10 Abril 2019
“Se é pedida uma teologia aberta, capaz de ir até os seus limites, então também deve lhe corresponder uma abertura espiritual na Igreja, para que não se chegue sempre de novo a conflitos-limite entre o mundo acadêmico e o mundo eclesiástico-institucional.”
A opinião é de Benedikt Kranemann, professor de Liturgia na Faculdade Católica de Teologia da Universidade de Erfurt e membro associado do Max-Weber-Kolleg, publicada por Feinschwarz e republicada em Settimana News, 06-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em 2017, o Papa Francisco publicou uma constituição apostólica. O título é Veritatis gaudium, a “alegria da verdade”. Em suma, trata-se do ordenamento fundamental das universidades e faculdades eclesiásticas, que, à primeira vista, não parece oferecer nada particularmente atraente: uma introdução, normas gerais, normas particulares. Na linguagem jornalística, se diria: irrelevante.
Do ponto de vista da teologia acadêmica, porém, as coisas são diferentes. Aqui, os ânimos se aquecem no debate em torno dessa constituição, já que, para os teólogos e as teólogas, trata-se da sua ética profissional. Depois da leitura das normas, ouvem-se na discussão tons que vão da crítica à preocupação.
A Veritatis gaudium consiste em duas partes. Na sua introdução, o Papa Francisco esboça uma teologia que é vista como um laboratório cultural. Ela deve se fazer as grandes questões do nosso tempo e, se não o fizesse, não corresponderia à própria tarefa.
O pedido de uma abertura da teologia é o que caracteriza a primeira parte da constituição. As reflexões do papa talvez não sejam homogêneas, também geram algumas críticas, mas mostram uma compreensão da teologia acadêmica aberta ao mundo, como raramente se viu entre os pontífices.
As normas, por sua vez, movem-se em um registro completamente diferente. Falam de uma dependência das instituições teológico-acadêmicas da Igreja. Introduz-se a necessidade do nihil obstat para a nomeação dos diretores de faculdades.
A Congregação para a Educação Católica deve ser consultada para cada modificação dos estatutos e dos ordenamentos de estudo das faculdades. A lista das normas é extremamente longa, e, em primeiro plano, destaca-se a vontade de controlar a teologia.
Um leitor crítico se pergunta até que ponto a teologia é realmente livre se deve se submeter a essa constituição.
O Conselho das Faculdades Teológicas (alemãs), na sua opinião sobre a constituição, lamentou justamente o fato de que aqui “estabelece-se por lei uma imagem superada de uma teologia orientada unicamente a uma ‘cultura da obediência’, regulada através de uma densa trama de normas, controlada rigorosamente pelo magistério”.
A mentalidade por trás da constituição fica revelada por uma formulação que já se encontrava no documento vaticano anterior sobre o tema, Sapientia christiana. Nos ordenamentos dos estudos deve ficar claro “que a verdadeira liberdade de pesquisa, de igual modo, se apoia necessariamente na firme adesão à Palavra de Deus e em uma disposição de acatamento do Magistério da Igreja, ao qual foi confiado o múnus de interpretar autenticamente a Palavra de Deus” (VG, 38 §1 2b).
O contexto deixa claro que “acatamento” aqui deve ser tomado em sentido literal. O fato de uma disciplina científica ser marcada por um “acatamento” em relação a algo/alguém já é bastante estranho. Que disciplina científica o seria? E a “verdadeira liberdade”, como já observou M. Möhring-Hesse, não deveria, talvez, ser entendida como limitação da liberdade acadêmica?
Uma teologia obsequiosa, seja qual for o destinatário de tal acatamento, é inaceitável de acordo com os paradigmas atuais da compreensão científica e acadêmica; e, portanto, significaria a saída da teologia do cânone das disciplinas acadêmicas.
A assembleia anual do Conselho das Faculdades Teológicas (Siegburg, 31 de janeiro a 2 de fevereiro) ofereceu a oportunidade para discutir tais questões com uma autoridade da Congregação para a Educação Católica, o Pe. F. Bechina, e com o ex-embaixador alemão junto à Santa Sé, A. Schavan.
Schavan é um dos organizadores do livro recentemente publicado “Relevante Theologie. Veritatis gaudium – die kulturelle Revolution von Papst Franziskus” (Ostfildern, 2019). As contribuições desse volume se baseiam quase exclusivamente na introdução do papa e não nas normas da segunda parte.
Em Siegburg, foi claramente articulada a preocupação que nasce das normas e da sua relação com a introdução. Só uma teologia que decide autonomamente sobre os seus temas e sobre o debate acadêmico pode estar à altura hoje dos debates científicos e sociais e, assim, contribuir para o desenvolvimento ulterior da doutrina eclesial (M. Heimbach-Steins).
G. Essen (Bochum) expressou como pergunta central se o papa realmente pode não ter percebido que havia assinado toda a constituição, ou seja, também a parte normativa, e se ele, portanto, assume a responsabilidade pelo texto inteiro.
Seria tentador deixar o documento imediatamente de lado, se não houvesse dois problemas. O primeiro é que a Veritatis gaudium será, por muito tempo, o documento eclesial de referência no que se refere aos cursos de estudos teológicos. Isso leva a uma reflexão mais precisa e crítica a esse respeito.
O que a teologia obteve com essa constituição? É necessário elaborar um decreto de implementação que deverá regular o modo como a constituição pode e deve ser aplicada na Alemanha ou no âmbito linguístico alemão.
Mas há também um segundo problema: o que realmente tem validade? A introdução do papa ou as normas?
De acordo com a perspectiva do papa, o estudo da teologia deve passar por uma atualização, o que implica mais do que alguns simples retoques aqui e acolá. Partindo do Evangelho (seria preciso esclarecer o que ele entende com essa expressão), a teologia deve se envolver nos debates sobre as grandes questões do presente e também ser questionada quanto ao futuro da Igreja.
A evolução da liberdade intelectual (Fonte: Settimana News)
A teologia deve trabalhar como um laboratório cultural e se expor sem meios termos aos desafios do presente. Na sua introdução, o papa chega a falar até de uma “radical” mudança de paradigma e de uma corajosa revolução cultural na teologia (VG 3).
A teologia não deve se isolar, mas sim chegar lá “aonde são concebidas as novas histórias e paradigmas” (VG 4b). Uma esplêndida formulação do papa: só podemos esperar que todos aqueles que, no futuro, terão que escrever avaliações eclesiásticas sobre os teólogos e as teólogas realmente a tenham lido.
A teologia deve buscar o diálogo com as outras disciplinas científicas e se esforçar para dar forma a uma “cultura do encontro” (VG 4b). O que o papa quer dizer com isso é que a teologia deve ser praticada no presente com todos os seus problemas, contradições e oportunidades.
Ela deve ser teologia no presente e aqui lutar para encontrar respostas, ou seja, onde efetivamente se levanta a pergunta sobre Deus. Como qualquer outra disciplina científica, a teologia reside no seu tempo, deve corresponder aos princípios acadêmicos do seu tempo e pretender para o próprio trabalho os mesmos pressupostos liberais que valem para as outras disciplinas.
Tal teologia deveria ser uma parceira dialógica natural para a Igreja (como pediu Ch. Cebulj). Mas isso não é suficiente: os seus parceiros de diálogo são, do mesmo modo, as outras disciplinas científicas e uma sociedade que está se tornando cada vez mais plural. Uma teologia eclesiasticamente coagida não seria o lugar onde “são concebidas as novas histórias e paradigmas”.
Do ponto de vista da compreensão ocidental atual das disciplinas acadêmicas e a partir do conhecimento de como funciona a “fábrica científica”, certamente é possível levantar observações críticas sobre a introdução do papa. O próprio Vaticano impediu que se pudesse desenvolver uma teologia voltada e aberta ao mundo como o papa exige hoje.
Mas também é preciso reconhecer que agora, do lugar eclesial mais elevado e de autoridade, esboça-se a imagem de uma teologia aberta e livre. Uma teologia que faz pesquisa e ensina, como qualquer outra disciplina científica, seguindo seus próprios pressupostos hermenêuticos, com uma metodologia da qual ela mesma é responsável e que pode e deve nomear claramente.
Em contraste com isso, está a minuciosa normatização da teologia acadêmica exposta na segunda parte da constituição. Piruetas hermenêuticas para ler a segunda parte do documento a partir da primeira não servem para nada. Assim, não se oferece nenhum fundamento confiável de trabalho.
Quem se decide pela teologia acadêmica como profissão deve poder trabalhar livremente por persuasão interior. A constituição toca em um ponto extremamente sensível para os teólogos e teólogas: a luta por aquela liberdade acadêmica que o papa, direta ou indiretamente, requer.
O lugar da teologia acadêmica deve (ou deveria) ser aquele onde são elaborados os paradigmas do presente. É uma questão de autorrespeito dos teólogos e das teólogas aproveitar a oportunidade da Veritatis gaudium para indicar aqueles pressupostos necessários para a própria pesquisa, assim como para o seu ensino. A teologia acadêmica, como qualquer outra disciplina científica, é praticada com compromisso e paixão.
Trata-se de uma “vocação”. Tal teologia não pode ser forçada pela Igreja a se abster daqueles temas e daquelas perguntas com as quais a academia hoje deve se confrontar – por mais incômodas que sejam. A teologia deve lidar com tais questões com toda a abertura e oferecer respostas corajosas ao mesmo tempo.
O fato de a introdução do papa ter recebido tanta repercussão mostra que algo importante foi entendido aqui, e que continua vivo o interesse eclesial por uma teologia aberta e pela sua liberdade que muitas vezes faltou – e ainda falta.
Por outro lado, teólogos e teólogas que se moveram de acordo com essa liberdade sempre tiveram problemas dentro da Igreja. Essas duas características não podem andar juntas.
Na assembleia do Conselho das Faculdades Teológicas, todos os que tomaram a palavra (com responsabilidade na academia, nas Igrejas locais ou na Cúria Romana) expressaram perturbação e crítica.
Todos compreenderam os problemas esboçados e perceberam as tensões internas à constituição. Se essa crítica abrangente e conjunta é pertinente, e nenhum dos escritores quer assumir a sua responsabilidade, então os problemas devem ser procurados no sistema – o que torna mais difícil encontrar uma solução.
Duas coisas certamente podem ser necessárias: documentos como esse, que dizem respeito à teologia, precisam de mais transparência já no seu nascimento e, depois, também, no decorrer do processo de configuração final; do mesmo modo, precisam envolver competências acadêmicas específicas e conhecimento dos contextos da política acadêmica.
A teologia é sempre contextual, de modo que podemos nos perguntar se a constituição pode realmente regular o estudo da teologia em nível mundial. Era preciso uma discussão ampla antes da publicação. A Conferência Federal dos Assistentes Acadêmicos reiterou corretamente que não se pode confiar em um sistema em que, “em última instância, depende-se da benevolência das autoridades e não das normas gerais”. Para casos conflitantes, são necessárias instâncias judiciais independentes, para as quais aqueles que, por causa do seu trabalho acadêmico, têm problemas com as autoridades da Cúria possam se dirigir.
Se essas instâncias continuarem faltando, então toda discussão sobre a liberdade acadêmica da teologia será simplesmente em vão.
Se é pedida uma teologia aberta, capaz de ir até os seus limites, então também deve lhe corresponder uma abertura espiritual na Igreja, para que não se chegue sempre de novo a conflitos-limite entre o mundo acadêmico e o mundo eclesiástico-institucional.
A alegria da verdade deve valer para ambas as partes.
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Teologia aberta? Veritatis gaudium à prova - Instituto Humanitas Unisinos - IHU