04 Abril 2019
Durante as últimas duas décadas, com o aumento do acesso à Internet e a propagação de mecanismos de pesquisa como o Google, e sítios de informações médicas como WebMD, houve um aumento em autodiagnósticos por parte de pacientes. Uma das principais – se não reconhecida ou apreciada – consequências negativas é o falso senso de confiança que acompanha aqueles que têm acesso a grandes quantidades de informação, mas que possuem pouco ou nenhum contexto, ferramentas apropriadas ou expertise profissional para interpretar ou entender com precisão.
O artigo é de Daniel P. Horan, frade franciscano e professor assistente de teologia sistemática e espiritualidade na Catholic Theological Union em Chicago, publicado por National Catholic Reporter, 03-04-2019. A tradução é de Natália Froner dos Santos.
Como escreveu o psicólogo social Alek Krotoski para The Guardian há oito anos, “Não há dúvidas de que a riqueza de informações sobre saúde online contribuiu para uma população mais informada, mas esta é uma área que acredito que a expertise dos profissionais não deve ser minada pelo poder nivelador da internet”. O acesso à informação, às vezes até os mesmos recursos primários que os profissionais consultam, não equivale ao conhecimento informado ou a interpretação correta. Ainda precisamos de médicos, enfermeiros registrados, assistentes médicos, e todos os técnicos treinados e credenciados necessários para classificar informações de maneira condizente com as circunstâncias.
Mas não é apenas o campo da medicina que tem experimentado esse tipo de fenômeno. Ao escrever sobre como a internet afetou a abordagem do público em geral às ciências naturais, Danielle Smiley escreveu no Medium: “Mas então vem o problema: esse acesso constante à informação tende a fazer as pessoas pensarem que são entendidas de qualquer coisa que tenham pesquisado no Google”. Ela continua “Eu me refiro a eles como 'cientistas de poltrona' – pessoas que leram algumas revistas ou artigos científicos populares, escritos por fontes questionáveis, e então usam isto para formar (e vomitar publicamente) uma opinião sobre algum tópico".
As “hard sciences” são um domínio que intimida a maioria das pessoas fora do meio acadêmico ou médico de tal forma que poucos estão dispostos a afirmar que são realmente tão competentes quanto os profissionais, mesmo com o advento da vasta informação online, particularmente quando a vida de alguém está em risco. Mas este claramente não é o caso daqueles que sentem que podem ler um catecismo online ou encontrar uma versão digital da Suma Teológica de Tomás de Aquino, ou explorar os cânones do Concílio de Trento com uma busca eletrônica. Da mesma maneira que existem “médicos de poltrona” e “cientistas de poltrona”, há também inúmeros “teólogos de poltrona” online, e este é um problema real para a Igreja.
Em um artigo publicado na coleção de 2012 “Quando o Magistério interveio: O Magistério e os Teólogos na Igreja de hoje” o teólogo Anthony Godzieba, da Universidade Villanova, levanta algumas questões-chave sobre o ensino da igreja que surgem em uma era de “imediatismo digital”. Ele pergunta “Esse ‘imediatismo digital’ influencia a recepção dessas afirmações que, por sua vez, moldam o valor da verdade das declarações e sua influência no desenvolvimento da tradição Católica Romana, a realidade da comunhão, e o próprio caráter de ‘autoridade de ensino?’.”
A resposta mais curta é sim. A resposta longa é que esse contexto alternante e o crescimento da disponibilidade de recursos online afetaram a percepção e interpretação do ensino da Igreja. Os não-especialistas podem se sentir empoderados por um falso senso de informação democrática, como se não necessitassem de uma “pessoa do meio” para entender os ensinamentos oficiais da Igreja. Eles podem ir direto para a “fonte” percebida, que a maioria das pessoas acredita ser o Papa que está no topo de um sistema centralizado de liderança, ou pelo menos o tesouro de textos facilmente acessíveis online.
Mas isto não é exatamente como funcionam os ensinamentos da Igreja. O Papa não é análogo a um CEO de uma companhia que fala singularmente pela corporação, nem pelo único árbitro do ensino da Igreja.
A autoridade docente é exercida de diversas formas e por várias fontes – pelo Papa, bispos locais, concílios ecumênicos, assim como em conferências episcopais. Ensino do magistério e textos não são todos do mesmo peso, nem são seus significados ou implicações destes ensinamentos imediatamente claros sem uma compreensão profissional da Igreja e história conciliar, a hierarquia de verdades, diversas formas e condições do exercício do ordinário (e, raramente, extraordinário), magistério, normas da teologia moral Católica, e outros numerosos princípios necessários para uma avaliação autêntica. Teólogos e eticistas profissionais, muitos dos quais são homens e mulheres leigos, passaram anos estudando e ensinando em seus campos. Eles são necessários para ajudar as pessoas – leigas e ordenadas – a entender o que acreditamos.
Como os autodiagnosticados médicos de poltrona que dependem de pesquisas na internet para justificar sua avaliação amadora, há uma miríade de católicos que se voltam à internet e respondem a materiais que encontram instantaneamente, sem qualquer consciência dos complexos fatores hermenêuticos que devem ser considerados quando se envolvem em tal análise. Além disso, os termos técnicos e filosóficos da teologia, incluindo palavras normalmente usadas de forma diferente na linguagem popular, são frequentemente mal interpretadas no contexto teológico. Talvez porque todos os cristãos têm um suposto interesse adquirido na fé, há uma crença mal entendida de que a natureza pessoal do cristianismo ou a prática da fé dá a todos um peso igual na conversa. Isto é especialmente verdade entre os ordenados, que certamente possuem algum treinamento básico de teologia, mas não são teólogos profissionais.
Como plataformas de redes sociais, blogs, canais do YouTube e outro meios públicos de distribuição de ideias e comentários têm crescido, há uma proliferação não apenas de documentos oficiais da Igreja e textos históricos online, mas também uma ampla gama de perspectivas que não possuem o mesmo valor. Em uma era de websites Católicos imensamente populares, televisão e outras formas de comunicação, muitos teólogos de poltrona não sabem como nem que devem distinguir entre a visão online de uma personalidade sobre algo, e a mais recente exortação apostólica do Papa Francisco; entre o blog do pastor local e um professor acadêmico teólogo ou um artigo popular; entre Gaudium et Spes e o último guia de votação da conferência de bispos dos EUA. Existem perigos reais aqui.
Assim como acontece com o consumo de cobertura política, os católicos gravitarão em direção a saídas e interpretações que se ajustem aos seus gostos e confirmem sua visão de mundo existente. Além disso, interpretações imprecisas ou deturpadas dos ensinamentos da igreja foram armadas e usadas para atacar aqueles com quem se discorda, como já é perturbadoramente comum online. Quando chamados por sua imprecisão ou alegações infundadas sobre a tradição ou os ensinamentos da igreja, tais teólogos de poltrona acusam os profissionais de “elitismo”, afirmando que os indivíduos não precisam de doutorado nem serem profissionais para conhecer os ensinamentos.
De um lado, isso é verdade. Eu escrevi em minha última coluna que o Espírito Santo está presente ao longo de toda a igreja. E há alguns autodidatas muito inteligentes por aí que utilizam o tempo para ler bons conteúdos teológicos e aprender como entender os ensinamentos teológicos e éticos complexos.
Mas de outro lado, eu não acho que gostaria de ir em um autodidata ou “cardiologista de poltrona” da próxima vez que precisar operar o coração. Não é uma questão de elitismo, mas de um compromisso profissional com a verdade e a precisão, que não é mera opinião ou suposição. Em uma era que informações ruins estão amplamente disponíveis e até mesmo algumas universidades católicas estão eliminando seus departamentos de teologia, o dano espiritual e emocional só aumentará se não trabalharmos juntos para resolver melhor este problema. Pode começar com nossos programas de educação religiosa e currículos de escolas católicas, que não devem simplesmente ensinar as pessoas a regurgitar proposições catequéticas, mas reconhecer que a tradição da fé é rica e complexa, e que nem todas as fontes que pretendem ser "católicas" são precisas ou confiáveis.
Mas não para por aí. Os principais responsáveis pela liderança pastoral e pelo ensino na igreja - nossos bispos - devem ser claros quanto à importância de confiar mais nos teólogos profissionais para o seu próprio entendimento (há uma razão pela qual os bispos levam peritos aos conselhos ecumênicos). A partir daí, podemos trabalhar para diminuir os efeitos da negligência pastoral decorrentes da proliferação de teólogos de poltrona, reconhecendo a necessidade e importância do papel dos teólogos profissionais na vida cotidiana da igreja.
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A ascensão problemática dos teólogos de poltrona - Instituto Humanitas Unisinos - IHU