21 Mai 2019
“Estigmatizando com pleno direito as tendências nacionalistas, certas ideologias progressistas subestimaram, senão até negaram, o sentido fundador e o valor de consolidação da identidade nacional.”
O jornal L’Osservatore Romano, 20-05-2019, publicou um excerto de um artigo de autoria da filósofa, linguista e psicanalista búlgaro-francesa Julia Kristeva, publicado na última edição da revista Vita e Pensiero.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Todos nós constatamos isto. O estrangeiro obceca a globalização: Itália, Hungria, Venezuela... Não tem nada a ver com um fantasma, como foi o caso do espectro do comunismo que obcecava a Santa Aliança Europeia (de acordo com o “Manifesto do Partido Comunista”) mais de um século e meio atrás.
A insustentável presença dos estrangeiros é bem mais disruptiva e real, dentro e fora das nossas fronteiras, mesmo que ela esteja fortemente sobrecarregada de fantasmas imaginários. Quando elevam os olhos dos seus selfies hiperconectados, os “tuiteiros” nativos despertam como estrangeiros no seu próprio país. Alguns, aterrorizados pela onda migratória, a “grande substituição”; outros, surpresos por se encontrarem eles mesmos como estrangeiros, como temporários autoempresários da uberização transfronteiriça; desempregados ou agricultores em territórios desertificados; crianças que não tomam café da manhã antes da escola, e outras “diversidades” que podem ser encontradas entre aqueles que são deixados para trás pelo “sistema”.
Fora da rede, os “curtidores” e os “seguidores” perdem a ilusão virtual de “viver juntos”, não acreditam mais nisso, são estrangeiros à procura de um país que não existe. A hiperconexão beira a desorientação; a pós-verdade e as fake news provocam e exacerbam o sentimento – o ressentimento – de estranheza [estraneità].
Em 1988, há mais de 30 anos, eu escrevi “Stranieri a noi stessi” [Estrangeiros para nós mesmos], que foi tomado como um livro. Era um grito. E eu gostaria hoje de ouvir algumas ênfases, na convicção de que as nossas reflexões só poderão encontrar o seu sentido sob a condição de que permaneçamos à escuta dessa condição humana que põe em discussão o Estado-nação e custa a acreditar até mesmo na razão política:
“Estrangeiro: raiva estrangulada no fundo da garganta, anjo negro que perturba a transparência, traço opaco, insondável. Figura do ódio e do outro, o estrangeiro não é nem a vítima romântica da nossa preguiça familiar, nem o intruso responsável por todos os males da cidade. Nem a revelação esperada, nem o adversário imediato a ser eliminado para pacificar o grupo. Estranhamente, o estrangeiro nos habita: é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína o nosso lar, o tempo em que se aprofundam o entendimento e a simpatia. Reconhecendo-o em nós, poupamo-nos de detestá-lo nele. Sintoma que torna justamente o ‘nós’ problemático, talvez impossível, o estrangeiro começa quando surge a consciência da minha diferença e termina quando todos nos reconhecemos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades. O ‘estrangeiro’, que era o ‘inimigo’ nas sociedades primitivas, pode desaparecer nas sociedades modernas?”
Essa estranheza essencial, que as diversas variantes da sedentarização – alternando “enraizamentos” e exílios – tinham cicatrizado mais ou menos, é brutalmente despertada de novo pela globalização nas mãos do virtual. O Estado-nação ainda é o recipiente ideal dessa nova humanidade à qual aspira um “país que não existe”? A minha resposta é “sim”; a nação é um antidepressivo, sob a condição de que se conecte – mas a que preço? – aos conjuntos superiores, regionais e culturais (a Europa, por exemplo). Um antidepressivo que não pode mais abrir mão do “gênero humano”. Mas que deve, por isso, retomar, interrogar e refundar não apenas as culturas nacionais, mas também a memória das religiões constituídas, que afirmam possuir um “vínculo unificador”, um vínculo que transcende as comunidades étnicas e políticas historicamente constituídas. E refundar o próprio humanismo universal, que se separou delas, que as interroga questiona e que se interroga.
Por que o não pertencimento ao grupo (família, clã, tribo, nação, “sistema”) que distingue o estrangeiro dentro e fora compromete a minha identidade e até me ameaça com um colapso identitário? Como a identidade é um componente incerto, com uma solidez relativa e frágil, ela é tranquilizada pelo pertencimento a um grupo, ou talvez seja este, no fim das contas, que a constitui inteiramente. Recordemos a observação de Marcel Proust: na França, a máxima de Hamlet, “ser ou não ser”, tornou-se “ser ou não ser eles” – célebre fórmula retomada por Hannah Arendt e que responde ao sarcasmo de Voltaire: “Tornamo-nos devotos por medo de não ser nada”...
Para nós, seres falantes, o grupo (família ou nação) não garante unicamente uma continuidade biológica (natural) e econômica (que consiste em se beneficiar dos bens essenciais): o grupo constrói e conserva o sentido, dimensão constitutiva do ser humano. Da minha linguagem, dos meus valores, da minha cultura histórica, o grupo é o habitat (a palavra grega ethos significa inicialmente “habitat”). O grupo desobriga à ética! O ser falante que eu sou, habita os seus progenitores, a sua tradição e a sua linguagem, que são o meu ethos, a minha ética.
Portanto, entende-se que ser eles (pertencer a um grupo, a uma família, a uma nação) pode servir de antidepressivo. O que tem efeitos colaterais tóxicos. A família e a nação que são os meus antidepressivos degeneram bem rápido – infelizmente! – em paixão maníaca de perseguição, passiva e ativa, e autodestrutiva. Mas (na etapa atual da existência do Homo sapiens) a minha identidade estruturalmente precisa disso; ora, a estranheza, os estrangeiros, põem em risco essa identidade e correm o risco de destruí-la.
Estigmatizando com pleno direito as tendências nacionalistas, certas ideologias progressistas subestimaram, senão até negaram, o sentido fundador e o valor de consolidação da identidade nacional.
Naturalmente, a globalização desenfreada deve ser regulada e otimizada. Esses processos estão em andamento, mas ela impõe e imporá modificações aceleradas das identidades nacionais. Mas, quando, com pleno direito, nos voltarmos contra o populismo, não nos esqueçamos das ênfases populistas dos fundadores da própria nação republicana, em seus primórdios.
Sieyès: “O povo sempre prostrado”. Robespierre: “Os infelizes me aplaudem”. Ai, porém, da negação que maltrata esse antidepressivo que é a nação e da qual Giraudoux dizia: “As nações, assim como os homens, morrem de descortesias imperceptíveis”. As nossas negações frequentemente são muito mais que simples descortesias.
Nós somos chamados, em virtude da economia, da mídia, da história, a coabitar com e entre estrangeiros em um país, a França, por sua vez em curso de integração a uma Europa ameaçada pela desintegração. Encaminhamo-nos rumo a nação-quebra-cabeças feita de diversas particularidades, em que o dominante demográfico é, por enquanto, francês – mas até quando?
Pela primeira vez na história, somos levados a viver com “diversidades”, tendo que apostar prioritariamente, senão unicamente, em códigos morais pessoais, sem que haja um conjunto que, abraçando as nossas particularidades, possa contê-los, orientá-los, transcendê-los.
Eu não sou otimista, vocês devem ter entendido, mas, como pessimista enérgica, descubro com os meus analistas que só a análise dos fracassos nos permitirá ancorar o vínculo unificador à estranheza e à necessidade de crer, imanente em cada um de nós. Para ajudar a dar vida a essa atualidade prática da nação que é a coesão republicana.
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Os estrangeiros, a globalização e os nacionalismos contemporâneos. Artigo de Julia Kristeva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU