepcionado. A essa indagação previsível, Gere tem a resposta imediata: sim, mas não por ele mesmo.
"Eu julguei que poderia ter sido bom para o filme, porque é um filme pequeno, se tivesse conseguido uma atenção extra".
Em vez de ganhar o Oscar, Gere recentemente começou a colecionar prêmios pelo conjunto da obra; em cada cerimônia, ele se senta e assiste à edição de pontos altos de sua vida na tela.
"Para mim, estou me vendo crescer. É tocante. Vejo uma pessoa jovem. Eu tinha 26 anos quando começamos a filmar Cinzas no Paraíso [1978], então é um sujeito de 26 anos de idade aos olhos de uma pessoa de 63 e, é claro, vejo uma mudança enorme - mas, sob determinados aspectos, nenhuma mudança."
Também fui consultar o arquivo. Fiquei fascinada pela cena, em Gigolô Americano, de 1980, onde Gere, um garoto de programa, anda em seu quarto semidespido, escolhendo camisas e gravatas, cantarolando com Marvin Gaye ao fundo. Em termos de sexualidade masculina e narcisismo, nada na tela jamais chegou perto, antes ou depois.
Gere parece um pouco perplexo diante de minha reação ao filme. "Minha imagem foi construída. Eu me exercitei para parecer assim. Bolamos um corte de cabelo para parecer assim. Fui maquiado para parecer assim. Foi - creia-me - uma coisa construída."
Gigolô Americano foi uma ode aos ternos Armani soltos e desestruturados que pareciam elegantes no corpo malhado de Gere - porém não tão elegantes nos milhares de jovens comuns que o imitaram. Quando digo a ele que o considero responsável por essa moda horrível, o ator ri.
"Sinto muito. Desculpe. Não sei onde esse terno foi parar. Acho que o devolvi a Giorgio para uma exposição em Londres."
Digo que tive um namorado americano naquela época que tinha um terno que não caía bem nele. "Isso é obsessivo", diz Gere, virando-se para a RP. "Os olhos nem piscam. Isso é coisa muito séria. Há feridas profundas nessa esfera."
A relações públicas ri. E Gere, satisfeito com a piada, continua falando. "Você está vendo isso? Isso está me assustando. Nunca tive medo antes. Graças a Deus você está aqui", diz ele.
Eu rio também, mas fico surpresa. Pela demasiada afetação em seu desempenho, eu nunca adivinharia sua profissão.
O diretor Sidney Lumet (1924 - 2011) certa vez disse que, à medida em que Gere fosse ficando mais velho, ele seria menos definido por sua aparência e lhe seriam dados papéis mais interessantes. Começo a formular uma pergunta sobre as vantagens de envelhecer, mas Gere me corta.
"Na verdade, estou mais jovem", afirma ele. Os olhos castanhos desse homem de 63 anos fixam-se nos meus. Ele não parece estar brincando. "Estou mais jovem do que já fui", ele repete. "Internamente. Menos autoconsciente. Menos inseguro."
Hoje em dia, ele é tão despreocupado quanto uma criança, diz, antes de emendar com uma afirmação que só poderia vir de um adulto fatigado: "Sou apenas um cara fazendo um trabalho, Ok? Você está fazendo o seu trabalho. Eu estou fazendo o meu trabalho. Não tenho ilusões além disso".
Gere pode não ter ilusões sobre si próprio, mas outros têm muitas em relação a ele. Desde que desempenhou um papel de homossexual em "Bent", na Broadway, em 1980, as pessoas se perguntavam (sem qualquer fundamento) sobre sua orientação sexual. No início dos anos 1990 ele foi alvo de um dos mitos mais absurdos e duradouros em Hollywood - ele teria sido internado no hospital Cedars-Sinai, em Los Angeles, com um gerbil [pequeno mamífero roedor] preso em seu canal retal.
"Eu não sei de onde veio isso", ele suspira. "E eu não me importo. Tão estúpido. Pueril."
Algumas outras coisas que dizem sobre ele são mais baseadas na verdade. A mais estranha de todas elas é a história da dissolução de seu casamento com Cindy Crawford. Três anos após o casamento de duas das pessoas mais lindas no mundo, o casal colocou um anúncio de página inteira no jornal The Times no qual declaravam: "Somos heterossexuais e monogâmicos e levamos nosso compromisso um com o outro muito a sério". Pouco tempo depois eles se divorciaram. Mesmo para os padrões loucos dos casamentos em Hollywood, isso me pareceu estranho. O que deu nele?
"Eu não sei", afirma categoricamente. "Foi tanto tempo atrás. Eu não me importo."
O anúncio em seguida listava as causas que eles apoiavam, inclusive a independência do Tibete, pela qual ele tem continuado a lutar. Gere, mais do que a maioria das estrelas de Hollywood que se interessam por espiritualismo, é fiel ao budismo há mais de três décadas. Ele foi o galã budista original - antes que Orlando Bloom, Sarah Jessica Parker ou quaisquer dos outros ficasse interessado.
Eu pergunto o que há, no budismo, que o torna tão irresistível para os atores. Gere pensa um pouco e inicia outra longa resposta, composta por frases curtas, cada uma das quais faz todo sentido, embora juntas sejam um pouco desconcertantes.
"Trata-se de uma exploração", começa ele. "Quando olhamos para nossas mentes, somos como exploradores com facões atravessando uma selva. Você enfrenta o ambiente e temos de suar e é difícil. Tudo fica cada vez mais profundo. Quanto mais você explora, mais você se aprofunda na selva com o facão. Você encontra mais coisas. Você encontra as ruínas de culturas muito antigas, na selva, e é como se houvesse magia lá, mas há coisas reais também."
Tenho que intervir para pedir algo mais específico. Será que seu bom amigo, o Dalai Lama (com quem Gere se encontra várias vezes por ano) assistirá a A Negociação? Ele diz que não. Sua Santidade na realidade não compreende a representação dos atores. Quando se conheceram, uns 30 anos atrás, o Dalai Lama tentou fazer com que o astro cinematográfico lhe explicasse isso.
"Ele perguntou: 'Quando você está com raiva, você está realmente com raiva?' E eu dei um tipo de resposta de ator, tipo 'Bem, se você está realmente sentindo, é claro que a atuação é melhor'. E ele apenas olhou para mim por um longo tempo e começou a rir. Histericamente. De um ponto de vista budista, as emoções não são reais. Como ator, eu fabrico emoções. Eles são um tipo de jogo. Mas a vida real é a mesma coisa. Apenas não temos consciência disso."
Bobagem, retruco. Algumas emoções são reais. "Elas parecem reais porque acreditamos no filme de nossa vida de onde elas surgem. Em última instância..."
Como o tempo está se esgotando, eu corto essa linha de diálogo e pergunto então sobre sua vida atual. Nos últimos 12 anos, ele está casado com Carey Lowell, uma ex-modelo e ex-"Bond girl". Eles levam uma vida tranquila em Westchester County, Nova York, com seu filho de 13 anos, e Gere, feliz no papel de pai comum, treina a equipe de beisebol do filho. Tudo soa idílico, com exceção de uma coisa. O casal dirige um hotel - o que sempre me pareceu uma maneira bem segura de perder dinheiro e sono.
"Eu não o administro", Gere me corrige. "Eu apenas o construí. Esse foi um dos dois que não foram queimados pelos britânicos, de modo que compramos e reconstruímos. Eu gosto de construir coisas belas. Temos outra pessoa para administrá-lo."
Ele se vira para a relações públicas e diz: "Você acredita que ela evitou toda aquela conversa importante? Isso me surpreendeu".
Eu protesto, dizendo já ter lido sobre ele contando a mesma história sobre o Dalai Lama e atuação, antes. "Então, leve-a a um outro nível! Mas você disse: 'Não, eu não vou fazer isso. Prefiro falar sobre um hotel. Sobre a administração'! Que é isso? Depois, você vai querer se matar por causa disso."
Nesse momento, outra relações públicas chega e diz que meu tempo acabou. Protesto dizendo que só tive 40 minutos, em vez de 50, mas ela não cede.
"Eu vou parar a conversa nesse ponto", diz Gere embarcando em mais uma de suas piadas estranhas. "Isso é um pesadelo. É a entrevista mais longa que já dei. O Financial Times deveria me pagar US$ 100 mil!"
Nos despedimos, mas antes mesmo de o elevador chegar, ficou claro que ele tinha razão. Eu estou me odiando por não ter continuado a explorar o veio segundo o qual as emoções não são reais. Não no "batido" sentido filosófico, mas especificamente sobre as emoções irreais desse veterano astro de Hollywood.
É tarde demais para voltar atrás e perguntar. Richard Gere está limpando o palato para o próximo na fila.
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"O mundo financeiro é um blefe", diz Richard Gere - Instituto Humanitas Unisinos - IHU