20 Mai 2019
Almudena Hernando (Madri, 1959) é professora de pré-história e pertence ao Instituto de Pesquisa Feminista da Universidade Complutense de Madri. Liderou pesquisas importantes com grupos indígenas, como os Q'echí, na Guatemala, ou os Awá da Amazônia brasileira. Atualmente, trabalha com os Gumuz e os Dats'in, na Etiópia. Sua perspectiva arqueológica crítica se concentra em compreender a construção sócio-histórica da identidade. Apresenta La Fantasía de la individualidad (Traficantes de Sueños), um livro que investiga a organização identitária de homens e mulheres a partir de uma abordagem que "olha amplo e muito para dentro".
A entrevista é de Andrea Ana Gálvez, publicada por CTXT, 15-05-2019. A tradução é do Cepat.
O que as teses defendidas em seu livro La Fantasía de la individualidad contribuem para os estudos de gênero e a luta feminista?
Por um lado, acho que traz um olhar que começa desde a origem, como chegamos aqui. Geralmente o feminismo olha para o presente e luta por direitos iguais agora e não pergunta muito por que estamos nessa situação. O livro fornece uma perspectiva histórica, mas também uma visão de como construímos subjetivamente os seres humanos. Eu me perguntei o que é que nós, mesmo sendo feministas, teríamos que modificar para que a ordem social mudasse e, claro, o que os homens teriam que mudar.
O livro não propõe uma luta pela igualdade nos igualando aos homens, mas argumenta que o modelo para a igualdade é o modelo que nós, mulheres, desenvolvamos. Isto é, os homens deveriam somos nós, mulheres da Modernidade, para poder construir uma sociedade de iguais. Apresenta a necessidade de uma mudança de paradigma. Não podemos lutar nas condições do discurso social que temos agora pela igualdade, sem questionar o paradigma mais profundo: a organização da identidade.
No início do livro, sugere que seria mais útil substituir o termo ordem patriarcal pela ordem dissociada razão-emoção. Por quê?
O patriarcado parece ser a ordem social em que os homens, porque são homens, dominam as mulheres, porque são mulheres. Eu argumento que este não é o caso. A ordem patriarcal também foi reproduzida por mulheres. O importante é que é uma ordem lógica, uma ordem mental.
Para mim, a chave é que tudo o que tem a ver com o indivíduo e o racional é valorizado socialmente, ao mesmo tempo em que aquilo que tem a ver com a emoção e os vínculos é oculto e desvalorizado. Se isso é reproduzido por homens e mulheres, tanto faz, o que importa é que estão reproduzindo uma ordem patriarcal. Para reverter isso, é necessário dar importância ao campo relacional e às emoções vinculadas.
O livro é chamado La Fantasía de la individualidad, a ordem patriarcal é mantida por uma ficção. Qual seria essa fantasia?
A fantasia é a fantasia do Iluminismo, a fantasia é que a individualidade pode se sustentar. Que as pessoas que constroem sua segurança ontológica por meio de vínculos e comunidades - como são todas as sociedades caçadoras-coletores atuais - são mais atrasadas e menos evoluídas do que aquelas que constroem identidade individualizantes.
Digamos que o processo histórico, de acordo com a fantasia, tenha sido construído de uma maneira que se foi passando de dar importância à comunidade para dar importância ao indivíduo. Eu digo que isso é uma fantasia porque não pode ser sustentada sem um sentido de pertença a uma comunidade, isto é, sem a identidade relacional. Se esse processo tivesse sido, como esta fantasia pretende, teria ficado evidente a impotência do ser humano isolado diante do universo.
Relaciona um determinado modelo de desenvolvimento que se consolida no Iluminismo e que está estreitamente ligado à dominação sobre as mulheres. É possível acabar com a ordem patriarcal, sem acabar com o modelo de desenvolvimento econômico capitalista?
Não. A ordem neoliberal é o resultado de uma construção identitária e socioeconômica patriarcal. O mundo ocidental foi construído de tal maneira que os homens se especializaram no controle do mundo através da razão (ciência e tecnologia) para produzir segurança e socialmente desvalorizaram o que as mulheres faziam. A idealização da ciência e da tecnologia em si está historicamente associada à ordem patriarcal. Precisamente, foi possível essa construção porque as mulheres garantiram os vínculos.
A ordem econômica neoliberal, que se baseia na individualidade e na idealização do conhecimento através da ciência, não pode ser separada de sua construção pela dominação das mulheres, porque ao ir se especializando, os homens deixaram de atender ao lado relacional, que é imprescindível, e é por isso que precisavam das mulheres. A ordem neoliberal é em si mesma patriarcal.
Então, chega um momento em que essa ordem capitalista precisa que as mulheres se individualizem.
Sim, elas se individualizam, mas não podem ser individualizadas da mesma maneira que os homens. O lado relacional dos homens foi garantido pelas mulheres. Mas, as mulheres não podem e nem querem deixar de dar importância, tempo e energia à identidade relacional, porque não há ninguém que a garanta e porque sabem que aquilo que dá sentido à vida é senti-la. O que dá sensação de bem-estar tem a ver com o relacional: com vínculos bem construídos. As mulheres têm que lidar com o relacional para construir sua própria identidade, além da individualizada.
É nesse momento que as contradições ocorrem?
Sim, exatamente. Além disso, na modernidade, os homens patriarcais vão pedir às mulheres duas coisas contraditórias: que se individualizem para entrar no mercado de trabalho de produção/consumo e, ao mesmo tempo, que não se individualizem para continuar a atendê-los.
Esse é outro aspecto da situação conflitiva em que as mulheres se movem. Elas têm que construir uma identidade relacional não apenas para satisfazer a dos homens, mas também para satisfazer a delas próprias. Escapar um pouco da ordem patriarcal consistiria em continuar a construir uma identidade relacional porque é essencial sustentar nossos próprios laços, não para sustentar os homens.
Hoje, as mulheres estão tentando avançar rumo a essa individualidade independente. Por que seria desejável para os homens?
Os homens também são muito demandados pela ordem patriarcal. O patriarcado, que neste momento se concretiza no neoliberalismo, está enlouquecendo a todos e também aos homens. Ao homem é solicitado que seja o mais produtivo, aquele que chega mais alto, aquele que tem mais poder, pede-se a ele uma individualidade constante.
Os homens ganhariam muito mais estabilidade emocional e ganhariam um tipo de identidade que é a mais poderosa que existe: a identidade das mulheres na modernidade. Permite desenvolver tudo o que é verdade: desenvolvemos nossos projetos vitais porque conhecemos nossos desejos, mas ao mesmo tempo sabemos como cuidar dos outros e isso faz com que sintamos bem-estar.
É uma identidade que dá independência na medida em que não depende de ninguém que marque o destino, nem depende de ninguém subordinado que garanta o vínculo. Ganhariam o poder de entender o que acontece com eles, de saber como cuidar do outro, ao mesmo tempo em que realizam seu próprio projeto de vida. É uma relação de igualdade muito enriquecedora.
Cada vez mais e mais mulheres estão conseguindo ter esse tipo de identidade que, como diz, é a mais poderosa que existe, mas, segundo alguns autores, tanto a violência, quanto a crueldade contra as mulheres estão aumentando. Como você entende a situação atual e esse tipo de violência?
Parece-me que há uma reação patriarcal. Veja o que aconteceu na Espanha com o Vox, por exemplo. Quanto mais as mulheres avançarem, mais reação haverá da ordem patriarcal, e essa reação será violenta. Porque os homens também não podem racionalizar o que acontece contra as mulheres. Não podem racionalizar a raiva, não sabem por que isso acontece com eles. É uma ausência total de empatia.
Quando as mulheres se tornam independentes e deixam de garantir os vínculos dos homens, eles ficam desorientados e reagem sem nenhuma lógica. Deriva uma espécie de besta, porque vem do buraco negro que as emoções representam para esses homens patriarcais. Não podem expressar esse buraco negro de maneira racional.
O caso do Vox é particular porque habilitam os discursos e práticas patriarcais nesse retorno a modelos identitários hegemônicos.
Exatamente. A prostituição, por exemplo, também está aumentando em um momento em que é mais fácil ter relações sexuais que nunca. Aqueles que trabalham esses temas falam que a masculinidade hegemônica se constrói através da dominação das mulheres. Como isso está se perdendo - porque cada vez mais que as relações do casal são mais igualitárias –, esse ‘plus’ de dominação é buscado fora, por exemplo, na prostituição. Quando tais tipos de partidos políticos aparecem, é legitimada tal dinâmica.
Como enfrentar essas violências em ascendência?
É completamente necessário enfrentá-las. É preciso ir conquistando um clamor social e que as lutas feministas continuem atuando. Uma coisa é que Vox, em uma propaganda política, diga que é contra a "ideologia de gênero", e outra coisa é que no momento de aprovar medidas concretas contra as mulheres não exista uma reação. Eu não acredito que isto seja majoritário.
O triunfo da ordem patriarcal e neoliberal passa por outros lados, por coisas muito mais profundas, sutis e perversas do que por esta gente que faz propostas tão grosseiras. Por exemplo, passa – vejo isso na universidade – pela neutralização da crítica social. A ordem patriarcal está sendo reproduzida e por mulheres também.
Isso é muito mais perigoso porque é menos visível do que aquilo que é feito pelo Vox. Por isso insisto que é uma ordem lógica: o que você considera importante como mecanismo de segurança ontológica do seu grupo. E no mundo ocidental está se dando importância unicamente à razão, ao dado, ao ser mais, à desconexão emocional, à irreflexão sobre a nossa sociedade e sobre o futuro que queremos.
Anúncios como os de Avène e Gillette promovem outros tipos de masculinidades. Como os feminismos podem contribuir para esses novos modelos? É o papel das mulheres?
É o papel do feminismo, que é desenvolvido por homens e mulheres. Parece-me que existe uma responsabilidade última que, infelizmente, segue recaindo sobre as mulheres, mas que há cada vez mais homens conscientes disso. Ainda que seja difícil para os homens reconhecer todos os privilégios que desfrutam.
Eu sempre digo: não sou negra, sou completamente antirracista e, no entanto, sei que não posso perceber todos os vetores de dominação que uma pessoa negra teve, porque eu não sou negra e estou no lado privilegiado dessa relação. É o mesmo que acontece com os homens. Acho maravilhoso que esses anúncios apareçam e que os homens participem. Eles também precisam se sentir responsáveis pela necessidade de mudança histórica.
Como imagina a sociedade do futuro em relação à igualdade de gênero e os laços comunitários?
É uma questão difícil, porque neste momento existem tendências muito contraditórias na sociedade e não sei qual delas vencerá. Por um lado, estão todos os movimentos de mulheres e, por outro lado, estão surgindo movimentos de direita muito xenófobos. Não será fácil romper a tendência global ultraneoliberal, dinâmica que é patriarcal. Não sei qual lado irá triunfar. No que, sim, acredito é que temos que continuar lutando.
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“Quanto mais as mulheres avançarem, mais reação haverá da ordem patriarcal”. Entrevista com Almudena Hernando. - Instituto Humanitas Unisinos - IHU