06 Setembro 2016
Camille Froidevaux Metterie, professora de Ciência Política na Reims Champagne-Ardenne e a Sciences Po e pesquisadora da corporalidade feminina, fala dos efeitos do feminismo na sociedade contemporânea: mulheres tornaram-se "como os outros homens" e os homens estão se tornando "as mulheres como as outras".
A entrevista é de Catherine Aubin publicada por L'Osservatore Romano, 01-09-2016. A tradução é de Fernanda Pase Casasola.
Eis a entrevista.
O feminismo causou um terremoto que mudou a própria organização do nosso mundo. Poderia nos explicar?
Nunca foram muito bem avaliados os efeitos que as reivindicações feministas tiveram sobre nossa vida comum. Se a igualdade entre mulheres e homens é ao mesmo tempo o ponto central do conflito e o sucesso decisivo do feminismo, esse último foi muito além nos seus efeitos, alterando, de modo duradouro, as condições de vida em comum. O ponto crucial é a contestação por parte das feministas da segunda onda (no início dos anos setenta) sobre a tradicional divisão entre a esfera privada feminina e esfera pública masculina. Ao rejeitar a hierarquia dos papéis, as feministas fizeram desaparecer o muro que separava as duas esferas, e inauguraram uma nova organização com três polos: o público-político (poder e Estado), o privado-social (o mundo do trabalho e da sociedade civil) e o íntimo-afetivo (vida emocional e familiar).
O que é absolutamente novo é que as mulheres e os homens têm a mesma legitimidade e nutrem as mesmas aspirações em cada um desses três polos. Não digo que isso é sempre claro e fácil, mas a verdade é que, em termos de princípios, os une e todos são considerados como havendo os mesmos direitos nessas três áreas da vida. Isso significa que pusemos fim à atribuição a mulheres de papéis privados e subalternos. Ao reivindicarem ser indivíduos plenamente legitimados na sociedade, para todas as funções e em todos os níveis, as mulheres tornaram-se "homens como os outros."
Este é um ponto menos fácil de entender, mas também pusemos fim à exclusão dos homens da esfera da vida privada e familiar. Eles mesmos pedem, cada vez mais, para participar, também aspirando a um melhor equilíbrio entre a vida privada e a profissional. Para expressá-lo em forma levemente provocativa, diria que os homens estão se tornando "mulheres como as outras."
É por isso que acho que estamos passando por uma verdadeira mudança antropológica. A condição feminina é colocada sob o signo da dualidade: as mulheres são pessoas de direito, livres e iguais, mas também se mantêm sujeitos incorporados e sexuados. Bem, acontece que essa dupla condição, abstrata e concreta, está se tornando o modelo para todas as condições. Mesmo os homens se caracterizam pela dualidade existencial e são as mulheres que lhes mostram o caminho, porque foram elas que experimentaram pela primeira vez como articular em suas vidas as dimensões privada e social. É o que chamo de convergência dos gêneros, ou seja, o advento de uma condição humana genérica, da qual as mulheres constituem o modelo.
Nas nossas sociedades ocidentais, essa convergência dos gêneros já está em vigor, com seus aspectos positivos e negativos. Como é que esta revolução antropológica da relação homem-mulher pode levar a melhores relações?
A convergência dos gêneros não deve ser considerada um nivelamento ou uma desintegração das condições feminina e masculina. Pelo contrário. Indica um enriquecimento mútuo, por acumulação, dos papéis sociais e das aspirações privadas. As mulheres, por muito tempo, foram apenas "privadas", reduzidas a suas atividades domésticas; hoje estão totalmente legitimadas na esfera social. É, sem dúvida, um progresso muito positivo, especialmente, por que é a garantia da independência material das mulheres. Por sua vez, os homens empenham-se na esfera íntima, depois de terem sido apenas "públicos", hoje podem aspirar às recompensas da vida familiar. Até mesmo disso devemos nos alegrar. Por um lado, porque as mulheres não sustentam mais sozinhas o peso das tarefas privadas; por outro lado, porque essa alteração indica que a realização pessoal para os homens já não ocorre apenas no campo profissional, mas que agora podem, de forma legítima, aspirar a uma vida privada harmoniosa e gratificante.
Assim, pode-se imaginar um mundo futuro onde os dois sexos assumam, de forma justa e tranquila, os encargos e as recompensas da vida privada e também da social. Mas é preciso dizer, neste momento, que esse processo deve ser realizado sob o signo da liberdade. Em outras palavras, não tem, na minha opinião, um modelo ideal de existência: algumas pessoas optam por dedicar mais tempo à vida familiar, outros favorecem a vida profissional. Se são homens ou mulheres pouco interessa, o importante é reconhecer a liberdade de escolha. A mulher que deixa de trabalhar para se dedicar aos filhos não é mais censurável do que a outra que retorna ao trabalho duas semanas após o parto ou, ainda, do que aquela que escolhe não ter filhos. Em outras palavras, não há uma maneira certa ou errada para ser mulher. É esta incrível oportunidade que nós, mulheres ocidentais, temos: escolher o nosso destino.
Hoje, muitas mulheres sufocam a sua natureza feminina. Como e por quê?
Hoje, a mulher ocidental deve lidar com uma vida privada, por vezes, sinônimo de maternidade e uma vida social muito ocupada. Para algumas mulheres isso implica sacrifícios no âmbito da sua vida íntima, conjugal e familiar. Na verdade, nem sempre é fácil mediar as aspirações privadas e as profissionais.
E, especialmente, por que a idade em que um indivíduo é capaz de se realizar profissionalmente é exatamente a mesma que deveria se realizar do ponto de vista pessoal. É entre os trinta e os quarenta anos que viverá em casal e terá filhos, projetos que, por vezes, colidem com as exigências do mundo do trabalho. Isso cria situações, algumas vezes, muito dolorosas: mulheres que esperam por muito tempo o "momento certo" para se tornarem mães e que nunca se tornam.
Os avanços da assistência médica à procriação têm a ver com esse mal-estar que hoje circunda a maternidade. Uma vez que as mulheres têm menos filhos, porque geralmente escolhem o momento da gravidez, já que se oferecem tecnologias cada vez mais sofisticadas, chegam a pensar que desejar um filho necessariamente queira dizer tê-lo. Bem, as coisas não são tão simples: muitas vezes descobrem muito tarde que é ... muito tarde! De minha parte, sou a favor da procriação medicamente assistida (excluindo a questão das mães substitutas que apresenta problemas éticos reais), mas eu observo, pesarosamente, que alimenta a ilusão de uma onipotência procriadora.
Que agora está incorporada a dimensão feminina da existência?
Na sua versão radical, o pensamento feminista produziu efeitos sobre a maneira pela qual concebemos a condição feminina, em suma, ele a desincorporou. Os estudos sobre gênero, o feminismo materialista herdado da segunda onda e a tradição do igualitarismo republicano têm em comum o fato de privilegiar uma definição abstrata que faz das mulheres simples indivíduos de direito. A atual condição das mulheres é definida em termos de igualdade e de liberdade, numa perspectiva que reduz o corpo feminino a nada mais que o lugar da dominação masculina por excelência. É por isso que as temáticas associadas a corporalidade feminina são muitas vezes vistas como vestígios da subjugação das mulheres à ordem patriarcal.
Não nego a fecundidade sociológica do conceito de gênero. Os estudos de gênero nos permitem lançar luz sobre os mecanismos através dos quais as desigualdades entre mulheres e homens se perpetuam. Mas também têm implicações teóricas que eu discordo. A recusa de refletir em termos de feminino e masculino e a rejeição da dimensão necessariamente incorporada e sexuada da existência produziram uma brecha curiosa: o sujeito do feminismo perdeu a importância, inclusive a realidade. O pensamento feminista contemporâneo, de alguma forma, acabou com o sujeito feminino.
Da minha parte, proponho reintroduzir a corporalidade feminina e, portanto, o sujeito feminino na reflexão feminista, porque acho importante levar em conta outro aspecto que constitui a emancipação das mulheres ao se apresentar ao mundo e aos outros em um corpo do sexo feminino.
Em que consiste a singularidade da ''experiência do feminino"?
Eu gosto de definir a experiência do feminino como a experiência da incorporação no relacionamento. Desde que as mulheres não podem viver abstraindo sua corporeidade, e uma vez que elas estão equipadas com uma habilidade materna, elas têm um vínculo com o mundo que chamo relacional. O aspecto tem a ver, claramente, com a maternidade, que é somente uma potencialidade, mas que produz efeitos psíquicos, materializada ou não.
O simples fato de projetar mentalmente a maternidade, uma projeção que nenhuma mulher pode evitar, que queira ter filhos ou não, esse simples fato implica uma reflexão sobre a dimensão feminina relacional da existência. Toda mulher sabe que dispõe dessa capacidade de ter e, especialmente, de criar filhos, ou seja, de entrar com eles em um processo de humanização e de socialização. É por isso que argumento que as mulheres nunca são capazes de conceber a possibilidade de uma existência puramente individual, ou seja, uma existência que encontra propósito nela mesma, que não precisa de qualquer outra existência para ter êxito e se desenvolver. Em suma, as mulheres são indivíduos anti-individualistas. Em termos simples, as mulheres não podem fingir que os outros não existem, enquanto os homens conseguem muito bem.
Não estou dizendo que todos os homens são egoístas de carteirinha nem que todas as mulheres são totalmente altruístas. Só acho que não se pode fingir que as mulheres não têm sido, durante séculos, relegadas à esfera doméstica. Essa história tem implicações sobre o que significa ser uma mulher hoje, ou seja, um indivíduo ao mesmo tempo privado e social, marcado pela responsabilidade milenar do parto, pelo cuidado dos idosos e dos mais vulneráveis.
Que diferença você faz entre "feminino" e "feminilidade"?
Devemos distinguir entre o que depende da ordem das representações e o que depende da ordem da experiência vivida da corporeidade. Quando você pensa em termos de feminilidade e de virilidade, se está em uma perspectiva essencialista de projeção de um ideal sobre a realidade. De um lado, disponibilidade sexual, dedicação maternal e dependência material, e de outro, força carnal, autonomia conquistadora e soberania social. Essas representações pertencem a um outro tempo, o tempo em que o sexo biológico dos indivíduos assinalava suas funções e seus papéis específicos.
Eu rejeito esse registro da feminilidade e da masculinidade, e proponho identificar qualquer coisa que o feminino e o masculino conservam de singular enquanto modo da construção identitária que devemos todos enfrentar. Em um mundo onde os papéis e as funções não são mais atribuídos a um ou a outro sexo, acho que devemos, mais do que nunca, refletir sobre o significado que reveste a incorporação e a sexualização da nossa existência. Na verdade, quem pode esperar viver como "antropo", ou seja, como sujeito puro, fora de toda incorporação? Nas nossas sociedades dessexualizadas, é, ao contrário, a plena padronização da singularidade sexual é o rótulo da subjetividade.
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Uma verdadeira mudança antropológica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU