08 Junho 2019
"O que se está vendo é uma nova modulação da “guerra dos deuses” que vem pintando a figura de Bolsonaro pública/política com características que passam por Jesus Cristo, martirizado e morto pelo império Romano. Portanto, afirma-se que vem ocorrendo no governo Bolsonaro mais uma forma de profanação política de Jesus Cristo em prol do status quo neoliberal governista", escreve Fábio Py, doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RIO e professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF.
“Cristo, o Ser:
eis o embate do Reicht”
(Dotrothee Sölle)
“O inferno é, assim, (produzido ou não) o lugar onde
o governo do mundo sobrevive para sempre,
ainda que de forma puramente penitenciária”
(Giorgio Agamben)
Desde as manifestações de 15 de maio, os setores bolsonaristas e o próprio Bolsonaro vêm forçando a associação da figura do presidente com qualidades que o associam à figura do Cristo, apresentando-o como messias, ungido e eleito da nação. Esse novo jogo promovido pelas lideranças religiosas e da base política do governo é mais um apelo a fim de reagrupar as forças com a intenção de legitimar as medidas ultraliberais e amortecer sua impopularidade. A apresentação de Bolsonaro com características cristológicas (de Cristo) dá um novo fôlego ao cristofascismo à brasileira, sendo uma forma mais refinada de sensibilizar setores religiosos, que mesmo em tão pouco tempo vinham já se descolando do governo.
Impressiona como a luta política no Brasil vem ganhando outros enredos e espíritos. Atenta-se que tão logo que ocorriam as manifestações de 15 de maio as propagandas em prol do governo se intensificaram na arena em que demonstra mais força: as redes sociais. Em primeiro lugar no whatsapp.
Na chuva de publicações, comumente chamadas de memes, divulgadas pelo aplicativo, selecionei duas peças para exemplificar o esforço em associar a imagem de Bolsonaro a um caráter messiânico. Na primeira figura, o apelo não poderia ser mais explícito: “Ele encarou a Globo, a Folha de São Paulo, Reitores Esquerdistas, a Classe Artística privilegiada. Ele encarou o sistema e não ficara sozinho”. Na segunda peça, vemos a sugestiva imagem de um cavaleiro templário segurando a bandeira brasileira. Os dizeres são igualmente diretos: “vamos salvar o Brasil. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”.
As duas figuras passam a ideia de um Bolsonaro que bravamente luta pela nação contra seus inimigos textualmente enumerados: a classe artística, a Globo e os universitários. A ideia de salvação abre a segunda montagem, na qual o cavaleiro medieval reforça o caráter caricatural. Em conjunto, os memes representam um caso típico de messianismo político travestido de linguagem religiosa-salvacionista.
Além dos memes, nas redes sociais o próprio presidente (ou sua assessoria) postou, publicado no dia posterior às manifestações de 15 de maio, o vídeo do pastor Steven Kunda (congolês radicado na França). No vídeo, o pastor confirma Bolsonaro como enviado divino escolhido para guiar o Brasil: “Aceitando ou não, você, seja de esquerda ou de direita, o senhor Jair Bolsonaro é o Ciro do Brasil. Deus o escolheu para um novo tempo, para uma nova temporada no Brasil, profere o congolês. Para quem não entendeu a referência, o pastor compara Bolsonaro a Ciro, importante rei persa usado por Deus para retirar o povo de Deus do exílio, segundo os textos bíblicos. É interessante, pois os manuais de teologia clássica apontam que Ciro foi “ungido” por Deus. Teologicamente, unção recebe a conotação de “escolha”, alguém “separado para algo”. Destaco que o termo dado a Ciro, como “ungido por Deus”, no Novo Testamento se traduz como “Cristo”, logo outra aproximação messiânica e ligada a Cristo de Bolsonaro.
As ações de Bolsonaro para construir a imagem salvacionista não se limitaram às redes sociais. No domingo dia 26, dez dias após as primeiras manifestações, o presidente esteve no Rio de Janeiro para participar do culto da Igreja Batista Atitude na Barra da Tijuca. Na ocasião, o pastor Josué Valandro chamou (novamente) Bolsonaro para subir ao púlpito com sua mulher. Após a oração, cedeu o microfone. Suas palavras foram emblemáticas: “é bom estar no meio de gente que tem Deus no coração”, afirmou no início do discurso. Contou as dificuldades em colocar em prática o que prometera na campanha, indicando sua “via dolorosa”. Assim, ao indicar tais dificuldades, um martírio que vem passando se liga à imagem do próprio Jesus torturado, injustiçado, reforçando a ideia de sacrifício e sofrimento, que, aliás, é algo que já vem desenvolvendo desde o atentado à faca. Nesse sentido, seu discurso avança aos presentes na igreja. Diz na sequência: “que eu não agradeça a Deus pela minha vida. Nos momentos mais difíceis, por mais que eu ame a minha esposa, eu não queria deixar minha filha órfã. Se estou aqui é porque eu acredito nessa nação, se os Senhores estão aqui é porque acreditam em Deus. Juntos e somente com a força de vocês, nós poderemos governar”.
Como se vê em sua mensagem, a todo o momento apela à fé, à força da família, à defesa do projeto em nome da nação. Amplifica seu discurso divino, fabrica sua particular “guerra dos deuses”[1], terminando da seguinte forma o discurso na igreja: “Meus Irmãos da Igreja Atitude, Brasileiros de todos os rincões dessa nação maravilhosa, vamos juntos, tendo Deus no coração, colocar o Brasil no local de destaque que ele merece.
Além do próprio Bolsonaro, a imagem messiânica do governo foi reforçada por apoiadores religiosos. O pastor Silas Malafaia gravou um vídeo, dizendo que a eleição do Bolsonaro foi um milagre e ele é um “ungido de Deus para essa nação, e preparando o povo para um ‘momento drástico’ para que a ‘igreja triunfe’. No vídeo, o pastor indica que Bolsonaro governa por interferência de Deus, e quem está contra está condenado ao inferno. Chega ao ponto de argumentar que viriam de Satanás todas as críticas e contestação ao seu “escolhido”. É mais uma imagem que remonta a Cristo, o ungido, nesse caso, Bolsonaro o presidente “ungido” que vem sendo injustiçado por todos, pelo diabo.
Esse conjunto de imagens cristológicas sobre a figura política de Bolsonaro, que ora se identifica com messias político religioso, ora com um servo sofredor que governa no calvário, reforça seu projeto cristofascista brasileiro. Seu cristofascismo promove-se por meio de uma teologia política que se pauta supostamente na democracia, mas que, ao mesmo tempo, baseia-se no ódio democrático e com clara disposição autoritária, na qual uma das técnicas de sua governança é promover o terror no caldeirão de posturas de discriminação, ódio, preconceito, racismo ante os setores “heterodoxos”. Nessa equação, são utilizados discursos que aludem ao cristianismo numa investida contra seus inimigos: professores, militantes de esquerda, indígenas e LGBTQI.
É verdade que o cristofascismo não é um termo novo. Foi utilizado pela teóloga alemã Dotrothee Sölle, em 1970. Com ele, Sölle indica que o projeto cristofascista seria “traição aos pobres, uma arma milagrosa a serviço dos poderosos (...) a serviço das famílias tradicionais do centro-europa preocupadas com a paz sem a paz incômoda Cristo (...). Quando projetam políticas truculentas de ódio e discriminação em nome de uma pretensa igreja cristã”[2]. Analisando as relações de integrantes do partido nazi com as igrejas cristãs no desenvolvimento do estado de exceção alemão, Sölle percebeu que o governo nazista se utilizou das relações e até das terminologias cristãs para sua composição, assim como se reconhece tal mecanismo relacional no governo Bolsonaro.
Além disso, ao destacar conceitualmente o cristofascismo é preciso indicar o que se está chamando de fascismo. Fixo o conceito a partir do filósofo Walter Benjamin, o qual entende que a barbárie fascista não é um estágio de regressão civilizacional, mas está contida nas próprias condições de reprodução da civilização burguesa se beneficiando “da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, da moral, da família considerado como uma norma histórica”, transformando todo nacional em um “estado de exceção efetivo”[3]. Assim, em seu projeto autoritário, o governo Bolsonaro se projeta a partir da defesa de uma concepção conservadora da família, da moral e da eliminação de seus adversários a partir do estado de exceção contínuo.
Nesse sentido, nesse novo jogo promovido pelas lideranças religiosas e da base política do governo se faz a opção de blindar o presidente cristofascista Bolsonaro por meio de uma cristologia profana apresentando-o como messias, ungido e eleito da nação. É mais um apelo a fim de reagrupar as forças para manter a duras chicoteadas a implementação de medidas ultraliberais recheadas com ódio, discriminação e racismo. Assim, a apresentação com características cristológicas dá um novo fôlego ao cristofascismo à brasileira, sendo uma forma mais refinada de sensibilizar setores religiosos, que mesmo em tão pouco tempo vinham já se descolando do governo, bem como também, afinar-se na direção das massas que nunca foram tão próximas no apoio.
Finalmente, não gostaria de esquecer o conceito de Michael Löwy quando indica que a estilização do poder no interior da vida política passa pela “guerra dos deuses”[4]. Ou seja, a política possibilita também um conjunto de conflitos, logo a produção especializada de teologias. Portanto, um marco temporal é fundamental: a partir do dia 15 de maio os setores bolsonaristas, e o próprio Bolsonaro, vêm forçando novamente uma série de aproximações e de plataformas para atrair novamente sua base eleitoral. O que se está vendo é uma nova modulação da “guerra dos deuses” que vem pintando a figura de Bolsonaro pública/política com características que passam por Jesus Cristo, martirizado e morto pelo império Romano. Portanto, afirma-se que vem ocorrendo no governo Bolsonaro mais uma forma de profanação política de Jesus Cristo em prol do status quo neoliberal governista.
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[1] Michael Lowy, A guerra dos deuses, Petrópolis: Vozes, 2000.
[2] Dorothee Sölle, Beyond Mere Obedience: Reflections on a Christian Ethic for the Future, Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1970, p.81-83.
[3] Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de historia” de 1940.
[4] Michael Lowy, A guerra dos deuses, Petrópolis: Vozes, 2000.
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Cristologia cristofascista de Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU